''E então o leão se apaixona pelo cordeiro...''
''Que cordeiro idiota'',eu suspirei.
''Que leão doente e masoquista''.
Possibilidade
Há uma possibilidade,
Há uma possibilidade,
Tudo o que eu era e tudo o que eu vou conseguir.
Mmmmmmmmmmm
Mmmmmmmmmmm
Há uma possibilidade,
Há uma possibilidade,
Tudo o que eu vou conseguir vai ser seu também
Tudo o que eu vou conseguir vai ser seu também.
Então me avise quando você ouvir meu coração parar,
Você é o único que conhece!
Me avise quando ouvir meu silencio,
Há uma possibilidade, eu não saberia.
Mmmmmmmmmmm
Mmmmmmmmmmm
Sabe que quando você partir,
Sabe que quando você partir,
Pelo sangue e por mim você anda como um ladrão
Pelo sangue e por mim eu cairei quando você partir
Então me avise quando você ouvir meu coração parar,
Você é o único que conhece!
Me avise quando ouvir meu silêncio,
Há uma possibilidade, eu não saberia.
Então me avise quando meu silêncio terminar
Você é o motivo pelo qual me fechei
Então me avise quando me ouvir caindo
Há uma possibilidade de isso não se mostrar
Mmmmmmmmmmm
Mmmmmmmmmmm
Pelo sangue e por mim eu vou cair quando você partir
Pelo sangue e por mim eu sigo a sua liderança
Mmmmmmmmmmm
Mmmmmmmmmmm
Mmmmmmmmmmm
Mmmmmmmmmmm
Decodifique
Como eu posso decidir o que é certo?
Quando você está ocupando minha mente
Não consigo ganhar sua luta perdida o tempo todo
Eu nunca vou possuir o que é meu
Quando você sempre está tomando partido
mas você não vai tirar meu orgulho
Não, não desta vez.
Não desta vez.
Como chegamos aqui?
quando eu costumava te conhecer tão bem
Como chegamos aqui?
Bem, eu acho que sei
A verdade está escondida nos seus olhos
E está pendurada na sua língua
Apenas fervendo no meu sangue,
Mas você acha que eu não posso ver
Que tipo de homem que você está
Se você é um homem em todos os
Bem, eu vou descobrir isso
Em meu próprio ...
Eu estou gritando "eu te amo" assim ...
Em minha sobre
Mas meus pensamentos você não pode decodificar!
Como chegamos aqui?
Eu costumava te conhecer tão bem
Como chegamos aqui?
Bem, eu acho que eu sei
Você vê o que temos feito?
Nós vamos fazer de nós uns bobos
Você vê o que temos feito?
Nós vamos fazer de nós uns bobos
Como chegamos aqui?
Eu costumava te conhecer tão bem
Como chegamos aqui?
Bem, eu costumava te conhecer tão bem
Eu acho que sei
Eu acho que sei
Há algo que eu vejo em você
Isso pode me matar, eu quero que seja verdade
Deixe-me Decidir
Ela estava parada em uma árvore partida,
Suas mãos entrelaçadas apontavam pra mim
Eu estava atordoado pelas luzes que vinham dos seus olhos,
Ela falou com uma voz que rompeu os céus
Ela disse "Venha até a sombra amarga,
Eu irei te envolver em meus braços e você saberá que foi salvo"
Deixe-me decidir, deixe-me decidir, eu não posso lutar contra o demônio, então deixe-me decidir
Eu saí para beber em um bar de Soho,
O ar estava embaçado como um cigarro barato,
Ela saiu de seu lugar como a pintura de um fantasma,
Ela era a mulher que eu mais desejei,
Assim que ela me alcançou, eu lhe dei minha mão
Eu disse "Deixe-me entender"
Deixe-me decidir, deixe-me decidir, eu não posso lutar contra o demônio, então simplesmente deixe-me decidir.
Enquanto atravessava a porta ela continuava na minha cabeça,
Quando eu entrei no quarto ela estava deitada na cama
Ela me procurou no escuro toda confusa
Eu estava no meu caminho, nunca voltando
Deixe-me decidir, deixe-me decidir. Eu não posso lutar contra o demônio então simplesmente deixe-me decidir.
AGORA QUERO COMPARTILHAR COM VOCÊS A MINHA ALEGRIA DE LER
ARising Sun a Historia
Rising Sun
Sete anos se passaram desde a visita do exército Volturi. Os Cullen finalmente se estabilizavam em outro lugar, Forks já não era mais segura. Renesmee atingira sua fase adulta em pouco tempo, como era previsto, e agora tem que lidar com seus próprios problemas e descobertas. Mas o que ela fará quando sonhos e visões perturbadoras começam a invadir sua mente? Arriscar sua vida na procura de respostas? Ou deixar sua família e seu Jacob vulneráveis a um perigo invisível? Sol Nascente narra as histórias e descobertas da filha mestiça de Edward Cullen e Bella Swan, na procura de seu próprio destino como vampira. Ela terá de fazer escolhas difíceis e lidar com perigos que a assombram desde sua infancia. Nesse romance fictício nós poderemos preencher as lacunas de Amanhecer e descobrir as verdadeiras intenções de Aro com os Cullen, além de nos aprofundar na história de novos e misteriosos personagens.
Rising Sun
Sete anos se passaram desde a visita do exército Volturi. Os Cullen finalmente se estabilizavam em outro lugar, Forks já não era mais segura. Renesmee atingira sua fase adulta em pouco tempo, como era previsto, e agora tem que lidar com seus próprios problemas e descobertas. Mas o que ela fará quando sonhos e visões perturbadoras começam a invadir sua mente? Arriscar sua vida na procura de respostas? Ou deixar sua família e seu Jacob vulneráveis a um perigo invisível? Sol Nascente narra as histórias e descobertas da filha mestiça de Edward Cullen e Bella Swan, na procura de seu próprio destino como vampira. Ela terá de fazer escolhas difíceis e lidar com perigos que a assombram desde sua infancia. Nesse romance fictício nós poderemos preencher as lacunas de Amanhecer e descobrir as verdadeiras intenções de Aro com os Cullen, além de nos aprofundar na história de novos e misteriosos personagens.
Capítulo 1 – Cúmplices
- Ela não é uma imortal. Ela não é uma vampira. Eu posso facilmente provar isso, a lei não foi violada. Se você escutasse…
Os ecos da voz calma e suave de Carlisle romperam a névoa, onde eu já não podia ver nada.
Como se minha mente estivesse me prendendo, me obrigando a reviver um passado não tão distante…
- Eu posso cumprimentar a sua filha, adorável Bella?
A voz fina e gentil de Aro soprou em meu ouvido, quase como uma canção.
Flashes, partes e pedaços, pontas soltas que resolveram se unir para me prender nessa inconsciência perturbadora. Então, eu podia ver seus olhos vermelhos, brilhando de uma forma agourenta, me observando de perto…
- Meio mortal, meio imortal, concebida e trazida à luz por essa recém-criada enquanto ainda era humana.
Havia tanto deslumbre e cobiça em sua voz que senti meu corpo tremer, meus pêlos se eriçaram em minha nuca, e um frio repentino me envolveu, como se toda a alegria do mundo tivesse sido sugada por um ralo invisível.
Aro sorriu nas sombras daquela neblina desconexa, e de repente ele estava gargalhando, como alguém que é premiado com algo muito valioso.
Eu me perguntei o motivo para essa súbita satisfação, mas algo dentro de mim estava completamente ciente de tudo. Senti um braço frio passar por meus ombros, me trazendo um conforto imediato. Ele encostou seus lábios em meu rosto, num gesto de carinho que ocultava certo tipo de condolência, como se quisesse me dizer, eu sinto muito. A voz doce de meu pai sussurrou pra mim…
- Ele está intrigado com a idéia de… cães de guarda.
Se antes eu sentia frio, agora eu sentia-me congelada, uma única imagem irrompeu através de minhas pálpebras. Jacob.
Eu queria gritar, queria olhar nos olhos dourados de meu pai e pedir que ele nos protegesse, mas não havia mais nada. Só um grande campo vazio, onde tudo era terrivelmente verde, a grama se estendia infinitamente, como um mar de esmeraldas, o horizonte tocava o chão de todos os lados e se misturavam em tons de verde oliva. A gargalhada felina de Aro cortava o céu como um trovão, vindo de todos os lados. Eu girava em torno de mim mesma, vasculhava cada canto vazio daquele cenário agourento, mas não havia nada, todo lugar em que eu pousava meus olhos estava completamente igual aos outros, como uma caixa de espelhos. Então eu parei e fechei os olhos, deixei que minha audição me mostrasse o que minha visão não conseguia captar. O som foi diminuindo gradativamente, como se estivesse sendo levado pelo vento e, então, cessou. Eu respirei fundo, aliviando a tensão em meus ombros, relaxando aos poucos meus músculos. Abri meus olhos lentamente e estremeci com a face pálida e poeirenta que me encarava. Aro estava a um palmo de meu rosto, me encarando, me observando como quem analisa uma obra de arte obsoleta. Eu o encarei de volta, procurando respostas em seus olhos astutos. Ele sorriu gentilmente para mim, tocou meu rosto com as pontas dos dedos, escorregando até meu pescoço e pousando em minha nuca, ele tombou minha cabeça de lado, aproximando sua boca até meu ouvido, fechei meus olhos e esperei pela dor, mas ao invés disso ele apenas disse delicadamente.
- Só uma idéia errante minha querida Nessie – ele sussurrou com humor – Você sabe muito bem como é isso. Nenhum de nós consegue controlar inteiramente os nossos desejos subconscientes.
Abri os olhos na intenção de encontrá-lo. Eu queria machucá-lo como ele fazia quando me falava essas coisas, quando insinuava ameaças a mim e a minha família desse modo sutil e zombeteiro, como se tudo e todos fossem suscetíveis aos seus caprichos. Eu queria machucá-lo, mas a única forma que avistei quando abri meus olhos me fez relaxar no mesmo instante. Pai
Sentei na cama, rapidamente me desfazendo do nó de lençóis entre minhas pernas, olhei pra ele por entre os fios de cabelo que cobriam parcialmente meu rosto. Ele estava sério.
Me encarava com um misto de preocupação e reprovação que só me fez sentir mais raiva de mim mesma por manter esse tipo de lembrança escondida em minha mente. Então, relutantemente eu o olhei nos olhos com um leve rubor nas bochechas.
“Você deve estar pensando como eu sou pouco inventiva em meus pesadelos não é, pai?” Pensei o mais descontraidamente que pude.
Ele me olhou com aqueles olhos preocupados que eu já conhecia tão bem. Estava parado na porta, levemente encostado no batente, os braços cruzados sobre o peito. Eu não precisava ler seus pensamentos para saber exatamente o significado daquele vinco em sua testa, ele estava tão preocupado quanto eu com a intensidade e freqüência dos meus sonhos, mas nem eu, nem ele sabíamos – ou entendíamos – o porquê.
Ele atravessou o quarto silenciosamente, e se sentou na beirada da cama. Eu escondi o rosto entre meus joelhos e esperei que ele começasse o discurso.
- Nessie, eu não entendo. Você se lembra claramente das palavras de Aro naquela manhã, á sete anos atrás e não pode se lembrar das minhas, que são repetidas pra você todos os dias? – Ele disse sem olhar pra mim.
E ele tinha razão, eu me lembrava nitidamente daquele dia, de cada palavra dita e do medo silencioso que pairava sobre todos os que se propuseram a testemunhar em meu favor. Eu me lembrava de meu pai, me confortando todas as vezes que eu acordava aos gritos no meio da noite. Estava tão ciente da preocupação de minha mãe, minhas tias, e de toda minha família, que ao passar dos dias, sufoquei toda dúvida, todo medo dentro de mim, e implorei ao meu pai que fizesse o mesmo. E como o padrão seguia inexoravelmente, noite após noite, ele concordou em dividir comigo esse pesar sem sentido. Nós éramos confidentes, cúmplices.
- Eu posso repetir cada palavra sua, pai. Mas não posso controlar meus sonhos. Se houvesse um jeito, eu…
- Você só precisa esquecer tudo isso, e confiar em mim quando eu disser que nunca vou deixar nada te machucar. – Ele me interrompeu, me puxando para seus braços. – Além disso, sua mãe não acredita mais em mim quando eu digo que você está bem, olhe pra você Nessie, está visivelmente atormentada por essas lembranças sem sentido.
Ele tinha razão, eu precisava me livrar desses pesadelos. Eu não dormia uma noite inteira há muito tempo e isso era realmente desgastante. Era ainda pior por que eu era a única que precisava dormir naquela casa, e a mais protegida, a mais vigiada, a mais observada…
- E a mais amada, não se esqueça disso. – Ele tirou um fio de cabelo de meus olhos e me encarou docemente.
- Eu sei, sei disso muito bem e não vou me esquecer, eu só… só preciso saber o que fazer pra parar isso, mas por enquanto, pai, eu quero que mantenha nosso trato. Não há motivos pra preocupar todos eles com uma besteira qualquer.
- Você é impossivelmente igual a sua mãe, sabia disso? – Ele sorriu gentilmente.
Eu sorri de volta e disse:
- Sei… você também me lembra disso todo tempo.
Trocamos um olhar silencioso por alguns instantes e então, ouvimos passos se aproximando da entrada da casa. Ele se levantou e caminhou para porta lentamente.
- Os outros chegaram, parece que a caça foi boa. – Ele sorriu – Vista-se, Jacob está com eles.
Meu pai saiu do quarto, fechando a porta atrás de si, tentando recompor a tranqüilidade em sua expressão. Eu desabei o corpo na cama, sentindo o cansaço se esgueirar por mim, e novamente me condenei pelos malditos sonhos. Graças a eles eu estava quase constantemente com cara de zumbi e minha mãe ficava mais desconfiada a cada dia. Me espreguicei longamente e me levantei. Fui até o espelho verificar os estragos de mais uma noite. Eu estava com cara de… vampira. Mais especificamente a versão vampírica de Bram Stoker. Ensaiei a expressão mais feliz e despreocupada que eu tinha e me preparei para mais um ato. Pensar em Jacob lá em baixo, me esperando, ajudou a melhorar minha aparência, e meu humor.
Capítulo 2 – Segredo
O sol já estava parcialmente encoberto pelas árvores, a noite se aproximava. Jacob e eu tínhamos escapulido dos outros para ter um pouco de privacidade e para fugir das caretas deRosalie. Nós caminhamos pelos arredores da casa e retornamos ao chalé de Jacob, onde uma pequena campina se estendia ao leste. Jogamos algumas partidas de xadrez e depois da décima derrota consecutiva, Jacob desistiu de jogar. Nós nos deitamos na grama e ficamos olhando o céu escurecer aos poucos.
Furtivamente analisei Jacob, ele me olhou em resposta, sustentando meu olhar.
- Jake, pare de me olhar assim. – Eu cobri o rosto com as mãos, envergonhada com a expressão abobalhada de Jacob.
- Assim como? – Perguntou ele inocentemente.
- Como se eu fosse uma paisagem. – Eu retruquei, revirando os olhos para ele.
- Não, você é melhor que isso. – Ele suspirou, sorrindo e tocando de leve a ponta do meu nariz.
Estar com Jacob era uma terapia pra mim, um antídoto pra todas as minhas angústias. E funcionava assim pra ele também, eu podia ver isso exposto cada vez que ele sorria daquele jeito que me fazia desejar ser ou fazer qualquer coisa só para mantê-lo sorrindo assim.
Quando tivemos que nos mudar de Forks há alguns anos, a questão que ficava em debate constantemente era Jacob e Renesmee. Eu me recusava ir sem Jacob, e ele se recusava a ficar sem mim. Eu não queria deixá-lo, mas não queria que ele abandonasse seu pai, sua casa, sua matilha… Ele não queria ficar longe de mim, mas eu sabia o quanto custava a ele abandonar seu povo para seguir um bando de vampiros. A solução diplomática pra tudo isso partiu de meu pai.Jacob viria para New Hampshire conosco, nós providenciaríamos uma casa para ele, bem próxima da nossa, por que, segundo meu pai, “a questão do fedor seria um grande problema para todos” e morar na mesma casa estava fora de questão para ambos os lados. Nossa casa aqui era basicamente uma adaptação fiel à casa de Forks, muito ampla e aberta, e completamente isolada da civilização, “sem vizinhos, sem problemas” como dizia Emmet.
Esme providenciou um chalé confortável para Jacob, à apenas três quilômetros de nossa casa, e deu ao lugar um toque La Push, para que Jake não sentisse tanta saudade de casa. Era o espaço confortável que todos queriam. Sem os olhos e ouvidos – e narizes – aguçados para atrapalhar.Rose adorava chamar de “a casinha do cachorro”.
- No que você está pensando? – Jacob me olhava com curiosidade, visivelmente incomodado com meu silêncio.
- Em nada Jake, só estou vagando sem rumo. – Eu sorri pra ele e puxei uma mecha de seu cabelo.
- Hum… – Ele resmungou, me puxando num aperto de aço.
Ele me segurou restritamente, me impedindo de mover os braços, ele sabia que eu revidaria, e nós rolaríamos pela grama num combate mais carinhoso do que agressivo.
Eu rolei por cima dele, escorreguei de seu abraço e livrei meus braços. Pousei no chão em posição de ataque, com um sorriso zombeteiro no rosto. Jake avançou para mim de frente, num ataque que mais parecia um abraço do que qualquer investida hostil. Então ele me pegou pela cintura e me jogou sobre o ombro, e eu fiquei lá, de ponta cabeça esperando que ele me libertasse. Ele me pôs no chão gentilmente, rindo do meu cabelo todo bagunçado. Eu ri também porque o cabelo dele – na altura dos ombros – estava tão emaranhado e cheio de grama quanto o meu.
Ele parou de repente, sustentando meu olhar, o rosto calmo e gentil. Era incrivelmente difícil enxergá-lo como um amigo quando ele me olhava dessa forma. Eu cresci ao lado de Jacob, eu devia vê-lo como um irmão mais velho ou algo assim, mas alguma coisa dentro de mim tremia toda vez que ficávamos tão próximos.
Ele tocou meu rosto com a ponta dos dedos, e suavemente desceu até meu pescoço. Ele se aproximou mais um passo, e outro, e então, ele estava a um palmo do meu rosto. Eu fechei os olhos, e ele se inclinou. Eu esperava que ele me beijasse – eu ansiava por isso – mas ao invés disso ele tocou minha nuca, e inclinou minha cabeça para o lado. A sensação de déja vú me invadiu tão subitamente que eu me esqueci completamente do desejo de beijar meu – até então – melhor amigo. A imagem de Aro dançou por minha mente me fazendo estremecer, e o ódio me cegou tão completamente que eu não pude conter a onda maciça de calor que desceu por minha espinha. Sem pensar em nada além daqueles olhos malignos me espreitando, eu ataquei Jacobcom toda a ira e selvageria que um vampiro podia sentir.
***
Entrei pela porta num rompante, ofegando de desespero. Olhei em volta, procurando qualquer rosto familiar que pudesse me ajudar a trazer Jake para casa. Com um único momento de descontrole eu quebrei suas duas pernas, um braço e algumas costelas. Se qualquer outro vampiro tivesse tentado algo assim, certamente estaria em pedaços agora, mas Jake nunca me machucaria. Eu o deixei lá, estirado no chão, morrendo de dor e mais confuso e perplexo que eu. Eu queria ter ficado lá, e implorado seu perdão, explicado todos os motivos sórdidos para aquela reação horrível, mas eu precisava me apressar. Jake se curava rápido demais, e eu não queria ter que ver Carlisle refazer as fraturas para que se curassem no devido lugar. Olhei em volta mais uma vez e tentei escutar alguma presença no andar de cima. Haviam duas pessoas em casa.
- Mãe, Alice – Chamei, num clamor sufocado de angústia e desespero.
Meio segundo depois elas estavam em minha frente, me olhando com uma expressão que parecia estar espelhando a minha. Abri minha boca para explicar, mas minha garganta se fechou, e eu só consegui fazer uma careta de dor.
- Nessie, o que houve querida, o que aconteceu? – Minha mãe segurava meu rosto entre as mãos, tentando me fazer focar nela.
Alice encarava alguma coisa em minha roupa, os olhos arregalados de um medo súbito.
- Bella, acho que ela feriu alguém – Disse Alice numa voz tremula.
Eu podia imaginar o que Alice suspeitava, olhando minha roupa toda suja de sangue e meu rosto desesperado.
Nesse instante eu me obriguei a reagir, Jake estava lá fora, ferido.
- Mãe, Jake está ferido, onde está Carlisle, preciso dele, agora! – Eu despejei as palavras de uma vez. Olhei em volta, procurando mais alguém que eu queria consultar. – Onde está o papai?
- Ele está caçando com Emmet e Jasper, Carlisle está no hospital. Nessie, onde o Jake está? – Ela me olhava cheia de preocupação, esperando por mais respostas.
Mas eu não disse mais nada. Disparei porta afora, levando minha mãe e Alice comigo. Durante os cinco minutos que corremos para alcançá-lo eu só consegui pedir para Alice localizar Carlisle e mandá-lo para casa. Quando o assunto era Jacob, nós precisávamos agir rápido.
Quando chegamos até a pequena campina ao lado do chalé de Jacob, minha mãe quase surtou. Ela tapou a boca, incrédula, quando viu Jacob estirado no chão, todo quebrado, impossibilitado até mesmo de respirar regularmente.
- Meu Deus, Jake, quem fez isso com você? – Ela perguntou enquanto corria os olhos pelo corpo ferido de Jacob.
Jake olhou pra mim com o rosto lívido e se inclinou para traz, encostando a cabeça num tronco de árvore. Eu estava alguns passos atrás, tentando evitar aquela imagem. Jacob estava com o braço esquerdo inerte sobre a barriga, sentado desajeitadamente no meio das árvores. Ele então chamou meu nome, num tom baixo e gutural.
Eu o fitei, a culpa pesando em meus ombros, e caminhei lentamente até ele. Ao passar por Alicesussurrei para ela de uma forma que só ela podia ouvir.
- Vá buscar Carlisle, e leve minha mãe com você – Ela me olhou confusa, mas apenas acenou um “sim” silenciosamente.
Me agachei perto de Jacob, e peguei sua mão enorme e quente. Assim que Alice conseguiu arrastar minha mãe dalí, eu comecei a chorar. Jacob me olhava atônito, sem saber o que dizer, sem poder se mover.
- Jake, me desculpe, eu perdi o controle, eu não… nunca te machucaria Jake, eu… eu não sei o que deu em mim – As palavras jorravam de mim e soavam desconexas naquele momento, eu não conseguia achar um sentido nelas.
Jacob soltou sua mão da minha, e tocou meu queixo, me fazendo olhar em seu rosto. E disse calmamente:
- Tudo bem Nessie, não foi tão grave assim. O que está me ferindo realmente é olhar em seus olhos todos os dias e ver algo te perturbando tanto… e que mesmo assim você prefere esconder de mim. – Ele deixou cair sua mão até meu joelho, e me encarou tristemente. – Já faz dias que eu venho percebendo essa sua inquietude, mas toda vez que eu pergunto o que há de errado, você desconversa. Eu não sei o que é Ness, mas, olhe até onde as coisas foram. Você não consegue mais se controlar, seja o que for que esteja acontecendo está te fazendo ferir as pessoas que te amam. Ou você acha que eu não percebo a preocupação que Edward tenta esconder da sua mãe?
O que mais eu podia dizer? Ele estava certo sobre mim, sobre tudo. Eu estava fora de controle e estava sendo tão miseravelmente egoísta com Jacob, que nem ao menos conseguia olhá-lo nos olhos.
Ele merecia saber. Eu devia a ele mais que as desculpas esfarrapadas que eu inventava para sua preocupação com minhas olheiras arroxeadas, minhas respostas hostis quando alguém me pegava desprevenida. Eu estava constantemente em modo de alerta, como se estivesse esperando que alguém me atacasse. Eu estava pirando, meus sentidos tinham pifado.
- Jake, eu prometo que vou lhe contar tudo, mas, por favor, me deixe cuidar de você primeiro, eu não suporto te ver assim, ainda mais sabendo que fui eu quem fez isso. – Eu o olhei tristemente e afaguei seu rosto.
O que começou com um pesadelo, estava se tornando uma doença. Eu precisava encontrar uma forma de parar isso, de recobrar minha sanidade. E se negligenciar aqueles sonhos não surtia efeito algum, eu tomaria o caminho oposto. Eu iria até o fim – até a Itália se fosse preciso – para descobrir o que minha mente estava tentando me dizer esse tempo todo. Nada podia me convencer do contrário. Aro tinha planos para mim, e seja qual forem esses planos, também envolviam Jacob.
Capítulo 3 – Confissão Rising Sun a Historia
Capítulo 3 – Confissão
- Pai, eu não sei como fazer isso. Eles vão pensar que eu pirei de vez – Sussurrei calmamente para ele.
A família toda estava reunida na sala de jantar, todos sentados em volta da grande mesa de mármore escuro que Esme sempre decorava com um vaso de flores silvestres. Uma reunião de família.
Depois de socorrermos Jacob e o acomodarmos em meu quarto, meu pai me fez prometer que eu contaria tudo. Manter segredos em nossa grande e talentosa família era praticamente impossível. Então, essa noite eu seria a anfitriã de mais uma reunião no clã dos Cullen.
- Eles são sua família Nessie, não há nada que você não possa nos contar, e não por que eu vou ler na sua mente, ou Jasper vai sentir em suas emoções. Se Alice pudesse ver você e Jacob ela com certeza não teria te julgado também. – Ele tocou minha mão, me encorajando a admitir minha insanidade e meus receios infundados para os sete vampiros que me olhariam docemente e me confortariam do modo protetor que cada um deles reservava para a caçula meio humana da casa. Mas mesmo assim, eles mereciam uma justificativa para minha atitude medonha com Jacobnaquela tarde, e eu, prometera a meu pai esclarecer as coisas de uma vez.
- Que assim seja então, pai. Vamos acabar logo com isso! – Me levantei da beirada da cama ondeJacob dormia profundamente e caminhei para a porta me sentindo envergonhada. Antes de sair, olhei para Jacob dormindo, seu rosto estava pacífico, e seu enorme corpo estava inerte, envolto em meus lençóis brancos. Respirei fundo.
- Ele vai ficar bem Ness, Jacob é forte, feito especialmente para agüentar esse tipo de agressão de vampirinhas nervosas, e… – Ele hesitou, deixando desaparecer o tom brincalhão de sua voz -… Ele gosta muito de você Nessie, mais do que você julga, ele vai te perdoar antes mesmo do primeiro osso quebrado cicatrizar.
Olhei para Jacob mais uma vez, e saí do quarto. Mantive a velocidade de um humano que está se dirigindo para sua sentença de morte. Meu pai me acompanhou, descemos as escadas juntos, degrau por degrau, de mãos dadas. Enquanto descíamos, eu mostrei a ele uma imagem de desenho animado, onde o gato se aproxima da forca e a marcha fúnebre é tocada ao fundo. Nós rimos baixo, numa compreensão que só era possível com meu jovem pai talentoso.
***
A sala de jantar estava envolta em tensão e dúvidas silenciosas. Jasper estava sentado rigidamente ao lado de Alice, e pela sua expressão a tensão no ar não fazia mais bem a ele do que a mim. Carlisle encabeçava a cúpula dos Cullen, em seu lado esquerdo estavam Esme, Rosalie eEmmet. Do lado direito, minha mãe, Alice e Jasper.
Pedi a meu pai que ficasse comigo, que me ajudasse a explicar toda aquela loucura a minha família. Nós nos mantivemos em pé, na outra extremidade da grande mesa retangular. Eu passei meus olhos por cada rosto pálido e rígido na mesa, e então comecei…
- O que ocorreu essa tarde com Jacob e eu, foi um descontrole da minha parte. Nós estávamos envolvidos num tipo de luta divertida e então… – Eu parei. Esse não era o ponto crucial dessa conversa, e o único que importava de fato. Eu estava enrolando, dando voltas desnecessárias. Respirei fundo e me preparei para a confissão.
- Há alguns meses atrás, eu comecei a ter sonhos, ou melhor dizendo, pesadelos um tanto…realistas demais. Todos vocês se lembram muito bem de como eu acordava no meio da noite. – Eu os olhei novamente, observando suas reações. – Algum tempo depois eu disse a vocês que os pesadelos haviam desaparecido, mas eu menti. – Minha mãe lançou um olhar indignado a meu pai e depois a mim. Ela estava se sentindo enganada por nós dois, eu queria me desculpar, mas eu ainda tinha muito a contar.
- Eles continuaram com a mesma freqüência, noite após noite eu revivia aquela manhã em Forks, noite após noite eu ouvia Aro repetir aquelas mesmas palavras. – Eu parei, relembrando meu sonho repetitivo.
- Ah querida, porque não nos contou? – Esme resmungou do outro lado da mesa, com suas feições retorcidas numa angústia maternal.
- Eu não quis preocupar ninguém Esme, afinal, eram apenas sonhos. Mas as coisas foram fugindo do meu controle, e isso começou a afetar meus sentidos. Da última vez que Emmet tentou um de seus ataques surpresa eu quase arranquei seus braços… – Eu parei olhando para minhas mãos, envergonhada.
- É… eu me lembro disso – Disse Emmet rispidamente. Rosalei o cutucou de leve.
- Continue querida – A voz calma de Carlisle me incentivou.
- Bem, eu não podia esconder nada de meu pai, então eu praticamente o obriguei a não comentar nada com vocês, especialmente com você mãe. – Eu lancei um olhar de desculpas para ela. Ela devolveu o olhar sem expressão alguma, apenas me olhava como quem olha uma parede.
- E então, os dias foram passando, e nada mudou, eu estava certa de que eram apenas lembranças da minha curta infância, mas depois de hoje, eu não tenho tanta certeza. – Eu olhei para meu pai, parado, imóvel em meu lado. Ele olhava para minha mãe com um misto de arrependimento e dor. O resto deles me ouvia atentamente, sem transparecer nenhum sentimento evidente. O silêncio voltou à sala, pairando sobre nossas cabeças. Depois de alguns minutos, Alice falou:
- O que você quer dizer com “agora não tenho tanta certeza”? – Perguntou ela.
- Quero dizer que ter pesadelos repetitivos assim não é algo muito normal, eu estou convencida de que eles significam mais do que apenas lembranças. – Falei seriamente.
- Mas Ness, o que mais pode significar? Eu estou de olho em Aro e nos Volturi o tempo todo, se eles tentassem algo, eu saberia. – Disse Alice, quase indignada.
- Não sei Alice, sinceramente não tenho uma resposta para isso. Eu apenas sinto que algo não está certo, além disso, todos nós sabemos como Aro pode ser inventivo quando quer algo. – Olhei sombriamente para ela.
- Então é disso que se trata? – Minha mãe falou pela primeira vez, sua voz estava séria, grave. – Você acha que Aro vai tentar alguma coisa contra nós?
- Contra nós não, querida. – Disse meu pai numa voz calma e suave – Os sonhos de Nessie são basicamente repetições de fatos que ocorreram na clareira aquele dia, mas vendo todas as reprises na mente dela eu já posso arriscar um padrão. Ela teme por Jacob. – Ele me olhou calmamente.
- O que o cachorro tem a ver com isso? – Perguntou Rosalie, mal humorada.
- Eu vejo a cobiça de Aro. Como se, de alguma forma ele quisesse a nós dois, como se ele já tivesse isso… – Eu tentei explicar.
- Ness, você sabe que isso é pouco provável. – Interrompeu Carlisle – Mesmo que Aro pretendesse alguma coisa com vocês, nós saberíamos de alguma forma. Alice está de vigia e qualquer desconhecido que Aro envie até nós seria facilmente detectado por seu pai. Querida, nós não estamos desprevenidos. Desde a última visita dos Volturi, nós nos preparamos. Você não precisa se preocupar tanto assim. – Carlisle me olhava serenamente, tentando me confortar.
Eu não podia negar. Carlisle tinha certa razão sobre isso, nós estávamos realmente preparados para os Volturi. Nós tínhamos as peças em seus lugares, preparadas para interceptar o inimigo. Mas isso não mudava nada.
Os sonhos continuaram irredutíveis e imutáveis. Os olhares de minha família sobre mim ganharam uma forma atenta, quase como se eles estivessem esperando um novo surto.
Jacob se curou rapidamente, e assim que pôde se manter em pé, ele quis voltar para seu chalé, sob a alegação de “vocês fedem muito.”
Minha mãe e meu pai se entenderam nos cinco minutos seguintes ao fim da reunião. E eu sabia que tudo ficaria bem e deixei que esse assunto fosse superado por todos. Apesar da constante vigia de meu pai e minha mãe, eu resolvi não me importar.
Eu decidi, então, me dar uma última chance de cura. Eu continuaria a viver minha vida normalmente, deixaria que todos os pesadelos simplesmente se cansassem de mim, como eu me cansei deles. Eu nunca mais iria preocupar ninguém com meus devaneios, nunca mais deixaria meus sentidos me controlarem, nunca mais pediria que meu pai mentisse por mim. Nunca mais machucaria Jacob.
Capítulo 4 – Visões
A nova rotina dos Cullen seguia o velho padrão – com algumas leves adaptações. Alice, meu pai e eu, éramos irmãos, filhos de Carlisle e Esme. Rosalie e Jasper eram os sobrinhos de Esme que moravam com a tia desde pequenos. Emmet e Rose se recusaram a cursar mais uma vez a secundária, por isso agora Emmet era o marido de Rosalie. Eles se casaram pela décima vez no outono passado. Minha mãe era sobrinha de Carlisle, e Jacob era seu afilhado. Com o aumento da família, aumentou também o falatório das pessoas, que sempre pareciam ter comentários sobre a estranha relação dos Cullen.
Alice, Jasper, papai e mamãe, se matricularam em Dartmouth logo no nosso primeiro ano em New Hampshire. E eu, finalmente tive a chance de ir á escola.
Com o fim do prazo estabelecido para meu total desenvolvimento – seis anos e meio, mais ou menos – meus pais me questionaram sobre minhas aspirações.
Eu recebi educação domiciliar durante toda minha curta vida, devido a meu crescimento acelerado. Agora, eu já era considerada uma meio vampira adulta, e poderia freqüentar uma escola, interagir com humanos, ter uma vida normal.
Eu estava um pouco receosa, mas achei que se eu finalmente fosse para uma escola e convivesse com outros humanos, eu poderia provar para meu pai e minha mãe que eu estava sob controle, recuperada e pronta para essa nova experiência.
Essa foi minha deixa. Eu e Jacob nos matriculamos na secundária no meio do semestre. Eu estava realmente agradecida a ele por me acompanhar, uma vez que Jake já tinha cursado a secundária por duas vezes.
Foi espantosamente fácil conviver com todos aqueles cheiros diferentes. O sangue humano não exercia em mim o efeito perturbador que castigava Jasper, mas mesmo assim, eu me mantive relativamente longe de qualquer relação direta com humanos. Talvez mais pelo fato deles não despertarem nenhum real interesse em mim, ou talvez porque ter Jacob como colega de classe, obstruísse completamente minha visão.
Participar diretamente da rotina dos humanos me fez entender e experimentar situações e sensações que eu até então desconhecia. Como o ciúme que eu senti quando Jacob abriu seu armário e encontrou um bilhete anônimo de uma admiradora, sentimento que até então eu não tinha vivenciado, por que eu nunca precisei dividir Jake com ninguém. Ou a satisfação petulante que me invadiu quando ele rejeitou um encontro com a senhorita popular da escola. Eu não gostava da idéia de dividir meu melhor amigo com ninguém, não gostava de quando as pessoas – principalmente as do sexo feminino – o cercavam pelos corredores da escola.
Eu pude entender melhor as relações humanas, seu modo de agir e pensar, e pude perceber claramente em cada rosto perplexo, o efeito que nós, seres sobrenaturais, exercíamos sobre eles.
As coisas corriam em seus trilhos, a normalidade excêntrica de nossa família finalmente alcançara nossas vidas.
Era uma manhã de sexta feira, eu e Jake caminhávamos tagarelando sobre a possibilidade de uma caçada mais além dos limites do estado. Entramos na sala onde seria nossa próxima aula e nos sentamos em nossa mesa de costume. Foi ali, rabiscando o formato de um sol no braço de Jacob, tentando prestar atenção nas palavras monótonas de um professor qualquer, que eu tive a visão mais nítida e forte que jamais tivera em sonho algum.
E eu estava completamente desperta.
***
Jacob me sacudia pelos ombros, tentando me fazer focar em sua voz. Mas meus olhos estavam entorpecidos, como se tivessem sido encobertos por um véu. Eu o ouvi chamar meu nome, mas não conseguia encontrar minha voz, não conseguia dizer a ele que eu podia ouvi-lo longe. Eu queria que ele me abraçasse, e espantasse o frio que subia por meu corpo lentamente, ganhando um membro por vez. Eu ouvia as pessoas em volta, gritando umas com as outras, chamando meu nome. E então todo e qualquer barulho cessou.
Eu o vi subir as escadas, degrau por degrau, e adentrar a ampla sala vazia. Uma luz fraca entrava pela parede de vidro, revelando uma grande calda no canto mais distante da sala. O estranho se aproximou lentamente do piano de meu pai, tocou a superfície plana com suas mãos pálidas – eu quase pude sentir a temperatura delas. Ele contornou a extensão da calda até pousar seus dedos nas primeiras teclas de marfim e soou uma nota grave e hostil. O som ecoou pelos cantos vazios da grande casa e cessou, deixando um silencio plácido encher meus ouvidos. O vento soprou pela porta entreaberta e fez as cortinas brancas se agitarem num movimento cadenciado. O homem sem rosto, sem nome, então partiu, deixando para traz uma flor e um bilhete. Num último sopro, o vento revelou uma palavra no papel.
Nessie
O baque oco exaltou as pessoas que estavam em volta, elas se afastaram alguns passos para traz, seus rostos variavam do medo ao espanto. Somente Jacob ainda estava perto o suficiente para eu alcançá-lo. Agora eu podia sentir o calor de sua pele na minha. Ele envolveu meu corpo com os braços e me carregou para fora da sala. O ar frio encheu meus pulmões e clareou minha mente. Jacob me olhava nos olhos, procurando algum indício de hostilidade – ou sobriedade. Eu o olhei fixamente, e então eu percebi que estava lutando contra seu abraço. Imediatamente eu relaxei, e deixei que ele me dominasse. Jacob percebeu minha rendição e suavizou um pouco a pressão de seus músculos contra meu corpo. Ele me sentou delicadamente num banco esquecido no fim do corredor, pegou meu rosto nas mãos grandes e quentes e disse.
- Ness, está me ouvindo? Fale comigo. – Jacob sussurrava aflito, seu hálito quente em meu rosto.
- Jake, eu… eu vi, foi tão real… – Eu queria fazê-lo acreditar em mim, queria que tanto ele quanto o resto da minha família desse a importância que eu dava a essas coisas que me assaltavam sem aviso prévio ou qualquer explicação.
- O que Nessie, o que você viu? Me mostre. – Jacob pegou minhas mãos e colocou em seu rosto. Eu fechei os olhos e me concentrei na visão. Mostrei a ele a repetição exata da cena, demorando-me nos detalhes nítidos e assustadores que eu pude ver.
Ele abriu os olhos e me encarou assustado. Nesse momento o professor – do qual eu não me lembrava o nome – atravessou o corredor em nossa direção. Ele estava pálido, ofegando.
- Mais o que diábos aconteceu lá dentro, senhorita Cullen? – Ele se agachou em minha frente e me examinou com os olhos meio arregalados.
- Foi uma forte enxaqueca, Sr. Anderson, ela tem essas crises desde que era garotinha – Jacob mentiu, sua expressão séria e sua voz calma fizeram o Sr. Anderson aceitar facilmente sua explicação.
- Mas rapaz, ela quebrou uma mesa… – Disse Sr. Anderson com espanto.
- A mesa já estava meio velha, eu mesmo percebi isso quando me sentei nela outro dia. Além disso, nós pagaremos pelos danos. – Jacob tranqüilizou-o
Os dois continuaram discutindo o ocorrido em voz baixa. Deixei minha mente vagar até aquela sala, grande e vazia. O entalhe da porta de madeira, larga, pesada… O piano no canto da sala, parcialmente iluminado pela luz fraca que vinha da parte norte da grande casa branca. Ele estava em Forks, na casa em que nasci, na casa em que meus pais se casaram, na casa em que Jacob me pegou no colo pela primeira vez. Ele esteve lá, a minha procura.
Eu não sabia quem ele era, mas eu tinha quase certeza de que, se eu fosse até lá, agora, nesse exato momento, eu encontraria um bilhete endereçado a mim.
Era uma visão, e não um sonho. Fiquei me perguntando se Alice também vira algo. E questionei ainda mais o fato dessas visões estarem ligadas a mim. O cargo de “advinha” da família era de Alice, não meu.
Jacob convenceu o Sr. Anderson a deixar que ele me levasse para casa. Ele disse que explicaria o ocorrido a meus pais e eles entrariam em contato em breve. Nós assinamos a dispensa e caminhamos lentamente para o estacionamento.
- Jake – Eu rompi o silencio.
- Sim – Ele respondeu gentilmente.
- Precisamos conversar. – Eu o olhei seriamente, e ele retribuiu apenas com um aceno silencioso.
Capítulo 5 – Decisão
Ainda faltavam três horas para o fim do último período. Jacob dirigia silencioso para fora da cidade. Eu não consegui pensar no que dizer – ou como dizer. Minha mente estava cheia de uma apreensão desconhecida, da qual eu nunca tinha experimentado. Alguma coisa dentro de mim ansiava por respostas e essa sensação só foi multiplicada pela estranha visão.
Eu sabia o que devia fazer, sabia o que era o certo. Eu deveria ir para casa, contar à minha família o ocorrido, pedir conselhos a Alice, a Carlisle, e tomar qualquer decisão em conjunto. Quando se tratava da segurança de todos, nós éramos uma instituição, e não indivíduos. A segura e pacífica instituição dos Cullen.
Sim, isso seria o certo. Mas quase todo o meu ser se desvencilhou dessa idéia, por que contar a eles significava de muitas formas, colocá-los em perigo. E Aro sabia disso. Sabia que minha primeira atitude seria contar a meus pais e mandá-los diretamente até o ponto de encontro. Até sua armadilha, por que era isso que parecia, não importasse de que ângulo eu pensasse a respeito.
Essa foi a única conclusão em que cheguei durante todo o caminho para lugar algum. Eu não daria a Aro o que ele tanto queria, seja lá o que fosse. Mas Jacob precisava saber, tanto pelo fato de eu ter jurado nunca mais esconder nada dele, quanto por sua segurança. Ele precisaria estar preparado, caso meus sonhos resolvessem se realizar. Estremeci com o pensamento de Jacob sob domínio Volturi.
Nós paramos algum tempo depois num lugar que me parecia ser… o Nada. Eu suspirei e sai do carro. Me sentei no capô e fitei o horizonte. Jacob se colocou ao meu lado, me olhou, esperando que eu começasse. Estava com um pesar implícito no olhar, a preocupação vincando sua testa. Eu abri a boca para começar a falar, mas Jacob me cortou.
- Antes de qualquer coisa Ness, eu quero que me prometa que você não vai ir embora. E se você for pelo menos me leve com você. – Ele fitava o chão, a voz meio tremula e ansiosa.
Eu o olhei incrédula. Como ele podia me conhecer tão bem assim? Eu nem mesmo tinha dito uma palavra se quer sobre qualquer coisa a esse respeito, nem ao menos tinha pensado nisso. Mas depois que pensei no que ele acabara de deduzir, eu sabia que era essa minha decisão, a única que eu conseguiria chegar se tivesse pensado a respeito durante toda a noite. Jacob se antecipou, sabendo que eu não deixaria as coisas sem uma explicação aceitável, sabendo que eu seguiria meus instintos e não sossegaria até encontrar respostas.
Eu balancei a cabeça, tentando clarear as idéias que estouravam em minha mente. Olhei nos olhos escuros e profundos de Jacob e sorri.
Sorri porque eu já sabia o que fazer, e por que eu não precisaria esconder nada dele.
- Jake, nós vamos voltar. Vamos para Forks. Preciso saber se estou apenas enlouquecendo, ou se minha família – E você… Pensei comigo – está em perigo.
- Tudo bem, então, nós devíamos voltar logo e avisar os outros. – Ele não tinha captado a essência do plano.
- Jake, quando digo “nós” eu me refiro a você e eu. Ninguém pode saber que estamos partindo – Eu falei entredentes.
- E como diabos vamos fazer isso sem que Edward descubra? – Ele perguntou num tom meio exaltado.
- Nós temos pouco mais de duas horas para descobrir, então, sugiro que comece a pensar senhor Jacob Black – Eu sorri maliciosamente para ele. Mas apesar do tom brincalhão que eu tentava tingir minha voz, por dentro eu estava um pouco desorientada. Jacob tinha razão, era praticamente impossível esconder algo de meu pai. Ainda mais se esse “algo” martelasse em sua cabeça como uma fanfarra descontrolada.
Devia existir algum jeito de burlar a atenção de meu pai sobre mim. Pelo menos até que eu e Jacob estivéssemos suficientemente longe para que ele não nos ouvisse planejar a fuga.
Mas eu precisaria voltar para casa e encenar para toda minha família mais um dia normal de escola. E eu não fazia idéia de como conseguiria manter minha mente longe daquela visão perturbadoramente nítida que sofrera mais cedo, nem dos planos que começaram a se formar sem que eu me desse conta. Além disso, seria um esforço em conjunto, Jacob precisaria ser tão bom quanto eu para esconder de meu pai as imagens que mostrei a ele. Ou eu poderia…
- Jake – Eu quebrei o silencio depois de alguns minutos – Você já percebeu que o que eu faço é basicamente o contrário do que meus pais podem fazer? – Ele me dirigiu um olhar confuso e desconfiado por um momento e depois respondeu:
- O que você quer com isso? – Disse ele, inconscientemente se inclinando para mim.
- Bem, meu pai basicamente retira informações da mente das pessoas, ele as lê. – Tentei explicar meu súbito raciocínio – E minha mãe mantêm as pessoas fora da mente dela, longe de seus pensamentos. Eu faço exatamente o contrário. Ao invés de ler as pessoas, como meu pai, eu as deixo ler meus pensamentos. E ao invés de bloqueá-las, como minha mãe, eu as deixo entrar em minha mente. – Jacob aquiescia, ponderando minhas palavras.
- Então eu estava pensando, se eu conseguisse me concentrar em algo suficientemente forte, imagens, fatos, sei lá… eu poderia implantá-las em sua mente e nosso único trabalho seria nos focar nelas. Dessa forma meu pai não desconfiaria de nós, por que passamos o dia juntos, fizemos as mesmas coisas… – As palavras foram sumindo a medida em que eu era absorta nessa possibilidade. Eu poderia fazer isso. Eu só precisava criar uma realidade artificial em minha mente e me concentrar nela, tornando-a convincente. Mas o que diabos poderia ser forte o suficiente para eclipsar as imagens assustadoras que agora ocupavam totalmente minha mente?
Era um bom plano, o único que consegui arquitetar. A única forma de enganar meu pai seria essa. Mas eu precisaria de muita concentração, não poderia deixar escapar nenhum fio de autocontrole. Eu não poderia vacilar em meus pensamentos. Não poderia haver hiatos em meu disfarce. A vida de todos dependia disso. Isso teria que bastar para nos dar mais tempo.
- Ness, sinceramente, eu não entendo como isso pode nos ajudar. – Jacob coçava a cabeça, meio perdido em seus próprios pensamentos. – E eu preciso ressaltar também, que seu pai vai me matar quando descobrir que eu ajudei você a fugir, e depois dele, Bella, e depois Rosalie…
- Eu pensei que você fosse um lobo e não um gatinho com medo dos vampiros maldosos – Eu sorri, encorajando-o – Não se preocupe Jake, eu vou estar entre você e o resto da família, vou te proteger. – Dei uma piscadela para ele – E se serve de consolo, eles podem te matar apenas uma vez.
- Há Há, muito engraçado. É sério Ness, como vamos fugir de uma casa cheia de saguessugas com super audição, que não dormem e que ainda por cima vivem chocando você como se você fosse um ovo de galinha? – Ele estava visivelmente pessimista, e eu não podia culpá-lo.
- Olha só quem fala. Você é tão superprotetor comigo quanto qualquer um deles – Fechei a cara para ele.
- Ok, culpado – Ele ergueu uma mão, assumindo a culpa – Mas nesse caso, eu estou com você. Eu não deveria, é claro. Mas eu sei que você vai sem mim se eu não te ajudar – Ele me olhava preocupadamente – E eu não quero você por aí, seguindo o rastro de um maluco invasor de casas. – Ele fez um beicinho e cruzou os braços no peito.
- Eu não poderia ir sem você de qualquer forma, Jake – Afaguei seu braço – Não consigo ficar sem você mais do que algumas aulas de biologia. – Eu sorri para ele ao perceber que um leve rubor denunciava sua expressão séria. Ele então se rendeu e sorriu também.
Me pegou num abraço quente e forte e enterrou seu rosto eu meus cachos para cochichar em meu ouvido.
- Você é uma pestinha Renesmee Cullen – Nós rimos em uníssono por um minuto e permanecemos nos braços um do outro. Nenhum de nós queria se soltar, por que ali era o lugar mais seguro do mundo, onde nem meus sonhos com Aro, nem a distancia da família e dos amigos e nem a necessidade de ter que partir sem aviso prévio nos fazia algum mal. Era onde nós nos esquecíamos de tudo, onde nossas mentes, corpos e almas se abrigavam da tempestade. Alí, nos braços quentes e firmes de Jacob, minha mente estava a salvo.
Num estalo de percepção súbita eu de repente sabia o que fazer.
- Jake – Eu o soltei e encarei seu rosto – Você precisa me beijar!
***
Jacob me olhava meio incrédulo meio chocado. Sua boca se abriu ligeiramente e seu rosto parecia ter congelado. Eu já estava ficando embaraçada com seu olhar sobre mim e então, resolvi quebrar o silencio – e o choque.
- Calma Jake, não precisa ter um ataque cardíaco. Estou ouvindo seu coração ter um treco, se acalme – Eu tentei tranqüilizá-lo, mas ele permanecia congelado em seu lugar.
- Olhe, eu preciso de algo forte o suficiente para focar meus pensamentos, e os seus também – Eu já podia sentir meu rosto corar – Eu sei que pra você é estranho ouvir isso de mim, afinal, nós fomos amigos por toda vida, mas nós estamos sem tempo para pensar em algo menos… embaraçoso.- Eu o olhei de esguelha. Ele estava mudo, eu podia ouvir a confusão explodindo dentro dele. Onde eu estava com a cabeça? Propor algo assim para Jacob era, na melhor das hipóteses, vergonhoso. Eu deveria voltar atrás e dizer para ele esquecer, mas nós não tínhamos tempo, e eu não queria retirar a oferta, o que tornava tudo tão mais difícil.
- Jake, eu… não queria que você pensasse que eu… – Droga, como era difícil, era ainda pior porque Jacob ainda estava mudo, congelado feito uma estátua. – É que nós realmente não temos tempo, precisamos voltar pra casa daqui a pouco e meu pai não pode saber de nada que aconteceu. Nada vai mudar Jake, eu prometo. Eu vou me comportar – Assim eu esperava. Já seria bastante complicado deixar que meu pai visse isso em minha mente, eu não queria que Jake se afastasse de mim por causa de um beijo.
Mas um minuto se passou, eu estava inquieta, envergonhada e preocupada. Virei-me de frente para Jacob e encarei seu rosto. Eu queria uma resposta, qualquer uma. Cruzei os braços e fiquei na espera. Ele me olhou de volta e sustentou meu olhar. Estava sério, sua testa estava vincada e seus olhos semi cerrados, os lábios numa linha rígida.
Ok, eu estava encrencada. Desembestei a falar. Tão rápido e desorientadamente que nem reparei nas reações dele as minhas palavras.
- Olhe aqui Jacob Black, não precisa ter uma síncope só por que eu estou tentando salvar nossa pele. Não precisa me olhar desse jeito, como se eu estivesse pedindo pra você encobrir algum assassinato por mim. Depois de tudo que passamos, será que um beijo nos mataria ou… – Ele me pegou em seus braços, sustentou meu corpo junto ao seu e tocou meus lábios com urgência. As palavras cessaram, e com elas meus pensamentos, o ar, o tempo, os planos… Não havia mais nada, só Jacob.
O beijo começou tenso, exigente e lentamente se transformou em uma combustão instantânea. O corpo de Jacob estava em toda parte, e ardia como brasa em minha pele. Eu arfava por dentro, por um momento pensei que meus pulmões tivessem derretido. Tudo nele era perfeitamente compatível a mim. Eu me encaixei em seu abraço como se tivesse sido feita para ele. Seus braços eram grandes e fortes o suficiente para envolver toda extensão do meu tronco, seus lábios eram quentes, úmidos e na proporção exata dos meus. Seu cheiro entrava por minhas narinas e se espalhava por minha mente, cobrindo tudo. Razão, sentido, pensamento, lógica…
Abri meus olhos no mesmo segundo que ele o fez. Nos olhamos como dois cegos que acabaram de ganhar novos olhos. Nenhum dos dois tinha muito o que dizer naquele momento, mas o silêncio que se estendeu, era cheio de significados.
Meu celular então vibrou em meu bolso e me fez pular, como o estalar de dedos que acorda alguém hipnotizado. Me afastei dois passos de Jacob e me virei de costas. Ofeguei duas vezes antes de recompor o compasso do meu coração. Peguei o aparelho no bolso e abri a mensagem de texto.
“Ness, eu e seu pai estamos indo caçar com Alice, Jasper, Rose e Emmet. Esme e Carlisle vão estar em casa quando você chegar. Nos vemos mais tarde, eu te amo.”
Respirei fundo, ainda sob choque. Bem, pelo menos eu tinha ganhado mais tempo para pensar em meu plano. Me virei devagar e olhei para Jacob timidamente.
- Era minha mãe. Ela e meu pai estão indo caçar com os outros, mas Esme e Carlisle ficaram, então, acho que temos um pouco mais de tempo. – Disse, olhando para baixo.
Jacob desencostou do capô do carro, e veio até mim. Pegou meu rosto nas mãos e disse:
- Eu já sei o que vamos usar para ocupar nossas mentes – Ele me olhava profundamente.
- O que é Jake? – Eu perguntei confusa e apreensiva.
- Preciso lhe contar algo sobre mim.
Capítulo 6 – plano Rising Sun a Historia
Capítulo 6 – Plano
Imprint. Durante toda minha curta vida, constantemente envolta em uma aura sobrenatural, eu jamais ouvira nada mais confuso e inacreditável. Estar destinado a amar alguém, independente de como, onde ou por que, era algo definitivamente além de meu entendimento sobre a vida. Eu – que até então acreditava estar ciente de tudo, que acreditava entender plenamente a nossa existência e a dos humanos que nos rodeavam – de repente me encontrava sem palavras, perplexa.
Jacob não me poupou detalhes – assim me pareceu. Ele se manteve calmo e firme em cada palavra improvável que deixava sair de sua boca.
- Ness, eu quero que você saiba que você tem escolhas, independente de qualquer ligação mística idiota que eu tenho com você. Eu fui seu amigo, seu irmão mais velho, seu protetor… E eu seria o que você quisesse que eu fosse pelo resto da minha vida patética. – Ele evitada olhar em meus olhos parados ao longe, desfocados pelos pensamentos que borbulhavam em minha mente.
Era estranhamente perturbador como cada peça de repente se encaixara no que pareciam ser lacunas profundas e eternas. Eu sempre soube que Jacob não era como eu e minha família. Percebi isso muito cedo, mas até ser um pouco mais velha e ser capaz de questionar tais diferenças, ele era meu tio Jake e eu o adorava. As “pessoas lobo”, como eu costumava chamá-los na infância, também faziam parte da família, independentemente se seus corações fossem – assim como o meu – os únicos a bater naquela família. Mas mesmo Seth, que nos visitava com mais freqüência, não passava mais que algumas horas conosco. E eu conseguia perceber a linha imaginária separando lobos e vampiros. O jeito que se comportavam quando estavam relativamente perto, a tensão que tingia o ar toda vez que minha mãe e meu pai me levavam até a fronteira de La Push para visitar Billy. E o cheiro. Vampiros e Lobisomens definitivamente não suportavam o cheiro um do outro, por que vampiros e lobisomens eram inimigos naturais.
Então, por que Jacob abandonou sua matilha para nos seguir? Por que morar com nove vampiros parecia não ter importância nenhuma para ele? Por que ele me escolheu ao invés de seu pai, sua tribo, seus irmãos…? Todas as perguntas que cresceram comigo de repente estavam respondidas. Era o destino dele me seguir, aonde quer que eu fosse, seja lá o que eu fosse.
- Eu merecia saber Jake.- Eu consegui dizer depois de um longo silencio – Passei minha vida inteira me fazendo perguntas sobre você. Já faz algum tempo que eu não sei mais como te olhar. Como um amigo? Como um irmão? – Eu sentia um nó na garganta, lutando com as palavras que saíam meio sufocadas. – Eu merecia saber que meu destino sempre foi você.
- Não diga isso Nessie – Ele me encarava incrédulo, como se eu tivesse dito alguma heresia. –Você nunca foi minha. Pare de achar que você não tem escolha. Se eu não te contei antes foi por que você não estava pronta e seus pais queriam que você fosse capaz de escolher por si mesma quando chegasse a hora, e eu também. – Ele dizia cada palavra como se estivesse me dando uma bronca por mau comportamento.
- Não Jake, eu nunca tive escolha – Eu o olhei fixamente – Assim que coloquei meus olhos em você, todas as minhas opções se foram. – Ele me olhava com uma expressão torturada, mas ao mesmo tempo emocionada. Eu não sabia mais o que dizer. Tudo que eu senti durante minha curta vida tinha se resumido aquela última frase, aquele momento.
Nós nos rendemos aos braços um do outro. Se algum de nós fosse humano, aquele abraço teria quebrado algumas costelas.
Pela primeira vez em muito tempo eu sabia o que esperar, sabia o significado de muitas coisas que outrora só me deixaram mais confusa.
Jacob esperou por mim, pacientemente. É claro que a espera dele não foi tão grande quanto teria sido se eu fosse uma garota normal. Mas nem garota eu era. Eu era uma vampira, e por mais queJacob fosse “a prova de vampiros” – como meu pai dizia – um único descontrole meu foi o bastante para deixá-lo no chão. Eu queria ser melhor para Jacob, queria ser como Emily era paraSam. A parceira ideal, completamente compatível. As poucas vezes que me deixaram ficar perto de Emily foram o bastante para que eu adquirisse uma grande admiração e respeito pela mulher de pele marcada. Ela era apenas humana, e mesmo assim cuidava de todos aqueles marmanjos melhor do que qualquer um.
Ter Jacob quente e macio em meus braços me fez desejar não ser tão indestrutível. Mas eu mudei logo de idéia quando a imagem de Aro dançou furtivamente por meus pensamentos. Eu não deveria me sentir assim, fraca e impotente. Eu deveria ser mais forte. Deveria ser impiedosa e ardilosa como a guarda costas de Aro. Jane. Sim, eu me lembrava dela. Ouvi seu nome nas conversas furtivas de minha família várias vezes. Ela era uma vampira ofensiva, e não uma unidade passiva como eu até então tinha sido. Eu precisava me tornar uma nova Renesmee. Feroz, inteligente, letal. Só assim eu seria capaz de proteger minha família. E meu Jacob.
***
- Jake, não consigo me concentrar com você me beijando – Eu sorri, mantendo meus olhos fechados, tentando focar na história que eu contaria para meus pais. Ouvi sua risada rouca em meu ouvido. Ele era tão injusto.
- Desculpe, vou me comportar – Sussurrou em minha pele, deixando seu hálito quente tocar meu pescoço.
- Argh! Pelo amor de Deus Jake, nós temos meia hora pra deixar nosso plano impecável – Eu saí de seu abraço com certa relutância, evitando olhar em seu rosto para não perder o fio da meada.
Tudo acontecera tão rápido naquela manhã… Quando acordei eu era Renesmee Cullen, filha deEdward e Bella. Meu melhor amigo era um lobisomem charmoso que eu não tinha permissão de desejar como outra coisa. Eu amava minha família e nunca escondera nada deles – principalmente de meu pai. Algumas horas depois eu era uma mestiça descontrolada que estava tendo visões com um estranho e quebrando mesas na sala de aula no meio de um monte de humanos. Meu melhor amigo tinha sofrido algum tipo de impressão medonha comigo e estava apaixonado por mim. E pior ainda, eu estava apaixonada por ele também, justo o cara que me deu mamadeira. Se já não fosse o bastante, eu ainda estava planejando uma fuga com ele para investigar um suposto desconhecido que me deixara um bilhete misterioso. Ótimo.
O plano era, basicamente, deixar meu pai ler minha mente cheia de Jacob. Ele com certeza faria uma cena. Então, todos saberiam que Jacob me contou sobre o imprint e nós nos beijamos e etc. Ok, essa era a parte fácil do jogo. Difícil seria manter longe de minha mente – e da de Jacob – o que realmente tinha acontecido naquela manhã. As informações teriam que ser coesas e concretas. Eu precisaria usar meus poderes em um nível que eu tentei poucas vezes. Pintar imagens nítidas, precisas e em ordem cronológica de forma que se passassem por lembranças reais do decorrer do dia. E eu só tinha – olhei no relógio – vinte e oito minutos para deixar minhas lembranças e pensamentos seguros, eu não iria arriscar chegar em casa e dar de cara com meu pai. Eles poderiam ter voltado mais cedo…
Não, eu não podia arriscar. Teria que deixar tudo pronto antes de me aproximar. E Jacob não estava cooperando muito me beijando e me abraçando daquele jeito.
- Ness, tem certeza que vai dar certo? Tem certeza que não quer contar pra eles? Eu ainda acho isso meio arriscado – Jacob fazia as perguntas mais pra ele do que para mim.
- Não Jake, não posso deixar que eles saibam. O que você acha que meu pai e minha mãe vão fazer assim que souberem? Eles vão direto para Forks. E se for uma armadilha? – Eu o encarei.
- E se for uma armadilha pra você? – Ele perguntou. A tensão distorcendo suas feições.
- Eu não disse que não seria arriscado. Mas que escolha eu tenho? Tenho que apostar nos meus instintos Jake, e eles estão me dizendo que há alguma coisa muito errada acontecendo nas nossas costas. E seja lá o que for, as respostas de que preciso estão em Forks. – Eu vi nos olhos dele que ele faria a mesma coisa. Nós éramos muito parecidos quando se tratava da família.
- Só me prometa que não fará nada estúpido ok? – Jacob me olhou profundamente. Eu podia ver a dor que isso o causava. Me ver brincar com fogo e só poder acender sua própria tocha. Eu sabia disso por que sentia a mesma necessidade de protegê-lo e me sentia o ser mais inválido por não conseguir mantê-lo longe de mim, a salvo.
- Jake, eu não estou em condições de prometer nada agora. Mas eu posso lhe dizer uma coisa – Me aproximei de Jacob lentamente – Nós vamos estar sempre juntos, não importa como ou onde. – Sorri e afaguei seu rosto.
- Agora venha, preciso te passar as instruções – Puxei-o pela camisa e nos sentamos na grama do acostamento.
Coloquei minhas mãos sobre as de Jacob e fechei os olhos. Retrocedi até a aula com o Sr Anderson. Mostrei a Jacob o professor entrando na sala de aula e avisando a turma que, por conta de um problema familiar ele teria que se ausentar. Em seguida nós éramos dispensados. Passei então para uma imagem de Jacob me convidando para tomar sorvete. Imaginei nós dois andando por um parque, sorrindo e conversando. Nós nos sentávamos em um banco de mãos dadas, eu acariciava os braços de Jacob, traçando desenhos imaginários. Subia até seu ombro e pescoço e então, acariciava seu rosto. Nós nos olhávamos nos olhos com intensidade. Nos aproximávamos lentamente para o beijo quando Jacob começou a rir e minha concentração foi por água abaixo.
- O que foi? – Perguntei meio irritada por ter sido interrompida
- É essa a sua idéia? Você me seduzindo em um banco de praça? – Jacob ria nervosamente
- Se você tem uma idéia melhor, sinta-se a vontade em compartilhar – Fechei a cara
- A idéia é boa Ness, mas eu sei o que você está tentando fazer – Ele me olhava com um sorriso simpático – Está tentando não me deixar tão encrencado com seu pai. – Ele tirou uma mecha ruiva que o vento soprou em meu rosto.
- Jake, eu… – Droga, ele tinha percebido.
- Tudo bem Ness, ele vai querer me matar de qualquer jeito só por ter te convidado para tomar sorvete – Ele sorria complacente. Eu ri
- Eu sei Jake, mas se eu posso tornar as coisas mais fáceis pra nós, por que não fazê-lo? Além disso, vou precisar de você inteiro para fazer as malas e se eu levar pedaços de Jacob para Billy, bem, acho que não vou ser convidada para ceia de natal – Eu sorri e belisquei sua bochecha. Ele ergueu as mãos num sinal de rendição e disse:
- Faça como quiser. – E fechou os olhos, esperando que eu continuasse.
Continuei de onde tinha parado. Mas dessa vez não fechei os olhos. Me mantive focada no rosto de Jacob, analisando suas reações para o que eu estava prestes a mostrar. Sorri maliciosamente para mim mesma e continuei.
Eu e Jacob, sentados no banco de um parque qualquer, a luz do sol nos atingindo por entre os galhos das árvores espalhadas pelo parque. Nós nos olhávamos nos olhos, e lentamente começamos a encurtar a distância entre nossos rostos. E então eu usei a sensação que me invadiu quando nós nos beijamos e a uni com uma imagem de Jacob e eu abraçados. Meus braços ao redor de seu pescoço. Ele mantinha um braço parcialmente apoiado sobre o encosto do banco e o outro pousado em minha cintura. Eu deixei a sensação do calor da pele dele tingir minha mente. A textura suave e doce da sua boca na minha. Eu mostrava a Jacob todos os detalhes de um beijo real, somados as imagens que eu criava de um ângulo externo. Ele arqueou uma sobrancelha suavemente, e eu não sabia se isso significava que ele estava apreciando o quadro. Talvez eu estivesse detalhando demais, por que a pele de Jacob de repente começou a esquentar sob minhas mãos. Eu decidi então concluir a cena do beijo. Fechei os olhos para me concentrar melhor e imaginei Jacob acariciando meu rosto. De novo eu usei suas palavras e expressões reais. Deixei minha memória trazer a tona a voz de Jacob me dizendo “preciso lhe contar algo sobre mim”. Depois disso, selecionei partes de nossa conversa e as adaptei na cena. Todo o processo demorou mais ou menos dez minutos. Concluí minha obra prima com uma imagem de nós dois caminhando de mãos dadas em direção ao carro. Eu me virava pra Jacob com um sorriso no rosto e dizia: “Vamos contar para eles hoje?”. E Jacob sorria de volta e respondia: “Não temos escolha, seu pai vai saber no momento em que entrarmos pela porta”.
Cessei as imagens e encarei Jacob, esperando uma resposta. Ele estava com uma expressão suave e mais otimista que antes.
- Uow, isso é melhor que tv a cabo. Muito bom Ness, você está ficando boa nisso. – Ele sorriu e beijou minha testa – Isso pode funcionar, é sério, acho que pode dar certo.
- Essa é a parte fácil Jake, não fique tão otimista ainda. Nós precisamos manter nossa mente ocupada até estarmos longe o suficiente. – Eu disse, me levantando e caminhando até o carro.
- Se eu manter você na minha cabeça, vai ser moleza não pensar em mais nada – Ele sorriu, colocando-se de pé e me seguindo.
- Eu sei, também estou contando com isso. Mas não sei se é seguro ficar muito mais tempo com eles. – Eu ainda não estava segura sobre esse plano. Um único deslize seria o bastante.
- O que você quer dizer? – Jacob percebera meu tom de voz.
- Quero dizer que vamos para Forks ainda hoje.
Capítulo 7 – Encenação Rising Sun a Historia
Capítulo 7 – Encecenação
Eu não sabia ao certo como iria convencer meus pais a me deixarem ir para Forks sozinha com Jacob, nem como iria contornar toda preocupação desenfreada de minha família demasiadamente protetora. Eu tinha uma vaga idéia do que eles diriam.
Minha mãe diria: “Se você quer visitar Charlie, Billy e os outros, vai ter que esperar até que eu e seu pai tenhamos alguma folga na faculdade”. E meu pai completaria: “Nós iremos nas férias de inverno querida, assim todos nós poderemos ir juntos”. E Carlisle arremataria o assunto com uma expressão gentil no rosto, enquanto diria: “Não se esqueça que você agora tem obrigações na escola querida”. Completamente injusto.
Eles eram muitos, e sempre estavam unidos quando se tratava da minha segurança. Meu crescimento acelerado não deu a eles a chance de perceber que agora eu era uma adulta de sete anos. Tive que rir com meu humor negro, afinal, nada daquilo passava de pura verdade.
Minha única grande idéia até o momento era usar o fim de semana – e o tédio que eu sentia tendo que ficar nas redondezas – para escapulir para Forks. Eu até tinha uma encenação de desânimo pronta para ser usada em minha mãe. Mas sinceramente, eu duvidava que seria o bastante.
Enquanto Jacob dirigia de volta para casa, eu me mantive atenta. Quando fosse razoavelmente perto para meu pai nos ouvir, o plano entraria em vigor. Eu deixaria o barco correr como planejado, uma coisa de cada vez. Passar pela peneira estreita da mente de meu pai seria o mais difícil, depois disso, eu só precisava me afastar o bastante para planejar o próximo passo. Quando entramos na garagem, tanto eu quanto Jacob estávamos concentrados. Eu o olhei antes de sair do carro e sem pensar muito o beijei com força, uma vez mais para reforçar a idéia em nossas mentes. Não sei muito bem se aquilo ajudou ou só nos tirou a tênue concentração. Descemos do carro e nos dirigimos às escadas. Inalei profundamente o ar, e se meu olfato não tivesse pifado, meu pai ainda não estava em casa.
Era estranho, mas Jacob estava completamente relaxado ao meu lado. Ele devia estar acostumado a controlar seus pensamentos perto de meu pai. Ninguém se sentia mais invadido e aborrecido com a falta de privacidade com meu pai do que Jacob.
Quando entramos na sala, não havia ninguém a vista, mas eu podia ouvir Esme rabiscando algo no andar de cima e Carlisle devia estar lendo em seu escritório. Eu podia ouvir sua respiração cadenciada e o farfalhar de páginas sendo viradas. Suspirei de alívio e gesticulei o sofá para Jacob. Nós nos sentamos, deixando cair no tapete nossas mochilas e livros. Esme logo veio a nosso encontro com seu sorriso habitual.
- Olá querida, olá Jacob. Nessie, você recebeu a mensagem de sua mãe? Ela não quis ligar e atrapalhar sua aula. – Esme sentou-se numa poltrona e cruzou as mãos sobre as pernas.
- Recebi sim Esme, gostaria de ter ido com eles. – Fiz uma cara de desânimo
- Ah querida, você pode ir comigo e com Carlisle amanhã – Ela tentava me consolar
- Ah tudo bem Esme, estou planejando uma visita à Billy e à Charlie para esse fim de semana – Eu joguei a isca. Se eu precisava extrair informações de alguém sobre o cronograma familiar sem levantar suspeitas, esse alguém era Esme. Ela parecia não ter o hábito de desconfiar das pessoas.
- Que ótimo querida. Você já falou com seus pais sobre isso? – Ela sorria com empolgação, sem nenhum traço de desconfiança.
- Ah sim, mas eles obviamente não concordaram em me deixar ir sozinha com Jake. Acho que eles nunca vão confiar em mim. – Fiz um beiçinho.
- E nem em mim – Jacob estava percebendo a jogada e resolveu entrar na cena. Ele fez uma cara de desapontamento e sacudiu de leve a cabeça em desaprovação.
- Ah Nessie, não pense assim. Seu pai e sua mãe apenas se preocupam com você. E Jacob, é claro que eles confiam em você. Todos nós confiamos. Você já fez muito por nós, já provou sua lealdade muitas vezes. – Esme tentava nos consolar, e pelo tom de sua voz, ela sentia-se culpada por colaborar com meus pais em seus sermões repetitivos. Ótimo, ela mordera a isca.
- Mas Esme, vocês se preocupam com Alice, com Jasper, com Emmet ou Rose? – Perguntei, mantendo a expressão magoada em meu rosto.
- É claro que sim querida, me preocupo com todos vocês.
- Pois então, mesmo assim eu não vejo vocês impedindo nenhum deles de viajar sozinhos – Bingo. Esme ponderou por um minuto e eu pude ver minha estratégia dando certo. – Sinceramente, me sinto incapaz. Nunca vou ser boa o suficiente para me cuidar sozinha. Sou uma mestiça inútil. – Eu não precisava ter apelado tanto, mas não pude conter a encenação dramática se desenvolvendo em mim. Se Esme fosse capaz de chorar, ela estaria em prantos agora, tal era sua expressão de sofrimento e culpa. A conversa deve ter intrigado Carlisle, que desceu as escadas como uma brisa leve e sentou-se ao lado de Esme, afagando seus ombros. Ele olhava para mim com um semblante igualmente culpado.
- Acho que estamos pressionando muito você não é querida? – Ele tentou sorrir cordialmente, mas eu sabia que, sem querer, eu tinha atingido dois coelhos de uma vez só.
- Ah Carlisle, você conhece nossa natureza melhor que qualquer um. Vampiros precisam se sentir livres, ou eles simplesmente piram, eu acho. Ser a única que precisa dormir, comer e tudo mais já é bem difícil, eu sei que não sou tão forte quanto vocês. – A tristeza que deixei fluir por minhas palavras foi tão perceptível que Jacob me encarava com a mesma expressão angustiada de Carlisle e Esme.
- Você está enganada querida, você é tão forte quanto qualquer um de nós. E é completamente capaz de se defender sozinha. Essa preocupação que temos com você é apenas nosso próprio medo de perdê-la. Mas eu sei que isso não é desculpa para o que temos feito com você. – Eu nunca vira Carlisle tão culpado como agora. Eu já sentia o remorso crescendo dentro de mim, mas eu precisava fazer aquilo. Era o único jeito de protegê-los. Eu sabia que tinha ganhado a primeira batalha. Não havia mais necessidade de torturar meus avós. Eles colaborariam para o meu plano, eu podia ver em seus olhos dourados e tristonhos que, meu pai e minha mãe ouviriam uns bons sermões quando voltassem. Quase sorri ao sair pela porta da sala com a desculpa de ajudar Jacob com sua tarefa de literatura, deixando dois vampiros com a consciência pesada, paralisados em expressões pensativas no meio da sala vazia.
Quando chegamos ao chalé de Jacob, ele preparou um suco e nos sentamos no único sofá de dois lugares que ocupava boa parte da pequena sala-cozinha de Jacob. Nos olhamos em silencio por alguns minutos e como se fosse algo sincronizado automaticamente, nós explodimos em gargalhadas barulhentas.
- Jake, não tem graça. Eu tive que ser horrível com eles – Eu tentava falar em meio aos espasmos de Jacob que fazia o sofá tremer.
- Ah Ness, você vai me desculpar, mas eu me senti numa novela mexicana gótica ou algo assim – Jacob ria abertamente, como se fosse a coisa mais engraçada do mundo. – Garota, você tem talento.
- Cale a boca Jake – Eu tentava fazer uma cara de brava, mas só o que consegui foi uma careta.
Eu de certa forma estava mais relaxada quando os últimos raios de sol brilharam pela janela do chalé. O nervosismo da espera foi amenizado pela companhia descontraída de Jacob. Nós conversamos e rimos durante toda a tarde, esperando até ouvir os passos silenciosos de algum conhecido nos interromper, mas nada aconteceu até às seis da tarde.
Quando ouvimos passos leves se aproximando, eu e Jacob trocamos um olhar apreensivo. Eu toquei seu braço e lhe mostrei resumidamente a cena do beijo no parque. Nos preparamos para a cena principal. Estava na hora da pequena Renesmee utilizar seus instintos mais básicos de sobrevivência. Estava na hora de praticar o que ninguém na minha família jamais me ensinou. Mentir, enganar, trapacear.
***
Alice bateu de leve na porta, apenas por educação. Jacob abriu a porta e sorriu pra ela com uma gentileza incomum.
- Olá baixinha. – Disse ele descontraidamente.
- Qual é o problema que vocês lobos tem com roupas descentes? Onde estão as calças que eu comprei pra você? – Alice encarava carrancuda a bermuda esfarrapada de Jacob que um dia fora uma calça jeans.
- Ah, qual é, você não quer que eu use aquilo vinte e quatro horas por dia quer? Além disso, me aperta muito – Jacob retrucava atrás de Alice enquanto ela atravessava a pequena sala a meu encontro.
- Ness, ensine seu cachorro a usar roupas – Ela resmungou enquanto me dava um beijo na testa e se sentava a meu lado no sofá.
- Impossível Alice, ele parece ter sérios problemas com qualquer coisa que cubra mais que o estritamente necessário. – Sorri para ela. Bem, eu teria de ser legal com Alice se quisesse trazê-la para meu lado.
Alice deu um sorrisinho amarelo, como alguém que tem más notícias para dar.
- É todos nós já percebemos isso. – Ela olhou pra Jacob, sentado no tapete, no lado oposto da pequena sala.
- A caça parece ter sido boa. – Sondei. Eu teria que ser mais sutil com Alice. Ela me conhecia muito bem. – Vocês voltaram agora?
- Não, na verdade voltamos há duas horas – Disse Alice, com um olhar displicente.
- Hum, e por que não me avisaram? – Eu olhei para ela desconfiada e ela cruzou meu olhar. Eu conhecia tão bem aquelas feições miúdas, que podia jurar que ela estava tentando não falar algo que não devia.
- Ah, tudo bem, você vai saber de qualquer jeito. – Ela bufou e se virou de frente para mim. – Quando voltamos essa tarde, Carlisle chamou Edward e Bella para uma conversa, e é claro que todos nós acabamos ouvindo. Mas a coisa foi séria, nunca vi Carlisle falando daquele jeito com Edward, bem, com ninguém pra falar a verdade. – Alice me encarava aturdida. Bem, agora eu estava oficialmente me sentindo culpada. Era óbvio que Carlisle resolveu ter uma conversa com meus pais depois da minha pequena encenação dramática. Tive que lembrar a mim mesma que aquilo era justamente o resultado que eu esperava.
Tentei colocar um pouco de curiosidade e inocência na voz e na expressão.
- Por que Alice? O que houve? – Perguntei. Pela minha visão periférica eu pude ver Jacob tentando segurar o riso.
- Ah Nessie, Carlisle nos contou sobre a conversa que vocês tiveram hoje à tarde. Ele disse que você está muito infeliz com o modo que temos te tratado. Quero dizer, nós sabemos que você não é mais aquele bebezinho cheio de dentes de apenas alguns anos atrás, mas nós sempre pensamos no seu bem estar. – Parecia que Alice estava reproduzindo a expressão torturada que vi em Esme aquela tarde. Suas palavras soavam mais como um pedido de desculpas do que como uma explicação. Maravilha, eu estava aumentando gradativamente minha lista de “pessoas que eu quero magoar”.
- Ah não. Carlisle não fez isso. Minha mãe vai me matar. – Era hora de mais um capítulo do meu teatro melodramático. – Ah Alice, me desculpe. Eu não queria causar nenhum problema com minhas besteiras, eu só… – Jacob quase teve um ataque do outro lado da sala quando viu minha cara de mártir de filme barato.
- Está tudo bem Ness, relaxe. E pare de se desculpar por falar dos seus problemas. Ninguém vai te castigar por você falar o que está sentindo. Somos sua família. – Alice me abraçou, tentando me confortar. Olhei para Jacob do outro lado da sala e dei uma piscadela. Que dupla maligna nós estávamos nos tornando.
- Eu ouvi também Carlisle falando algo sobre uma viajem que você pretendia fazer a Forks. – Ela me olhou profundamente e suspirou. – E eu acho que não há nada de errado nisso. Vou dizer isso a sua mãe. Está na hora de começarmos a enxergar você com outros olhos.
- Obrigada Alice. – Eu estava muito feliz com o êxito do meu plano. Mal podia acreditar como tinha sido fácil. Até aqui.
- Vocês acham mesmo que eu deixaria alguma coisa acontecer à minha Nessie? – Jacob parecia ter se recuperado o suficiente para dar uma pequena contribuição.
- Acho ótimo que você cumpra o que diz. – Alice mostrou a língua para ele, e em seguida me puxou do sofá. – Agora vamos. Temos uma reunião de família ainda hoje.
Droga! Estava indo tudo muito bem até ali, mas não parecia que continuaria assim.
- Reunião de família? Por quê? – Eu estava realmente apreensiva agora. Eu não contava com algo assim. Estava contando com o elemento surpresa.
- Bem, acho que seus pais querem esclarecer algumas coisas com você antes de você fazer as malas. – Ela sorriu e piscou para mim.
- Tá brincando? Eles vão me deixar ir para Forks? – Como? Quando? Tão fácil assim?
- Hum, pelo menos é isso que eu vejo seu pai e sua mãe decidirem. Agora vamos antes que eles mudem de idéia. – Alice saiu pela porta me puxando pelo punho. Eu olhei para traz procurando Jacob. Escutei seus passos nos seguindo na escuridão. Eu queria dizer a ele para se preparar, mas Alice balançava meu braço para frente e para traz como se estivéssemos passeando num parque. Eu tinha que parecer feliz, relaxada, descontraída.
Quando chegamos ao gramado da casa, eu parei. Alice me olhou confusa, esperando que eu desempacasse. Olhei pra ela sem pensar muito e disse:
- Alice, tenho uma coisa pra contar a vocês. – Os olhos de Jacob brilhavam no escuro. Ele me olhava apreensivo, procurando algum sinal de blefe.
- Nessie, o que vocês fizeram? – Estremeci quando ouvi Alice usando o plural. Ela normalmente não podia ver nem meu futuro nem o de Jacob – ou de qualquer outro lobo – mas a expressão que apareceu em seu rosto naquela hora foi como sabão no último degrau da escada. Eu escorreguei. Por um breve segundo, pensei que tudo tinha ido por água a baixo. Tentei me recompor imediatamente, evocando as imagens que me salvariam naquele instante. Olhei para ela atônita, segurei-a pelos ombros pequenos e delicados e mostrei a ela uma imagem minha e de Jacob num parque, nos beijando sob a sombra de um abeto grande e robusto. Depois deixei ela ouvir a voz de Jacob, me contando tudo. Alice estremeceu e voltou a focar seus olhos em mim. Não tive tempo de explicar tudo, só mostrei a ela um resumo rápido. Alice soltou o ar, como se tivesse prendendo a respiração durante horas.
- Eu vi vocês dois sumindo completamente. Como se tivessem se misturado numa coisa só. Uma coisa grande e totalmente borrada. Não posso mais ver nada sobre vocês Nessie. Absolutamente nada… – Alice parou de novo, olhando algo muito além de mim e da escuridão do gramado. Tão rápido que não pude nem ao menos piscar, ela se virou em direção a porta bem a tempo de ver um vulto passar por ela e voar em direção a Jacob. Então Alice gritou:
- Edward, não!
Capítulo 8 – Veneno - Rising Sun a Historia
Capítulo 8 – Veneno
Jacob não teve tempo de se explicar. Com um tremor violento ele se lançou no ar, um ruído abafado de algo se rasgando foi tudo que pude escutar. Ele pousou no chão já nas quatro patas e recebeu de frente a investida hostil de meu pai. Um rugido bestial cortou a noite. Jacob tentava esquivar-se das dentadas de meu pai. Tentava imobilizá-lo, mas lutar com um adversário que lê todos os seus movimentos não é algo muito fácil. Jacob estava, visivelmente, lutando na defensiva. Ele não tentou, nenhuma vez, fechar a mandíbula quando conseguia agarrar algum membro de meu pai. Os outros estavam às margens da luta, tentando se aproximar o suficiente para segurar meu pai. Eu estava paralisada, assim como Alice e Esme. Meu coração martelava em meus ouvidos. Eu podia imaginar o que fez meu pai agir daquela maneira.
Ele ouviu Alice, viu o que eu mostrei a ela, mas obviamente não viu o bastante para entender. E agora estava querendo matar Jacob por ter me contado sobre o imprint – e por ter me beijado.
A luta era um borrão barulhento no meio da noite. Emmet, Jasper e Carlisle tentavam cercar meu pai e agarrá-lo, mas ele era rápido. Minha mãe gritava, aflita, pedindo que meu pai parasse. Mas ele não ouvia ninguém. Estava cego de ódio.
Se ele colocasse os dentes em Jacob, o veneno o mataria. Do jeito que ele estava furioso, eu podia imaginar quanto veneno estava fluindo em sua boca agora. Estremeci. Eu não podia deixar meu próprio pai matar meu Jacob – meu amor. Sem pensar muito no que estava fazendo eu cruzei o jardim num rompante. Quando passei por Emmet e Jasper, que estavam fechando o cerco pelos flancos de meu pai, parecia que todos congelaram ao mesmo tempo.
Meu pai estava prestes a pular na garganta de Jacob. Quando ele avançou, eu não tive tempo de segurá-lo. Só consegui chegar a tempo de empurrar o corpo enorme e peludo que iria ser mastigado. Ouvi o baque de Jacob contra a orla de árvores a três metros. Ouvi o estalo metálico de pedra contra pedra. Ouvi o ar passando por meus ouvidos enquanto eu voava de encontro ao chão. Ouvi o grito sufocado de minha mãe. Mas a única coisa que eu procurava ouvir com atenção era o coração irregular que batia a alguns metros de mim.
***
- Meu Deus Carlisle, ele mordeu ela. – Minha mãe gritava enquanto as mãos geladas de Carlisle examinavam o corte fundo e curvado que sangrava em meu antebraço.
- Nessie, você está bem? Bella, se seu sanguessuga idiota fez alguma coisa com ela eu não vou mais apenas me esquivar dele – Eu podia ver o rosto de Jacob contorcido de preocupação e raiva. Sua mão tremia ligeiramente enquanto ele afagava meu rosto.
- Cale a boca Jake, e vá por uma roupa. – Minha mãe sibilou para ele.
- Ela está bem Jacob. – A voz de Carlisle era baixa e calma. – O veneno só a deixou um pouco tonta. O corte já está fechando.
Enquanto Carlisle, minha mãe e Jacob discutiam, eu podia ouvir Emmet e Jasper tentando manter meu pai dentro da casa. Alice e Rose tentavam bloquear a porta enquanto meu pai se debatia no abraço de ferro de Emmet.
- Bella, é melhor eles irem agora. Se Edward colocar as mão em Jacob… – Carlisle olhava seriamente o rosto pálido e assustado de minha mãe.
- Mãe, Carlisle tem razão. Se meu pai fizer alguma coisa com Jake por causa de um imprint idiota eu nunca vou perdoar ele. – Aproveitei a deixa. Se aparecesse uma chance de partir, eu agarraria. Não podia me arriscar mais.
Alice cruzou o gramado como uma brisa leve. Ela estava aturdida, segurava duas mochilas pretas que ela atirou a Jacob.
- Vão. Vocês têm cinco minutos até Edward se soltar. – Ela lançou uma olhar nervoso a minha mãe e em seguida voltou a casa.
- Jake, cuide dela. Assim que as coisas se acalmarem por aqui eu ligo para vocês e nós nos encontraremos em Forks. – Minha mãe me ajudou a levantar, me deu um beijo no rosto e sumiu na escuridão do gramado.
- Vão agora. Nós cuidaremos de tudo aqui. – Carlisle nos olhava sério.
Olhei para Jacob – já tremendo – e corri para as árvores. Ele me atirou as mochilas enquanto corríamos e em um segundo já estava nas quatro patas.
Nós corremos em nosso limite de velocidade por quase meia hora. As árvores passavam por nós como um borrão em meio à escuridão de uma noite sem estrelas. Eu e Jacob corríamos em silêncio, lado a lado, pelas árvores que circundavam a rodovia.
Se meu pai resolvesse nos alcançar, ele teria que se esforçar bastante. Eu não tinha muita certeza, mas eu e Jacob estávamos bem longe de casa quando chequei a hora no visor luminoso do aparelho de celular que levava no bolso de traz de meu jeans. 1:50 da manhã.
Tínhamos corrido por mais ou menos cinco horas numa velocidade que poucas vezes eu tentei atingir, Jacob me seguia de perto, disparando seus grandes e redondos olhos negros para meu rosto, toda vez que eu tomava uma rota diferente. Nós viajamos pelas florestas, como caçadores noturnos. Eu não ia arriscar nenhum transporte, não com a sede que começou a arranhar minha garganta conforme eu queimava minhas energias na corrida. Eu não estava tão controlada assim. De vez em outra eu sentia meu corpo formigar a partir do antebraço direito, onde – eu queria acreditar – meu pai cravou os dentes sem perceber. Por mais que eu tentasse entender seu acesso de fúria repentina, eu não conseguia. Eu sempre soube do gênio difícil de meu pai, mas a atitude dele não condizia com a pessoa que ele era por traz da posição de pai. Ele era o Edward. Sempre gentil, prestativo, tão impossivelmente altruísta. E ele mais do que qualquer outro, via a verdade em cada pensamentos ao seu redor.
Eu me sentia sonolenta, a sede aumentava a cada quilômetro que deixávamos para traz, minha cabeça girava, dando voltas em torno dos acontecimentos daquele dia que parecia nunca chegar ao fim.
Avistamos uma clareira, razoavelmente escondida por seixos e árvores altas, tão próximas umas das outras que Jacob não conseguiria passar pelos troncos na forma de lobo. A brisa que soprou do oeste trouxe uma cheiro fresco e úmido e eu pude ouviu um riacho alguns metros à frente. Decidi que era hora de descansar, estávamos longe o suficiente para isso.
- Jake, vamos caçar alguma coisa. Podemos nos lavar no riacho à frente e depois descansamos na clareira. Partimos antes do amanhecer. – Jacob me olhava angustiado. Eu podia perceber que ele queria voltar à forma humana. Eu via em seus olhos escuros que ele queria me abraçar, falar alguma coisa para me animar, mas nós precisávamos caçar e ele precisava se manter nas quatro patas.
Encontramos uma manada de cervos poucos quilômetros depois do riacho, depois que nos saciamos, eu atirei uma calça jeans que Alice colocara numa das mochilas à Jacob e ele desapareceu atrás das árvores. Um minuto depois ele estava de volta, o peito nu brilhando de suor e os cabelos emaranhados. Eu o esperava sentada num tronco alto. Jacob subiu na árvore com agilidade e se sentou a meu lado. Ficamos olhando a noite em silencio por um tempo. O céu começara a se abrir, as nuvens que encobriam as estrelas se dissipavam lentamente, deixando a noite menos escura. Jacob arrancou uma flor pequenina de um ramo da árvore e colocou na palma de minha mão, em seguida ele fechou seu punho sobre o meu, esmagando a pequena flor em minha mão.
- Finja que é meu coração. – Ele abriu lentamente meu punho fechado, um dedo por vez. – Essa é a sensação. Como se meu coração tivesse sido espremido. Eu estraguei tudo não foi? – Ele baixou a mão e encarou a escuridão à frente.
Eu queria dizer a ele para parar de ser idiota, mas não consegui evitar a onda de dor que me invadiu ao vê-lo tão atormentado.
- Jake, as coisas simplesmente saíram do controle. Eu meio que contava com isso, eu sabia que ele não lidaria muito bem com a novidade. Só não consigo entender a reação exagerada dele, ele podia ter te matado. – Eu estremeci ao lembrar o quão perto meu pai esteve de cravar os dentes em Jacob.
- Acho que não posso culpá-lo Ness. Eu e seu pai estivemos disputando o amor das mesmas pessoas por muito tempo. – Jacob estava sério e falava numa voz constrangida, como se estivesse arrependido. – O destino simplesmente nos obrigou a conviver e lutar lado a lado por essas pessoas. Se não fosse por Bella e por você, Edward e eu teríamos nos matado se nossos caminhos se cruzassem por aí.
Esse era um assunto que eu aprendi a fugir desde cedo. Várias vezes eu ouvi as histórias de minha mãe e Jacob, antes dela se casar com meu pai. Ele era o melhor amigo dela, era apaixonado por ela, largou tudo por ela, deu tudo que ele tinha por ela. Era um pouco demais para mim – escutar tudo aquilo e não sentir um medo tolo e uma angústia descontrolada. E então tudo mudou quando eu nasci. Mas eu não conseguia fugir do pensamento que mais me perturbava. E se Jacob não tivesse sofrido imprint comigo? As coisas seriam diferentes?
Ele me amaria como me ama? Ele teria feito tudo que fez por mim? Ele amaria uma vampira? A resposta era tão óbvia que eu não me permitia pensar nela. Não. Nada seria como é. O que, mais uma vez me obrigava a perguntar: Será que as coisas estão certas? Por mais que eu pensasse – e desejasse – o contrário, eu não conseguia ver algo correto em toda aquela história. Eu me sentia o prêmio de consolação, dado a Jacob pelos maravilhosos serviços prestados aos Cullen para manter a vida de minha mãe intacta, até que meu pai a transformasse. E tudo isso piorou depois de hoje, por que eu finalmente soube o que realmente fazia Jacob gostar de mim. Uma macumba qualquer que tirava o direito de escolha das pessoas – de Jacob. Se não fosse por uma ligação mística patética que ele era obrigado a obedecer, ele nunca se aproximaria de mim, a não ser para me matar, por que era para isso que Jacob e seus irmãos tinham nascido – para caçar a minha espécie.
- Jake, por que você não segue em frente, sabe, uma vida normal? Você pode voltar para La Push, voltar para seu povo. Você pode voltar a envelhecer, ter filhos, família. – Cada palavra que eu dizia doía como se eu estivesse vomitando giletes. Jacob me olhava com uma expressão de incredulidade, como se fosse o absurdo mais improvável que ele já ouvira na vida. – Tem… algo errado com nós dois, não é natural. – O nó em minha garganta se apertou. Jacob se preparava para despejar um jorro de censuras, mas algo o fez engolir o que estava prestes a dizer. Ele apenas acenou como se compreendesse subitamente o que eu dissera. Um silêncio tácito preencheu a noite que se despedia. O sol nasceria logo.
Capítulo 9 – Lar - Rising Sun a Historia
Capítulo 9 – Lar
O restante da viagem passou num borrão – literalmente. Quando chegamos aos arredores de Port Angeles, a luz difusa do sol já se despedia sob a constante camada de nuvens da península de Olimpic. Jacob e eu discutíamos sobre como deveríamos chegar. Sujos e cansados como estávamos, ou limpos, arrumados e descansados. Não seria uma surpresa muito agradável para Billy se visse seu filho naquelas condições, ainda mais depois de tanto tempo sem vê-lo. Jacob disse que comunicou a Sam que ele estava a caminho, sem maiores explicações. Provavelmente La Push inteira já sabia a essa altura. Não seria fácil explicar como fomos parar lá – e do que tínhamos fugido. Ademais, eu ainda tinha um mistério nas mãos. O plano original seguiria de acordo com o combinado, afinal, era o real motivo para toda aquela confusão.
***
A dor aguda me acordou abruptamente. Agradeci aos céus que nenhum humano estivesse sentado perto de nós. Jacob estava acordado e me olhava preocupadamente. O ônibus deslizava ruidosamente pelas ruas molhadas de Forks. Nós desceríamos alguns quarteirões a frente. Vesti um moleton e passei as alças da mochila nos ombros. Jacob se alinhou no bando, esticando as pernas longas.
- Pesadelo? – Perguntou ele sério.
- Pra variar um pouco – Eu disse sorrindo para ele. – Você dormiu?
- Não, não consegui – Ele bocejou e passou o braço por meus ombros. – Nossa, eu realmente senti falta desse verde todo. – Jacob olhava pela janela com uma alegria emocionada nos olhos. Tive que admitir que também me sentia feliz em voltar. Aquela cidadezinha inócua e verde era o lugar que eu considerava meu lar, de muitas maneiras diferentes, minha história nascera ali, como a de meus pais. Era estranho – um pensamento irônico – que uma cidade tão pequena e tão improvável abrigasse tanta magia, tantos segredos. O ônibus parou no meio fio e nós descemos. Uma garoa fina e gelada caía do céu cinzento. Ficamos parados ali, na chuva, admirando a paisagem. Não era nada demais, apenas uma rua normal, alguns carros velhos estacionados, algumas pessoas andando apressadamente com seus grandes guarda-chuvas. Nada demais, mas mesmo assim era bom estar de volta.
Jacob pediu meu celular emprestado e discou um número que eu não conhecia. Chamou duas vezes e uma voz rouca atendeu.
- Alô – O garoto tinha uma voz de quem acaba de ser acordado.
- Seth? Sam está te proibindo de dormir? – Jacob sorria largamente ao ouvir a voz do amigo.
- Jake? Ei cara, como estão às coisas por aí – Seth perguntava animado, como sempre fazia quando nos ligava.
- Bem, Forks não muda muito, mas acho que está…chovendo. – Jacob brincou.
- Quê? Forks? Como assim? Você está em Forks Jake? – Seth parecia ter acordado completamente e se eu não estava ouvindo coisas, ele parecia estar quicando.
- Sam não contou que eu estava vindo? – Jacob me olhou confuso.
- O quê? Não, ele não disse nada. Quando você contou a ele? – Seth parecia aborrecido.
- Ontem à noite.
- Ah, era minha folga. Droga. Ninguém me falou nada, aposto que a matilha inteira já sabe.
- Seth, você pode pedir para alguém vir nos buscar? – Jacob já estava impaciente, a chuva começava a apertar.
- Claro, só preciso achar minhas chaves, chego aí em cinco minutos Jake. Ei, espera aí. Você disse “nos buscar”?
- Disse. Ou você quer que Nessie vá a pé? – Jacob piscou para mim e eu não pude deixar de sorrir, apesar da dor fraca, mas irritante em meu braço.
- Nessie veio também? Que ótimo, como está aquela pestinha? Será que ela ainda gosta de apostar quem caça o maior? – Seth já começava a fazer planos, obviamente se esquecendo de que, apesar dos sete anos, eu provavelmente tinha vinte.
- É ela ainda adora se exibir com a caça. – Eu mostrei a língua para ele. - Seth, ande logo, eu quero ver meu pai. – Jacob não conseguia esconder a satisfação em seu rosto. Quanto tempo ele esteve esperando para estar em casa? Senti uma onda de remorso me atingir. A culpa de toda aquela distância era minha.
- Certo. Nos vemos daqui a pouco, Jake. – Seth desligou.
- Esse garoto não mudou nada. – Jacob balançava a cabeça, sorrindo, parecia estar falando consigo mesmo.
- Vocês não envelhecem mais do que nós Jake. Estão paralisados no tempo esqueceu? – Tentei sorrir para ele, mas senti que minha tentativa tinha falhado.
- Você deveria ligar para eles. Sua mãe deve estar louca. – Jacob sempre fazia isso. Não importava o quanto eu me esforçasse para parecer bem, se algo estivesse errado, ele sempre saberia. Às vezes eu desconfiava que Jacob conhecesse melhor minha mente do que meu próprio pai.
- É, você deve estar certo. - Olhei fixamente para ele - Jake, você não se esqueceu do…
- Não. Eu sei para quê viemos. – Ele me encarou com os olhos semicerrados, a testa vincada de preocupação. Eu aquiesci e pressionei o braço direito. Jacob percebeu.
- Está doendo? – Ele olhava a cicatriz prateada em meu antebraço. – Você conseguiu uma cicatriz igual a da sua mãe. – Jacob acariciou o contorno da cicatriz.
- Não era para estar doendo, já cicatrizou. – Eu olhei para o braço. - Vou ligar para minha mãe.
***
A ligação para minha mãe foi mais um monólogo do que uma conversa. Jacob tinha razão, ela estava pirando. Fui repetindo as mesmas frases tranqüilizadoras para o resto da família, à medida que o aparelho passava de mão em mão. Todos eles se desculparam por terem me tratado como um bebê, desejaram um bom fim de semana, mandaram lembranças para Charlie e Billy, mas ninguém tocou no nome de meu pai, nem em seu súbito descontrole com Jacob. Eu queria falar com ele, mas ele não pegou o telefone, então eu não pedi.
Quando desliguei o celular, Seth acabava de encostar uma caminhonete velha e barulhenta – que era de Sue – no meio fio. Ele pulou do carro e atravessou a rua com um sorriso de orelha a orelha. Pegou Jacob num abraço tão apertado, que ouvi sua coluna estralar, depois Seth me ergueu do chão e me girou no ar. O garoto ainda tinha o mesmo sorriso doce e inocente, o que era realmente desconcertante naquele enorme corpo moreno.
A recepção em La Push foi calorosa. Jacob foi recebido pela tribo como um combatente que volta da guerra. Eu me sentia em casa, me sentia parte da família, apesar de ser uma vampira entre um bando anormalmente grande de lobisomens. Surpreendi muitos olhares perplexos me fitando com incredulidade, a última vez que muitos deles me viram, eu era apenas uma garotinha de – aparentemente – sete ou oito anos. Agora, eu podia facilmente me passar por uma moça de dezoito anos. Eu cresci alguns centímetros a mais que minha mãe, – embora ainda ficasse muito pequena ao lado de Jacob e de seus irmãos gigantescos – meu cabelo acobreado clareou até um tom de vermelho sangue e cresceu em cachos até a cintura, e meus olhos, bem, ainda eram os olhos chocolate da Bella. Depois que o espanto de todos se dissipou em risadas e conversas descontraídas, eu parei para observar os rostos familiares e tão parecidos que pairavam sobre a roda que se formou no quintal de Billy.
Seth, Embry e Quil continuavam exatamente iguais, a pequena Claire agora tinha mais ou menos nove anos e Quil ainda era a fiel babá da garota. Sam e Emily se casaram há alguns anos e o filho deles, o pequeno Henry estava com onze meses – me lembrava muito bem do batizado do garoto, quando Jacob teve que ficar fora uma semana para exercer seu trabalho de padrinho. Paul e Rachel se casaram na primavera seguinte ao batizado, e para evitar que o noivo se descontrolasse e explodisse dentro de seu smoking, os vampiros não compareceram a cerimônia. Jared e Kim estavam de casamento marcado e Leah, bem… Leah não voltou pra casa. Como ela mesma disse a Jacob quando se separou da matilha de Sam, Leah matriculou-se numa universidade, ás vezes visitava Sue e Seth, mas algum tempo depois, não voltou mais para casa. Raramente se transformava e Jacob teve cada vez menos notícias suas. Apesar da deserção, todos estavam tranqüilos por Leah finalmente estar feliz com sua vida. Billy e o velho Quil Ateara continuavam os mesmos, os anos que passaram tão rapidamente não tiveram muita influência sobre os anciões quileutes – além de uma respeitosa cabeleira grisalha e marcas de expressão, que eram ligeiramente disfarçadas pela pele arruivada.
A noite estava clara e fria. Uma brisa leve soprava da praia, trazendo o cheiro da maresia. Aos poucos, os convidados foram deixando a pequena casa dos Black, que lá pela meia noite já estava completamente silenciosa. Apenas Jacob e Billy permaneceram absortos em suas conversas – que eu parei de tentar acompanhar. Havia algo dentro de mim, algo inquietante. Algo que pinicava em minha mente como agulhas pontudas. E eu sabia o que era. Eu precisava fazer o que tinha vindo fazer. Precisava continuar.
Levantei do degrau em que estava sentada, perto da entrada da casa, e chamei Jacob num sussurro que ficou bem audível no silencio da madrugada. Eu não queria interromper a conversa dos dois, mas eles encontravam assuntos intermináveis para discutir, parecia que nunca ia ter fim. E eu, decididamente, precisava ir a um certo lugar.
- Jake, preciso ir a minha casa. – Disse a ele quando estávamos fora do alcance dos ouvidos de Billy. Ele acenou levemente com a cabeça, e no escuro eu pude ver seus olhos faiscarem nos meus.
- Me dê um minuto. Vou ajudá-lo a se deitar e já vamos. – Jacob beijou o alto da minha cabeça e se afastou silenciosamente.
Alguns minutos depois ele voltou, e usava apenas uma bermuda velha. Eu o observei se aproximando com passos largos e suaves, a pele morena reluzindo sob a luz do céu noturno.
- Vejo que você pretende se transformar. – Olhei com reprovação para seu short esfiapado e para a cordinha que nunca saía de seu tornozelo. – Ou só está com calor?
- Nunca se sabe. – Disse ele dando de ombros e sorrindo de leve.
Eu já estava me preparando para uma longa caminhada pela floresta, quando Jacob pôs uma mão em meu ombro e me fitou com um sorriso torto.
- Ei, vamos de carro. – Ele pegou minha mão e me conduziu pelo quintal escuro.
Escondido entre as árvores, em um terreno desigual nos fundos da pequena casa dos Black, havia uma pequena oficina improvisada. Se minha visão não fosse anormalmente boa, teria sido difícil saber o que realmente tinha ali. Mas foi fácil distinguir o carro estacionado entre pilhas de sucata, armários velhos e ferramentas espalhadas por toda parte.
- Droga, Paul andou mexendo nas minhas coisas. – Bufou Jacob quando se deparou com todas aquelas coisas empilhadas de qualquer jeito. – É só eu virar as costas que isso aqui vira um chiqueiro. – Jacob abria caminho pela garagem, empurrando ferramentas e caixas de papelão repletas de peças de carro. Eu observava em silêncio, achando graça nas caretas e reclamações de Jacob. Enfim ele abriu espaço suficiente para abrir a porta do carro vermelho que jazia na garagem bagunçada. Se jogou no banco do motorista e girou a chave na ignição. O ronco do motor cortou o silêncio da noite e uma nuvem de poeira subiu com o ronronar do escapamento. Ele deu marcha ré no carro e parou-o a meu lado.
- Posso lhe oferecer uma carona senhorita? – Ele sorriu e estendeu a mão para mim.
- Tudo bem – Balancei a cabeça, tentando entender como ele conseguia fazer aquilo. – É um Rabbit Jake? – Perguntei analisando o painel. Meu pai e Rosalie sempre foram os mais interessados por carros na família, mas eles nunca me ensinaram muita coisa a respeito. Meu grande professor no assunto sempre fora Jacob. Me lembrava das muitas vezes que fiquei observando ele mexer em peças e consertar os carros na nossa garagem sempre cheia. Eu o enchia de perguntas sobre modelos, motores, divergências entre marcas, e ele sempre respondia com muita disposição.
- Sim, 1986, um clássico. – Disse ele acelerando o motor que trepidava sob nós. Os olhos brilhando. – Eu mesmo montei. Comecei quando sua mãe veio morar em Forks, eu nem tinha idade para dirigir. – Jacob encarava o nada, absorto em lembranças de uma época em que eu nem mesmo ousava querer pensar. Seus olhos assumiram um brilho distante. Ele com certeza sentia saudade daquela época de sua vida.
- Hum. – Foi só o que consegui dizer. Fiquei imaginando quantas vezes ele e minha mãe passearam naquele carro. Era um pensamento doloroso para manter em foco, então, rapidamente me forcei a pensar no que me esperava em minha antiga casa.
Jacob dirigia rápido pela estrada rodeada pela floresta densa e escura. Com a velocidade e a escuridão, não se podia enxergar muito do lado de fora, mas mesmo assim eu enxerguei os vultos enormes entre as árvores. As silhuetas de dois lobos acompanhando o carro em alta velocidade.
- Seth e Quil estão fazendo a ronda hoje. Que ótimo. – Jacob bufou e acelerou o carro.
- Algum problema? – Perguntei, saindo de meus devaneios.
- Não, só que eles vão fazer perguntas. – Jacob encarava a estrada a sua frente, vincando a testa.
- Nós vamos pensar em algo depois. – Eu não conseguia me concentrar em mais nada naquele momento. Uma sensação estranha me assaltou, era quase um enjôo. À medida que nos aproximávamos da grande casa branca, eu me sentia cada vez mais fria. Mas eu não estava com medo. Não por mim, pelo menos.
De qualquer forma, eu teria algumas respostas aquela noite. Eu realmente queria que eu estivesse apenas enlouquecendo, mas algo dentro de mim teimava em afirmar o contrário. A luz que se acendeu em algum canto remoto de minha mente não queria ser apagada. Ela piscava e piscava. E hoje eu saberia o porquê. Essa era a minha melhor pista.
Capítulo 10 – Migalhas
Eu parei um segundo, ouvindo, cheirando… Tudo parecia estar normal. A antiga estrada que levava para a casa estava parcialmente invadida pela vegetação. As copas das árvores se encontraram, transformando a estreita passagem em um túnel que ocultava quase completamente o céu. O antigo gramado – sempre regularmente aparado e livre de ervas daninhas – estava imerso em um mar de samambaias e arbustos. Quando alcancei as escadas – coberta de folhas e lama seca – e olhei através dos vidros empoeirados, só consegui enxergar o vazio. Ninguém esteve ali. Não desde que nós nos mudamos.
Jacob me seguia de perto, tão silenciosamente que ás vezes eu me esquecia dele ali. Ninguém disse uma palavra. Estávamos checando o local, inspirando o ar intensamente, em busca de cheiros desconhecidos. Meus olhos vasculharam cada canto em meu campo de visão. Não havia nada ali. Nenhum som, nenhum cheiro, nenhum rastro. Apenas a floresta margeando o terreno e a brisa leve que agitava a vegetação rasteira a nossa volta.
- Ness, não há nada aqui. – Jacob aproximou-se, a voz rouca quebrando o silencio. Ele tinha razão, não fazia sentido ficar ali, contemplando a casa vazia no meio da noite. Se alguém tivesse estado ali nos últimos dias – e até meses – nós saberíamos. Jacob era muito bom em identificar pistas, era algo natural nele, mesmo que meus sentidos aguçados deixassem de registrar algo, ele teria notado. Mas, mesmo assim…
- Vamos entrar Jake. – Eu precisava verificar mais uma coisa. Avancei pelo gramado espesso me deslocando suavemente pela relva que – em alguns pontos – alcançava minha cintura. Enquanto avançávamos, cautelosamente, senti uma ansiedade estranha se alojar em meu estômago. Era quase como se eu soubesse o que estaria ali, alguns metros, dentro da casa – quase como se tivesse certeza de que encontraria o que estava esperando. A ansiedade fez meu coração acelerar, a cada passo martelando mais forte. Senti a cicatriz em meu braço formigar, e lentamente uma queimação sutil percorreu todo meu corpo. As imagens da visão na sala de aula inundaram minha mente tão abruptamente, que por um segundo imaginei que estivesse se repetindo. Cada passo mais próximo, minha mente trabalhava mais rápido, e em conseqüência, meu corpo se acelerou. Meu coração deu uma guinada, martelando ruidosamente em meu peito. Jacob parou, me encarou por um instante, checando meu estado. Ele parecia preocupado e eu não podia culpá-lo, seus ouvidos – tão sensíveis quanto os meus – captaram meu súbito descontrole.
- Tudo bem aí Ness? – Resmungou ele, tentando disfarçar a ansiedade na voz.
- Jake, não sei o que está acontecendo. – Falei antes que pudesse me conter. Eu nunca tinha me sentido assim, nem mesmo quando – há sete anos – estivemos cara a cara com o exército Volturi. Era como se minha parte humana estivesse entrando em choque.
- Calma Ness, vamos voltar para La Push, você precisa dormir um pouco. – Jacob se virou de frente para mim, impedindo minha passagem, desistindo de sua tentativa de parecer displicente. Eu queria continuar, mas meus pés não me obedeciam e meu corpo não queria resistir aos braços de Jacob, estendidos protetoramente a minha volta, como se eu fosse desabar a qualquer momento. Me perguntei que estado eu aparentava.
- Não Jake, eu… – Mas eu não consegui encontrar um sentido para terminar a frase. A leve queimação em meu corpo se intensificava a cada minuto. Senti meu coração pulsando nos ouvidos, me impedindo de ouvir o que Jacob resmungava. Eu tive a nítida impressão de que aquela dor que se espalhava silenciosa por meu corpo era um mau sinal. O veneno de meu pai estava circulando por minhas veias, e eu não sabia ao certo como ele me afetaria. Eu era meio vampira, mas metade de mim também carregava os traços de humanidade, tão frágeis, tão intensos e mutáveis. Não haveria como saber os efeitos do veneno em um mestiço, pelo menos, não em mestiços de vampiro – como eu. Mas eu não podia me dar ao luxo de ponderar muito sobre isso. Eu tinha algo mais importante em minhas mãos no momento. Algo que nem eu mesma tinha certeza, mas que, obviamente, implorava por minha atenção a cada noite mal dormida, e que muito recentemente, mostrava-se em formas de surtos de descontrole. Inspirei o ar até sentir meus pulmões cheios, reuni toda força que sobrara em minha mente e me obriguei a continuar. Eu não voltaria para casa tendo menos respostas – e mais perguntas – martelando em minha mente. Contornei a enorme barreira de pele arruivada que se postava rigidamente em minha frente e rumei apressada para a entrada da casa. Jacob concluiu enfim que ele não conseguiria vencer minha convicção – ou minha teimosia – e apenas me seguiu escada a cima. Quando forcei a maçaneta da porta, descobri, por fim, que estava aberta. Lancei um olhar inquisitivo a Jacob, que na mesma hora, se pôs em modo de alerta.
- Alice colocou as chaves da casa na mochila, Jake. O que significa que estava trancada. – Sussurrei para ele. Jacob assentiu, suas narinas dilatando para captar odores estranhos. Empurrei a porta lentamente, o ar parado e frio de dentro da sala me alcançou. Inspirei e não senti nada além do cheiro de mofo e poeira estagnados no ar. Avancei mais alguns passos, sempre alerta a qualquer coisa que se movesse, ou que cheirasse diferente. A escuridão não me atrapalhava em nada na inspeção do ambiente, eu podia ver claramente cada móvel coberto por plásticos e lençóis velhos, cada tapeçaria enrolada nos cantos da sala, podia ver a teias de aranha envolvendo os lustres e a balaustrada da escada até o andar superior. Mais alguns passos e eu poderia ver o piano. Quando o localizei, junto à parede norte da sala, quase não o reconheci de imediato. O piano de meu pai estava sempre em perfeito estado de conservação, sempre imponente na grande sala branca, destacando-se em seu pretume lustroso. Agora, estava coberto por uma grossa camada de pó que o deixou acinzentado e de aparência decadente. Ouvi Jacob se afastar, adentrando na parte oposta da sala, de onde se podia ver a sala de jantar e a entrada da cozinha. Segui totalmente focada no que vim averiguar, todo o resto transformando-se num borrão indistinto. Afinal, eu sabia onde estava – onde supostamente deveria estar – o bilhete endereçado a mim.
***
- Jake. – Foi tudo que consegui extrair de minha voz. Um sussurro fraco e sufocado. Era tudo que eu podia fazer, enquanto sentia todo meu corpo congelar. Apesar do choque, eu consegui identificar os sintomas: outra visão. Não tão nítida como a primeira, mas decididamente uma visão. A parte consciente de mim podia ouvir os passos apressados de Jacob, vindo a meu encontro. Mas a maior parte estava tentando encontrar alguma coesão nas imagens que explodiam em minha mente. Forcei toda minha concentração naqueles flashes. E então eu pude entender o que significavam – o que queriam me dizer. Eu vi uma floresta, densa e iluminada. Não pude ver o céu, mas a luz que irrompia das árvores no alto, era clara e forte – raios de sol demais para Forks em seu melhor dia. O mais estranho na cena era o modo como eu a via, parecia mais uma lembrança do que qualquer outra coisa, por que era através de meus olhos que eu via a floresta, não havia mais ninguém ali. Poderia ser muito bem apenas uma lembrança minha, correndo pela floresta num dia ensolarado. Mas minha memória era tão boa quanto qualquer outra em nossa espécie, praticamente impecável. E eu sabia – tinha certeza – que o que eu via, não era uma lembrança minha. Ademais, olhando mais atentamente, eu pude sentir a urgência nos passos da pessoa que corria, então eu soube. Alguém estava fugindo.
As mão quentes de Jacob me alcançaram no canto escuro, encolhida junto ao piano de meu pai. Eu pressionava minhas têmporas, tentando impedir que elas explodissem. Os flashes difusos me chicoteavam com uma força avassaladora. Eu não conseguia pensar, não conseguia encontrar uma saída em minha própria mente. Sentia que a qualquer momento meu cérebro iria rachar. De início não havia som, apenas imagens de lugares e pessoas que eu nunca tinha visto. A imagem predominante era sempre a da floresta, por onde alguém corria desesperada, fugindo de um atacante invisível. Tentei escutar as vozes ao fundo, mas não consegui distinguir nenhum som coeso. Então, tudo pareceu baixar o volume, ficando para traz e sumindo em algum canto de minha mente. As imagens desbotaram, como se alguém tivesse jogado água em uma tela fresca. Quando quase tudo havia silenciado e as imagens se apagavam lentamente, uma única voz ressonou em meus ouvidos, como se alguém sussurrasse para mim o que eu não consegui enxergar. Zafrina.
Abri os olhos e me coloquei de pé num salto. Jacob estava sentado no chão, a três metros de mim, os olhos arregalados. Sua postura era tão estranha, que se eu não soubesse que Jacob era tão ágil quanto eu, eu teria imaginado que ele simplesmente caiu de costas. Olhei-o mais atentamente, queria contar tudo que tinha visto – e ouvido. Mas sua expressão era tão chocada, que vacilei em minha aproximação. Ele devia estar assustado, afinal, eu não parecia uma pessoa muito confiável quando tinha aqueles ataques. Me aproximei lentamente com a mão estendida para ele. Queria mostrar que estava tudo bem agora, mas nem bem andei três passos e Jacob estava de pé, me encarando com um misto de preocupação e entusiasmo. Me senti aliviada, por um momento pensei que Jacob estava com medo de se aproximar de mim. Estendi minha mão até seu rosto, queria mostrar a ele tudo que vi, mas antes de tocá-lo ele segurou minha mão. Olhei atônita para ele, por que ele não me deixava mostrá-lo o que aconteceu? Ele estava fugindo de meu toque pela primeira vez na vida.
- Não precisa me mostrar Nessie, eu vi tudo. – Jacob me encarava sério. Uma expressão insondável atravessou seu rosto. Será que as visões tinham atingido ele também? O que estava acontecendo ali?
- Como? – Perguntei perplexa.
- Você me mostrou. – Jacob estendeu sua mão até meu rosto e o afagou, suas mãos ainda estavam ligeiramente trêmulas. – Você me atirou no chão quando tentei te ajudar, e antes que eu pudesse me levantar, você começou a transferir seus pensamentos para mim. – Ele dizia cada palavra com assombro e mágoa. – Por que não me contou que seus poderes estavam se desenvolvendo? É por isso que você tem estado tão nervosa ultimamente?
Eu o olhava com incredulidade, nada daquilo fazia sentido. Como eu poderia ter desenvolvido meus poderes sem saber? Vampiros não mudam com muita freqüência, mesmo eu, uma mestiça, depois de atingir o pleno desenvolvimento, iria paralisar no tempo. Nossos poderes eram muito aleatórios, imprecisos. Eram capazes de se desenvolver com os anos, mas – como nós – mantinham-se estáveis depois de certo tempo. Mas que certeza eu tinha? Pessoas como eu não eram muito comuns, mesmo no nosso mundo.
- Jake, não pode ser. Não pode ter sido eu. Eu precisaria te tocar, não sei como poderia te mostrar algo sem te tocar, eu… – As palavras sumiam à medida que minha mente vagava pelas possibilidades. De fato, eu nunca sentira nada tão forte. Quando tive a primeira visão, foi assustador e intenso, nítido demais. Mas agora, eu sentia que minha mente tinha sido espremida e depois esticada de forma que eu a sentia mais flexível – de maneiras desconfortáveis e irregulares – mas depois da dor intensa, apenas uma leveza que me era estranha tomou lugar em minha cabeça. Eu realmente não sabia se Jacob tinha razão, ou se alguém estava influenciando nossas mentes. O que poderia ser muito bem uma combinação dos dois. Jacob estava absorto em suas próprias teorias quando o puxei para fora da casa.
- O que foi Ness, onde você está indo? – Perguntou ele enquanto corríamos de volta para a estrada encoberta pela vegetação.
- Precisamos entender um pouco isso certo? Mas vai amanhecer logo, Billy vai se perguntar por onde nós andamos, e a última coisa de que preciso é que ele ligue para Carlisle. – Eu não tinha muito tempo. Se eu não voltasse com Jacob até o entardecer de domingo, minha mãe e meu pai viriam atrás de mim.
Não havia bilhete, mas eu tinha algo mais concreto com que me preocupar. Ao que tudo indicava, alguém estava deixando uma trilha de migalhas para mim, e a próxima – eu ainda não fazia idéia do por que – me levava até Zafrina. Capítulo 11 – Fuga
Jacob andava de um lado para o outro, amassando folhas secas enquanto pensava. Tinha uma expressão concentrada e ao mesmo tempo sofrida, como se estivesse com dor de cabeça. Eu simplesmente me enrosquei num tronco de árvore e deixei minha cabeça vagar, na esperança de que ela talvez me desse algumas respostas. Eu tinha muito sobre o que debater e não conseguia achar uma luz em meio ao caos da minha mente. Comecei a repassar mentalmente os fatos, juntar tudo para ver se fazia algum sentido.
Eu tinha algumas certezas, independentemente se eram certezas muito instáveis. A primeira era a mais sólida. Tinha alguma coisa acontecendo – talvez não ali, em Forks – mas em algum lugar, por algum motivo, alguém estava tentando chegar a mim. Para quê, já era algo que estava além de meu entendimento. Se era para me alertar sobre algo, ou apenas para brincar com minha mente até que eu arrancasse a cabeça de alguém, eu não sabia. A segunda era ainda mais improvável e assustadora. De alguma forma o veneno de meu pai estava afetando meus sentidos, e isso incluía também minha capacidade de transmitir meus pensamentos. Algo dentro de mim se expandia silenciosamente e de modos tangíveis. Eu não sabia o que esperar disso e nem podia pedir ajuda para a única pessoa que poderia me dar algumas respostar – Carlisle. E finalmente, o fato de Zafrina estar ligada a tudo isso. A amazona amigável e atenciosa que conheci era talvez o último dos nomes que eu cogitaria por alguma razão. Desde o início – desde o primeiro sonho com Aro – eu sabia, poderia ter apostado que, o que quer que estivesse provocando aqueles pesadelos, estava diretamente ligado à ele. Mas Zafrina? Não, isso era inteiramente novo para mim. O que eu faria agora? Quando todas as peças estavam sobre a mesa e nenhuma delas fazia sentido algum? O que o futuro reservava para mim e para minha família? Eu nunca desejara tanto que Alice pudesse ver meu futuro, pelo menos ela poderia me apontar uma direção.
A madrugada estava fria e úmida, e um brilho perolado entrava timidamente pelas árvores. O Rabbit estava estacionado a poucos metros da entrada da casa dos Black. Todos ainda dormiam, exceto pelas aves que começavam suas atividades barulhentas pela floresta de La Push. O silêncio era opressor, me fazia desejar ouvir a voz rouca de Jacob, comentando sobre alguma coisa banal. Não queria pensar nos riscos, no perigo, nas escolhas que teria que fazer. A paz e tranqüilidade que senti por ter voltado para casa tinha se esvaído completamente de mim. Olhei Jacob encostado numa árvore, olhando além de mim, imerso em seus próprios pensamentos. Eu precisava ouvir sua voz.
- Jake venha até aqui. – Estendi a mão para ele, queria me sentir mais próxima da realidade segura que minha vida costumava ter. Ele me olhou nos olhos por um momento e depois caminhou lentamente até mim. Abracei-o. Era só o que eu precisava no momento.
Estava tão desesperada por algum consolo, que demorei a perceber que Jacob retribuiu um abraço morno, do tipo que se dá em sua avó idosa. Congelei. Eu tinha atacado Jacob pela segunda vez em uma semana e estava agindo como se nada tivesse acontecido. Eu merecia aquela punição, apesar de temê-la mais que qualquer coisa. Reunindo todas as forças que me sobraram, eu o encarei. Antes que eu pudesse perguntar algo, ou ler sua expressão ele falou.
- Nada vai mudar, não se preocupe. – Seu tom era um consolo sem emoção. Seus olhos o traíam, eu o conhecia bem demais. – Eu vou estar onde você estiver, enquanto você me quiser. Não importa quem você seja ou o que você faça. Eu só preciso que você confie em mim. Eu nunca vou deixar nada de ruim acontecer com você, mesmo que custe minha vida.
Eu queria revidar, dizer a ele que eu sentia muito e que realmente não entendia o que estava acontecendo, mas Jacob estreitou a distancia e me abraçou tão forte que eu senti que até meus pensamentos cederam a sua força. Mas não conseguia deixar de me perguntar o que eu faria se o perdesse? Se o que me espreitava no horizonte estivesse muito além de minha força, o que eu faria para protegê-lo?
- O que você acha que aconteceu lá? – A voz rouca de Jacob me arrancou de meus pensamentos angustiantes e eu o agradeci mentalmente por isso.
- Não sei Jake. As coisas ficaram muito mais estranhas. – Segurei a mão enorme e quente de Jacob, como sempre fazia quando estávamos sozinhos. – Quero dizer, o que Zafrina tem a ver com isso? Eu me lembro claramente dela, como costumava me entreter com suas ilusões enquanto mamãe aprendia a lutar. Apesar do jeito selvagem, ela era muito gentil, e…gostava de mim. – As recordações inundaram meus pensamentos. Simplesmente parecia impossível que Zafrina de repente ficasse entediada e resolvesse brincar com minha mente. E ainda assim, ela estava na América do Sul, seus poderes não se estendiam de tal forma e se ela estivesse planejando uma visita, Alice veria. Mais e mais peças que não se encaixavam.
- Isso está cada vez pior Ness. Primeiro seus pesadelos com os sanguessugas da Itália, depois as visões com o tal invasor e agora isso? – Ele parou, analisando minha cicatriz, e eu entendi. Ele estava se perguntando o mesmo que eu. Será que o veneno de meu pai estava me mudando? O que aconteceria comigo?
- Jake, eu acho que, quando meu pai me mordeu, sem querer… – Adicionei, olhando timidamente para Jacob, que cerrou os dentes. – Bem, acho que o veneno teve algum efeito sobre mim, afinal, eu não sou venenosa. Mas eu não posso ter certeza, não posso me basear em nenhum caso parecido. – Jacob estava sério, eu sabia que levaria uma bronca.
- Você não deveria ter entrado na briga. – Disse ele secamente.
- E o que eu deveria ter feito? Deixá-lo te matar? – Fechei a cara para ele.
- Acho que você está se esquecendo o que o veneno faz com mestiços, como eu e você. – A voz dura e fria de Jacob me atacou como uma bola de neve diretamente no rosto. Eu não podia contestar nenhuma de suas insinuações. Eu não tinha provas ou fatos nos quais me apoiar. Mas eu não conseguia me arrepender de ter impedido meu pai. Se eu não o tivesse feito, Jacob estaria morto agora. Se eu morresse, pelo menos seria mais lentamente, ainda teria tempo de descobrir o que estava acontecendo e proteger minha família. Pelo menos era com isso que eu contava. Um mestiço pelo outro. Se Jacob vivesse, estava bom para mim.
- Você não sabe disso. – Retorqui.
- Nem você. – Rebateu ele.
- Bem, eu não morri ainda.
- Não me peça pra ficar aqui esperando que aconteça. Se você piorar, eu vou ligar para o doutor. – Pelo tom de voz de Jacob, eu soube que a conversa tinha terminado. Não contestei. Eu tinha apenas que agir rápido, antes que qualquer coisa me impedisse. Tinha que ser capaz de lidar com isso, não podia deixar Jacob com a responsabilidade de ter encoberto meus planos, não podia deixar meu pai se martirizando por não ter conseguido se controlar. Não podia deixar minha família se culpando por não terem acreditado em mim. Nenhum deles tinha culpa. E eu estava justamente tentando descobrir de quem era – embora cada célula de meu corpo imortal gritasse a resposta.
***
Quando entramos na pequena sala-cozinha de Billy, o café da manhã estava cuidadosamente servido na mesa. Sue Crearwater estava junto a pia, mexendo ovos em uma tigela. Seth estava esparramado no sofá, entretido em uma conversa sobre uma partida de baseball com Billy. Jacob sentou-se a mesa e começou a encher uma vasilha de cereais e leite, enquanto comia um generoso pedaço de bolo de fubá. Fui me sentar no sofá minúsculo que ficava ainda menor com Seth todo esparramado. Esperava estar sendo convincente o suficiente em minha encenação de descontração, e desejava loucamente que Seth não fizesse perguntas sobre onde eu e Jacob estivemos na noite passada. Foi então que Billy pareceu lembrar-se de algo.
- Ah, Nessie. Seu pai ligou hoje bem cedo, queria falar com você. Eu disse que você e Jake estavam na floresta, provavelmente caçando. Ele mandou dizer a você que sente muito e que assim que puder, que você ligue para ele. – Billy baixou o livro e me encarou sob as sobrancelhas grossas e negras. Senti-me feliz por meu pai estar falando comigo novamente, reconhecendo seu erro. Mas algo na expressão de Billy não deixava que eu me sentisse aliviada. Agradeci com um aceno de cabeça e um sorriso enviesado e sem graça.
- E… ele disse que estão pegando um avião hoje a tarde para Seattle, disse que estão vindo para Forks. – Pela visão periférica eu pude ver Jacob congelar na mesa. Billy estreitou ainda mais os olhos, visivelmente desconfiado com a visita inesperada. Sue e Seth pareceram alheios as desconfianças de Billy e as reações de Jacob. Tentei manter minha expressão o mais leve e descontraída possível quando falei.
- Hum… Que ótimo. Charlie vai gostar da notícia. – Olhei sugestivamente para Jacob.- Obrigado Billy, acho que vou avisá-lo agora mesmo. – Me levantei calmamente, lutando com o impulso de sair correndo daquela sala minúscula e do olhar desconfiado de Billy.
- Vou com você. – Jacob empurrou em um gole só o restando do cereal, derramando leite no peito nu. Estava quase na porta quando Billy o chamou.
- Jake ponha uma roupa. Charlie vai acabar te prendendo qualquer dia desses por atentado ao pudor. – Billy continuou fingindo estar entretido com seu livro.
- Ah, é. Ness, me espere no carro. Vai levar só um segundo. – Ele me lançou um olhar severo quase como se dissesse alto e claro: “Não ouse sair sem mim moçinha”. Acenei para ele e me despedi de Sue, Seth e Billy com um até mais e saí para a orla de árvores que ladeavam a garagem improvisada de Jacob. A uns cinqüenta metros, caminhando despreocupadamente em direção a casa dos Black, estava Emily e seu filho, Henry. Ela o trazia aninhado no colo, mostrando ao garoto as aves no alto das árvores. Acenou para mim quando me viu, eu acenei de volta e me perguntei se seria muita falta de educação se eu entrasse na garagem e me escondesse dentro do carro. Não estava com cabeça para conversas, eu precisava dar o fora dalí antes que meu pai chegasse com o resto da família e descobrisse o que estava acontecendo. Respirei fundo e fui ao encontro de Emily.
- Bom dia Nessie. – Ela sorriu, seu rosto arruinado se contorcendo ligeiramente.
- Bom dia Emily, como está seu lobinho? – Sorri de volta e torci para que parecesse convincente.
- Está mais agitado que nunca. – Ela sorriu ainda mais largamente enquanto olhava o rostinho redondo e moreno do garotinho em seu colo. – Tive que trazê-lo para tomar um ar, antes que ele destruísse minha casa e acordasse o Sam.
- Hum, as patrulhas noturnas realmente acabam com eles. – Tentei participar da conversa, mas minha voz soava distante. – Jacob vivia dormindo pelos cantos. – Olhei para trás mais vezes do que pretendia, implorando para que Jacob andasse logo.
- Onde está o Jake? – Perguntou Emily, percebendo meu desassossego.
- Foi vestir uma roupa, estamos indo visitar Charlie. – Olhei mais uma vez para a entrada da casa.
- Hum…e como vai sua mãe? Faz muito tempo que não a vejo. – Emily parecia convencida em puxar assunto.
- Ah está ótima. – Tentei relaxar, conversar calmamente com Emily. Afinal, eu não sabia quando voltaria a vê-la – nem se voltaria.
- Hum, mande lembranças a ela. – Ela sorriu mais uma vez e eu retribui. De repente algo em que estive pensando tornou a invadir minha mente. Algo que tinha sido eclipsado por pensamentos mais preocupantes, mas que era igualmente perturbador. Sem pensar muito se deveria ou não, perguntei.
- Emily, você acha que sou certa para ele? – Não pude deixar de perguntar – e de me envergonhar com a pergunta. Era uma oportunidade que eu não teria novamente. Saber o que Emily pensava sobre Jacob e eu. Ela não era minha família, era um indivíduo externo, seria imparcial. Ela se surpreendeu com a pergunta, mas ponderou por um instante e disse.
- Sabe de uma coisa Nessie? Eu nunca presenciei uma história tão absurda em minha vida. – Ela me olhou ternamente, seus olhos repuxados para baixo pelas cicatrizes, cintilaram em mim. – Quando sua mãe chegou aqui, ela estava visivelmente doente. O amor que ela sentia por seu pai não era algo racional. E quando percebemos o nível de envolvimento dela com Jacob, ficamos todos muito preocupados. Por que era uma batalha perdida para ele. Quando seu pai foi embora, bom, todos tivemos um pouco mais de esperança, mas eu sabia que ela nunca amaria Jacob como amava seu pai. Era estranho por que, Jacob não se importava com nada. Ele passou por cima de tudo sabe, como se estivesse sendo arrastado por uma força invisível, como se fosse obrigado a estar onde Bella estivesse. – Ele parou por um segundo, absorta em suas próprias lembranças. – Quando você nasceu, a matilha estava dividida. Jacob virou as costas para seus próprios irmãos para proteger Bella e você. Todos ficamos muito chocados com isso. Mas quando Jacob apareceu aqui, dizendo que tinha sofrido imprint com você, bem, tudo se encaixou, pelo menos pra mim. – Ela sorriu e acariciou meu ombro. – A coisa que prendia Jake à sua mãe não era o amor que ele tinha por ela, e sim o que sentia por você. Nessie, ele te amava antes mesmo de você nascer. Todo sofrimento, toda decepção, tudo pelo qual ele passou foi apenas o preço. Você estava no destino de Jacob assim como seu pai estava no destino de sua mãe. Um destino improvável e inacreditável, eu creio. Mas todos nós temos coisas inesperadas em nossas vidas, veja eu e Sam. – Ela balançou a cabeça, tentando se desvencilhar de seus próprios pensamentos. Eu poderia imaginar quais eram. Leah.
- Bem, é um ponto de vista. – Sorri para ela. - Obrigada Em. Eu tinha razão em pensar que Emily me daria sua opinião verdadeira. E era algo em que eu gostaria de acreditar. Tornava tudo mais fácil para se encarar. A perspectiva de que eu era o destino de Jacob, e não apenas seu prêmio de consolação, era algo mais fácil de lidar. Eu queria dizer a ela que eu desejava ser tão certa para Jacob quanto ela era para Sam, ambos tão felizes com sua vida – e com seu bebê. Mas quando abri a boca para falar, senti passos apressados vindo em minha direção, e o cheiro quente e amadeirado de Jacob correu com a brisa leve da manhã, misturando-se com o cheiro da terra molhada e das árvores da floresta. Inspirei fundo o aroma que eu mais gostava no mundo. Olhei para Emily, que acompanhava a aproximação de Jacob com um aceno contente.
- A gente se vê Emily. – Estendi a mão para ela. Ela apertou levemente e sorriu.
- Até mais Nessie.
- Hey, e aí Emily, como está esse meninão. – Jacob vinha sorrindo, tinha vestido um jeans, uma camiseta preta e uma jaqueta de couro preto. Prendeu os cabelos num rabo de cavalo.
- Estava justamente falando para Nessie que hoje ele está impossível. – Ela sorriu, cumprimentando-o. O garotinho se agitou no colo da mãe, estendendo os braços para Jacob.
- Há há, ele quer vir comigo Em. O garoto gosta de mim. – Os olhos de Jacob brilhavam, deliciando-se com o entusiasmo do menino. Não pude deixar de sorrir, vendo Jacob jogar o menino pra cima e fingir um avião com o corpinho rechonchudo do bebê, que soltava uma risada gostosa toda vez que Jacob o balançava no ar.
- Jake, o garoto vai vomitar. – Eu toquei a base de suas costas. – Vamos, temos que ver Charlie. – Disse audivelmente, alimentando meu álibi.
Nos despedimos de Emily e caminhamos para o carro. As velhas preocupações preenchendo novamente o ar. Olhei para Jacob enquanto percorríamos as estradas de La Push e falei.
- Precisamos encontrar Zafrina, Jake. – Disse num sussurro tristonho.
- Eu sei. Sem despedidas. – Ele me olhou, seus olhos castanhos demorando-se em meu rosto. – E para onde devemos ir? Para o sul?
- Eu não sei ainda. Mas não podemos mais ficar aqui. Meus pais não podem saber. Ainda não. – Retribuí o olhar. Eu tinha que tomar cuidado, era fácil se perder naquele mar castanho escuro.
- Eles vão saber logo. Meu pai já está desconfiado que algo está acontecendo. Ele pode alertar o Sam. – Ele falava baixo e cadenciadamente, absorto em nosso momento de contemplação mútua. Eu sorri.
- Jake, a estrada. – Sustentei o olhar.
- Somos indestrutíveis. – Ele sorriu malignamente e levantou uma sobrancelha.
- O Rabbit não. – Ele suspirou e relutantemente voltou sua atenção para a estrada. Pegou minha mãe esquerda e beijou. – Para onde Ness?
Estávamos na saída para a rodovia. Precisávamos tomar um caminho agora. Respirei fundo e fechei os olhos, me concentrei nas imagens mais distinguíveis que pude ver em minha última visão. Uma após a outra elas dançaram por minha mente. Jacob assistia a todas elas comigo, apertava minha mão forte, como se estivesse tentando melhorar a recepção. De repente, tão abruptamente que me fez pular no banco, Jacob gritou.
- Pare. – Eu abri os olhos e o encarei.
- O que foi Jake? – Perguntei.
- Eu conheço um desses lugares que você me mostrou. – Disse ele, os olhos arregalados de subida compreensão. Me concentrei novamente, e repassei todas em câmera lenta. Jacob murmurava “não” a cada uma. Então, ele enrijeceu e disse.
- Essa. – Seus olhos estavam desfocados pelas imagens em sua cabeça. Prendi a respiração. A floresta iluminada e densa se estendeu em minha mente. Cessei as imagens e as substitui por um “Como?”. Jacob me olhou calmamente e colocou o carro em movimento novamente, manobrando para o lado oposto.
- Já estive lá. Quando fui embora daqui, na época do casamento de sua mãe e seu pai. Eu não prestava muita atenção aonde ia, mas eu me lembro de caçar nessas terras. – Ele estava sério, olhava a estrada com uma atenção maior do que o necessário. – É Vancouver. Pelo amor de Deus, o que uma amazona está fazendo em Vancouver?
Essa foi a pergunta que pairou no ar durante toda a viagem. Como se eu precisasse de mais perguntas.
Capítulo 12 – A Estrada
- Eles vão nos rastrear Nessie. Assim que meu pai disser a eles que não voltamos para casa. – Jacob cortou o silêncio sufocante. Seguíamos pelas estradas secundárias com o sol se pondo à nossas costas. Fui tragada de meus devaneios pelas palavras de Jacob, e imediatamente me vi planejando o próximo passo. Era estranho como essa nova Renesmee pensava e agia. Era quase como se meus instintos fossem milhões de vezes mais rápidos que eu. Senti meus músculos se retesarem com a perspectiva de ser caçada pela minha própria família. O que eles pensariam quando descobrissem que eu estava fugindo deles? O que fariam quando soubessem que eu e Jacob não estivemos na casa de Charlie naquela manhã? De uma coisa eu tinha certeza. Eu estava deixando minha amada família – meus amados pais – para traz outra vez e seguindo meu próprio caminho, e eu não sabia se esse caminho teria volta. A perspectiva de nunca mais vê-los era assustadora demais para pensar agora, justamente quando eu tinha que descobrir um jeito de despistá-los.
Eu não era mais uma menina – assim como Jacob não era mais um garoto – apesar da aparência. E infelizmente o destino quis me colocar a prova, me testando com coisas que eu sequer compreendia, como o amor impossível que eu sentia pelo rapaz ao meu lado, que crescia e se alojava cada vez mais fundo em mim. Como o ódio que se espalhava por meu corpo cada vez que eu pensava que, mais uma vez, Aro tentava tirar minha família de mim. Eu não apenas queria encontrá-lo e confrontá-lo, eu precisava daquilo. Sete anos não abrandaram minhas lembranças nem tão pouco minha raiva. Tantas coisas novas que se misturavam em mim, me mudaram mais rapidamente que qualquer outra coisa. Mas como manter a salvo as pessoas que amo, se elas estão tentando me impedir? Eu precisava despistar meus pais, devia haver um jeito. Mas como? Eu podia imaginá-los agora, chegando em Forks e ligando para mim, depois para Billy, que diria a eles que eu e Jacob tínhamos ido visitar Charlie. Então minha mãe ligaria para Charlie e ele diria que não estivemos lá. E eles estariam em nosso encalço antes do amanhecer, nos rastreariam e nos encontrariam. Meu pai descobriria tudo e todos estaríamos expostos. Não podia acontecer, eu me certificaria disso. Eles não podiam nos encontrar, não agora que eu estava chegando perto.
Eu não fazia idéia do quanto tempo demorei para concluir tudo isso, quando olhei para Jacob, ele estava me olhando de esguelha, analisando meu comportamento mudo.
- Jake, pare o carro. – Jacob olhou de mim para a estrada escura e – concluindo que não podia parar no meio da pista sem acostamento – estacionou quase no meio das árvores, onde se abria um pasto de vegetação rala e espaça. Desligou o motor e esperou. Dois minutos de total silêncio se passaram, Jacob respirava fracamente enquanto encarava as próprias mãos no colo.
- Escute, precisamos pensar um pouco ok? – Eu não estava gostando da distância falsamente displicente que emanava de Jacob. Eu queria ouvir suas reclamações de como eu estava sendo irresponsável, de como seria impossível despistar nosso cheiro e nossa direção. Mas ele não disse nada. Apenas encarava o nada, esperando que eu falasse e despejasse mais maluquices. Respirei fundo e tentei deixar a voz firme ao falar. Falhei miseravelmente.
- J-Jake, fale comigo, esse silêncio está me matando. – Um lamurio trêmulo e suplicante escapou por meus lábios no lugar da frase corajosa e decidida que eu tentava formular. Jacob me encarou, seu rosto estava tranqüilo – insondável – mas seus olhos brilhavam de um jeito incandescente, quase me queimavam na escuridão que nos cercava.
- Eu concordei em vir até Forks com você para te tranqüilizar de que aqueles sonhos e visões não passavam de besteiras. – Disse ele numa voz fraca, mas suficientemente firme para me exaltar. – Mas as coisas se complicaram e eu não sei o que fazer. – Ele suspirou e voltou a encarar a escuridão. Fiquei quieta, ouvindo o coração dele martelar ruidosamente.
- E se você se ferir? Se estiver certa sobre os sanguessugas da Itália e isso for uma armadilha? – A cada palavra, sua voz tornava-se mais rouca e sua respiração mais audível. – Se era isso que eles queriam? Tirar você de perto de sua família? E eu te ajudando a colocar o pescoço a prêmio. – Jacob cerrava os punhos rigidamente, tentando conter os tremores que agora balançavam o carro.
- Jake, vá com calma. – Não seria nada fácil ficar num Rabbit apertado com um lobo enorme e raivoso. Ele respirou duas, três vezes e conseguiu encontrar o foco. Eu preferia que ele gritasse comigo, que despejasse toda raiva em mim e não que se culpasse e responsabilizasse por tudo que me acontecia. Mas como eu ia explicar a ele o quanto era importante prosseguir? Como eu o faria entender que lá no fundo, em alguma parte mais sábia e corajosa de mim, algo gritava furiosamente para que eu seguisse em frente sozinha? É claro que eu temia, afinal, eu não estava contando com nada além de meus instintos e visões desconexas de pessoas que eu não via há anos – ou que nunca vi.
- Não posso fazer isso Ness. Se algo der errado, se você… – Ele parou, inspirando grandes lufadas de ar, como se estivesse sufocando. Por um momento eu pensei que ele fosse sair do carro, arejar a cabeça, mas ao invés disso ele girou a chave na ignição e ligou o carro.
- Jake, o que… – Não tive tempo de terminar a frase.
- Estamos voltando Nessie. Vou te levar para casa e nós vamos esclarecer as coisas com sua família. – Sua voz era grave e dura, ele não me olhou enquanto falava. Colocou o carro de volta na estrada e acelerou para o sul.
- Jake, você não pode fazer isso! – Eu gritei para ele, tentando fazê-lo parar o carro. Mas Jacob mantinha-se firme.
- Você pode me odiar por isso Nessie, mas eu não vou deixar você se matar.
E então, tudo aconteceu rápido demais. Em um segundo eu olhava boquiaberta para Jacob, tentando pensar num jeito de fazê-lo seguir em frente comigo, e em outro eu estava me estatelando contra o vidro semiaberto do carro. Jacob freou bruscamente logo após uma curva fechada, o carro não estava tão rápido – pelo menos não para mim – mas foi o suficiente para me fazer bater contra a porta e arrancá-la com um baque de pedra contra metal. Rolei pelo asfalto em meio aos cacos e ferragens ainda presos em mim, escorreguei por um barranco íngreme encoberto por uma relva baixa. Quando finalmente parei, na encosta do morro, eu não estava nem um pouco machucada, mas minhas roupas estavam arruinadas, rasgadas e sujas de terra em toda parte, e eu estava muito irritada. Sentei na terra fofa e comecei a me livrar dos cacos de vidro emaranhados em meus cabelos, minha raiva era tão grande que desejei que Jacob, pelo menos, tivesse quebrado um dedo ou dois. Foi então que ouvi passos na estrada acima, o atrito de solas de sapato contra o solo e o barulho desajeitado que projetavam me diziam que não eram de Jacob. Escutei com mais atenção, e se nenhum caco de vidro estava obstruindo minha audição, eu estava certa de que eram três pessoas distintas. Inspirei. Um cheiro quente de suor, sujeira e bebida chegou até mim. Humanos.
Comecei a subir a encosta do barranco o mais silenciosamente que pude. O que diabos três humanos estavam fazendo no meio de uma estrada à noite, e pelo que parecia, a pé? Me ocorreu então que Jacob fora obrigado a parar para não atropelá-los. Bem, isso não atenuou minha raiva, se ele não estivesse agindo como uma babá irritante, nós não estaríamos aqui, perdendo um tempo precioso da fuga.
A voz de um dos três homens soou estranhamente alto na noite imaculada, e eu parei, a três metros da borda para ouvir.
- Você acha que ele está morto? – Perguntou um deles, se aproximando alguns passos do Rabbit sem porta. Perguntei-me o que Jacob estava pretendendo, fingindo-se de morto.
- Talvez. Vamos logo com isso, reviste tudo. O carro devia estar podre, olhem onde foi parar a porta. – Desdenhou o outro. Os três homens riram e começaram a apalpar as reentrâncias do carro. Eles com certeza não viram quando voei morro abaixo, fora tudo muito rápido para olhos humanos captarem no escuro. Não seria uma boa idéia aparecer assim, suja, mas sem nenhum arranhão, depois de rolar um barranco com cacos de vidro pra todo lado. Eles perceberiam algo de errado comigo. Esperei eles terminarem o serviço e darem o fora. Ladrõezinhos de merda, Jacob ia ficar muito louco quando visse seu carro arruinado daquele jeito. Mas por que ele não estava socando aquelas caras nojentas? Se eu conhecesse Jacob como pensava conhecer, um amassado na lataria daquele carro já justificava uns tapas.
Uma apreensão ácida começou a ferver em meu estômago. E se Jacob estivesse realmente ferido? Ele se curaria não é? Afinal, ele era um imortal, como eu. Apesar de saber que Jacob poderia ser esmagado por um ônibus e ainda estaria fazendo piada, não pude deixar de subir mais alguns metros e espiar entre a vegetação na borda. Dois dos homens se espremiam pelo buraco onde eu arranquei a porta do passageiro, um remexia nossas mochilas no banco traseiro, o outro apalpava o porta-luvas. O terceiro estava do lado oposto, onde provavelmente Jacob estava fingindo-se de morto. Eu não podia deixar de achar estranho aquela atitude completamente incomum de Jacob. Nem em um milhão de anos eu pensei que iria presenciar o dia em que Jacob não estivesse animado por uma briga, mesmo com humanos fracos e sensíveis. Eu não conseguia enxergar Jacob dalí, os homens tapavam meu campo de visão, então apenas esperei que terminassem seu saque logo, para que eu pudesse convencer Jacob de seguir para o norte comigo.
- Achei um celular, uma carteira recheada de verdinhas e vários cartões de crédito. Aqui diz que é de uma tal de Re-ne-sse Cullen, que nome estranho. Será que esse aí roubou? Não achei nada dele aqui, só uns trapos velhos. – O homem ao lado da janela do motorista começou tatear os bolsos do jeans e da jaqueta de Jacob. E então, os outros dois se afastaram alguns passos, contando o dinheiro que pegaram em minha bolsa. Foi quando eu vi a mão de Jacob subir veloz até o pescoço do homem que tateava seus bolsos. O homem pulou para traz com os dedos de Jacob apertando ferozmente seu pescoço. Os outros dois pararam, e uma gritaria nervosa de “largue ele” e “eu vou atirar” se embaralhou na cena. Jacob segurava o homem num aperto de aço enquanto varria a noite a minha procura. Ele nem sequer piscou quando saiu do carro guindando o homem a dez centímetros do chão pelo pescoço. Ele contornou o carro e atirou o homem roxo e ofegante aos pés dos companheiros armados. Olhou para a porta do carro retorcida na guia da estrada e deu um passo em direção ao barranco atrás dos homens. Dois tiros ecoaram na noite e Jacob tombou no asfalto negro.
***
Não pensei que seria assim. Sempre que me imaginava frente a frente com a morte eu supostamente estava chorando, ou lutando, ou ao menos, lamentando. Mas só o que havia em mim nesse momento era uma dormência exaustiva, como se meu corpo estivesse cansado como jamais estivera em toda minha vida. O mais curioso é que eu podia sentir cada parte de mim, nunca estive mais consciente de meu corpo, de minha mente, de meu coração pulsando como jamais fez em toda minha curta vida. E havia minha alma, uma luz de esperança dentro de cada ser vivente, e ela agora estava corrompida, partida ao meio, irremediavelmente manchada de vermelho, de sangue humano. A única coisa que me fez parar foi a total ausência de vida naqueles três corpos inertes e secos. Como pude contrariar toda a crença de minha família? Como pude ignorar séculos e séculos de negação, de esforço, de sofrimento? Aqui, aninhada no colo do homem que me arrastava floresta adentro, do homem que – contrariando seus instintos e os horrores do que eu acabara de fazer – estava me levando embora, para longe dos meus pecados, para longe da minha desgraça, eu só conseguia sentir mais repulsa por mim mesma. Eu não podia justificar aquilo, nem para mim, nem para ninguém. Ouvi os tiros, vi Jacob tombar, vi seu sangue ser derramado e simplesmente me atirei contra seus agressores. Rasguei a garganta dos três e não parei até a última gota daquele líquido imundo escorregar por minha língua e se infiltrar em minhas veias como um ácido corrosivo – e delicioso. O pior em todo aquele pesadelo foi sentir o prazer pulsando em mim, foi me sentir tão vívida e fortificada que nem mesmo a vergonha e a repulsa conseguiam fazer meu corpo parar de funcionar, como uma festa. Minha mente estava apenas parcialmente consciente de Jacob ateando fogo nos corpos e no carro que tanto se esforçou para montar, seu primeiro grande feito. Os ferimentos de bala já estavam fechados em seu peito quando me ergueu do chão, suja de sangue e terra, e me levou para longe do fogo, da fumaça dos corpos queimando, da cena do meu crime.
Ele não disse nada, apenas limpou minha sujeira, encobriu meu mal feito e me carregou nos braços pela floresta rumo ao norte e não parou de correr até o limite do estado.
Capítulo 13 – Sol Nascente
Eu não sei onde estive – nem por quanto tempo – perdida dentro de mim mesma. Estava vagamente consciente do ar frio – cada vez mais frio – passando por mim, do som dos passos firmes e rápidos de Jacob, de sua respiração estável em minha pele. Não sei o que me trouxe, aos poucos e desorientadamente, de volta a meu próprio corpo. Sentia-me uma estátua viva, uma pedra rígida com um coração pulsante. A pele de Jacob era um contraste confortável a minha, como uma ligação com o mundo dos vivos, uma parte minha que sobreviveu ao congelamento. O coração dele impulsionava o meu a bater, embora num ritmo desigual.
Eu não sabia onde estávamos, não sabia para onde ele estava me levando, mas eu não me preocupei com isso. Eu confiaria minha vida a Jacob, e sabia que ele zelaria por ela com a sua própria. Por algum tempo só me concentrei nos sons da noite ao nosso redor, os ecos que deixávamos ao passar por entre as árvores e arbustos. Então, tão subitamente que demorei a perceber, Jacob parou e me baixou ao chão. A luz de postes incidia por entre as árvores a alguns metros à frente. Jacob me colocou deitada entre as folhagens murchas de um abeto, às sombras das luzes fracas de alguma rua deserta, em alguma cidade ao norte. Tentei encontrar minha voz. Tentei me colocar de pé, me mover, reagir de algum modo àquela paralisia de membros e mente, mas um torpor gélido se instaurou sobre mim, e ele era infinitamente mais forte que eu, ou minha vontade de reagir.
- Ness, olhe pra mim. – Tentei obedecer. Deixei as mãos quentes e grandes me guiarem e encontrei um par de olhos castanhos enegrecidos pelas sombras da noite. –Eu vou te deixar aqui por um minuto. Volto antes que você perceba que saí. Fique quieta e não saia daqui. – Ele permaneceu encarando meus olhos vidrados por um momento e depois saiu, me deixando no mais intenso frio que já experimentei, embora a temperatura externa nada tivesse a ver com isso. Uma pequena parte de mim queria saber onde ele tinha ido, mas era pequena demais para vencer toda a névoa em minha mente. Uma lanterna de pilhas fracas.
Forcei meus pensamentos a retroceder, tentei me lembrar de quem eu era. Flashes e rostos acendiam e se apagavam em meus pensamentos turvos. Uma sala ampla e iluminada, a música de um piano ao canto, o som de risadas melodiosas. Uma cabana entre árvores, um par de olhos âmbar me olhando ternamente, um aroma quente e amadeirado se misturando à floresta ao redor da praia. Todas as coisas que me faziam quem eu era foram surgindo e brotando em minha mente. Meus pais, minha família, a tribo que, de alguma forma fazia parte de mim. O amor que eu sentia por ele. Ele, que de tantas formas contribuiu para o que eu era hoje, que de tantas maneiras, salvou o dia. Ele, que me salvou de mim mesmo.
O barulho de pneus derrapando contra o asfalto, o vidro se partindo. Dois tiros ecoando na noite, três corpos estendidos no chão, o sangue em minhas mãos. Lembrar foi mil vezes pior do que sucumbir à letargia. O peso da culpa e da vergonha me atingiram em cheio no peito. Um soco de aço em meu estômago. Um grito agudo e desesperado ecoou nas árvores e se estendeu até a rua deserta. Foi só quando arfei, tentando encontrar o ar que desaparecia de meus pulmões, que compreendi que o grito saíra de minha boca.
Jacob reapareceu entre os galhos um segundo depois. Ele estava reclinado protetoramente sobre mim, murmurando palavras tranqüilizadoras, mas eu só podia senti-lo distante de mim, como se eu nunca mais pudesse alcançá-lo. Senti meu corpo deixar o solo e logo percebi que cruzávamos a margem da floresta, encontrando a luminosidade fraca e amarelada das luzes dos postes. O vento corria livremente pela rua deserta. Fora da proteção das árvores, eu pude sentir a leve garoa gélida bater em meu rosto. Meu corpo era um objeto sem peso, inerte nos braços quentes de Jacob. O céu estava imerso em total escuridão, embora estivesse inquieto, nenhuma nuvem aparecia para reivindicar o movimento hostil acima de nossas cabeças. Um clarão resplandecente incidiu daquele céu imaculado e um estrondo feroz estremeceu o solo quando paramos em frente à última casa da rua.
***
Quando a porta de carvalho escuro se fechou atrás de nós, toda movimentação daquela noite escura e tempestuosa cessou, deixando um silêncio agourento nos envolver no que me pareceu ser um hall de entrada. Não havia nenhuma luz ali, exceto os clarões momentâneos dos relâmpagos, que penetravam as cortinas rendadas da pequena sala à nossa frente. Tentei focar meus olhos em alguma coisa ao redor, encontrar algum indício de que eu estava de volta à La Push, mas nada ali era familiar a mim. O silêncio que zumbia em meus ouvidos não se estendia à minha mente, as lembranças recentemente despertas estavam fervendo dentro de mim, borbulhando como um caldeirão prestes a transbordar. Jacob cruzou a sala e um cheiro de cinzas e madeira seca pairou no ar, devia haver alguma lareira por ali. Os degraus de uma escada estreita rangeram quando Jacob nos conduziu ao andar superior. Onde estávamos? Por que Jacob me trouxe aqui? Perguntas que eram apenas ecos fracos no meio do turbilhão de pensamentos e imagens em minha mente. Aquela bagunça estava me deixando tonta, sonolenta e desorientada dentro do meu próprio corpo. Outra porta se abriu no fim do que me pareceu ser um corredor vazio e estreito. Um cômodo mais amplo e arejado se estendeu à nossa frente, senti pelo deslocamento de ar ao passarmos que ali havia poucos móveis e estava desabitado há algum tempo. Havia poeira e umidade no ar.
Jacob me colocou sobre os lençóis frios da cama, empilhou alguns travesseiros e me deitou.
Ouvi o baque oco das mochilas batendo no chão. Fechei meus olhos, temendo o que veria se os mantivessem assim por muito tempo. Eu estava com medo de dormir, não queria sonhar com aquela estrada, com aqueles homens, com o sangue que ainda manchava minhas roupas e meu rosto, cujo gosto ainda permanecia em minha boca. Não queria ficar ali, vendo Jacob cuidar de mim como se eu fosse uma boneca frágil, vendo-o zelar por meu sono enquanto segurava minhas mãos sujas de sangue seco. Mas eu não conseguia me mover, apesar do torpor ter-se esvaído e deixado para trás aquelas imagens detestáveis, eu ainda não conseguia fazer meu corpo me obedecer. Até mesmo respirar era um esforço contínuo e árduo, e minhas últimas energias estavam sendo destinadas a me manter acordada. Jacob andava de um lado a outro do quarto, revirando gavetas e armários. Ele acendeu algumas velas e as distribuiu pelo cômodo, pela primeira vez desde o acidente eu pude ver seu rosto, e isso me ajudou a me manter desperta. Ele não percebeu meu olhar, seguindo-o para todos os lados, depositando nele minhas últimas forças – minhas últimas esperanças. Observei ele apanhar uma toalha e desaparecer por uma porta à esquerda, segundos depois o barulho de água quebrou o silêncio e se misturou com a chuva que martelava o vidro atrás das cortinas. Uma luz fraca transpassou a porta entreaberta e se juntou à luz amarelada e trêmula das velas espalhadas pelo quarto. Jacob parou no portal recém iluminado e me olhou, seu rosto estava envelhecido, um cansaço impertinente pesando em suas pálpebras. Eu o estava esgotando com meu jogo de gato e rato, caçando um fantasma, perseguindo uma intuição. Estava obrigando-o a permanecer longe da família, a perder os últimos anos de seu velho pai, estava obrigando-o a assistir meus espetáculos bizarros de alucinações e assassinatos. A sombra de culpa que pairava sobre mim ganhou toneladas a mais ao ver Jacob tão cansado e triste. Era como se seu pesar se unisse ao meu, como gotas de óleo sobre a água, impossível de se diluir. Ele forçou um sorriso nos lábios que não alcançou seus olhos exaustos, ficou ali me olhando por minutos intermináveis até que se aproximou da cama, arrastando os pés. Sentou-se a meu lado e pegou minhas mãos. Eu tive vontade de vomitar ao vê-lo se aproximar de mim e me tocar, tinha nojo de mim mesma por deixá-lo me tocar, me sentia indigna de seu toque. Ele parecia tão pesaroso por meu estado, que de início pensei que talvez ele também estivesse com nojo de mim. O calor inundou minha garganta e as lágrimas turvaram minha visão. Era um nó incapaz de ser dissolvido, uma tristeza e desesperança que transpunham o limite da razão. Nada pude fazer para conter as lágrimas, e como a grito na floresta, não percebi os gemidos e soluços escapando de minha garganta. Jacob me abraçou e a sensação de seus braços me envolvendo fez meu egoísmo falar mais alto que minha vergonha por deixá-lo me tocar.
- Shhhh… Está tudo bem Ness. – Jacob me balançava nos braços, como se estivesse ninando um bebê com medo do escuro. – Shhhh… Vai passar, vai passar.
Eu devia saber, devia ter imaginado que seria assim. Quando você cresce, as coisas a sua volta também aumentam de tamanho. Os sentimentos se ampliam, as dores são mais intensas, os problemas se tornam mais difíceis, tudo muda quando você muda, e nos últimos dias, eu mudei tão rápida e radicalmente que não era capaz de me reconhecer. Não sabia o que esperar do dia seguinte, estava inteira e completamente perdida dentro de mim mesma, agarrando-me à única coisa que me fazia sentir quem eu era. Jacob Black.
Os soluços diminuíram ao ponto de me permitir respirar, meu rosto estava molhado e meus olhos inchados e turvos. Jacob tirou meus tênis, desceu o zíper do meu casaco, enquanto trabalhava, murmurava planos para nós. Ele disse que queria conhecer Paris no inverno e visitar o tal do Louvre, disse que iríamos ao México tomar tequila e comer tortillas e ele desafiaria Emmet a pular de Bungee Jump sem a corda. Jacob sorria para mim, e era difícil resistir às idéias que ele plantava em minha mente. Uma realidade muito distante de mim.
Desabotou meu jeans rasgado e sujo e o deslizou por minhas pernas. Jogou-o com minhas meias na pilha de roupas sujas no chão. Eu o olhava, absorvendo cada palavra que saía de seus lábios, eu queria bebê-las, para que ficassem dentro de mim por mais tempo, e afogassem as vozes insistentes que habitavam as paredes do meu cérebro. Ele me pegou no colo e enquanto me conduzia ao banheiro me entreteu com uma história de como sua mãe tinha que obriga-lo a tomar banho, ele corria por La Push o dia todo com Embry e Quil e ficava muito sujo, era um garotinho magricela e descabelado que adorava carros. Tão diferente desse homem que, uma vez se apaixonou por uma jovem e a perdeu para um vampiro, tão distante do alfa quileute que desertou de sua tribo para seguir a filha mestiça da mesma jovem que ele amou – a vampira que ele agora despia e mergulhava numa banheira de água morna, afim de lavar o sangue ressecado de sua pele de mármore. Quantas voltas mais esse mundo poderia dar? Quantas vezes mais nós nos olharíamos no espelho e desconheceríamos a imagem que nos encara? Jacob mudou desde então, será que ele me amaria depois de todas a minhas mudanças – tão perturbadoramente violentas? Quem seria Renesmee Cullen depois dessa noite?
A água morna relaxou meus músculos rígidos, aos poucos meu corpo foi esquentando e eu agradeci Jacob mentalmente. Ele esfregava meus braços e minhas costas com uma bucha de banho, cujas cerdas ficaram avermelhadas com o sangue que se desprendia de minha pele. Eu estava tão absolutamente devastada, que nem mesmo senti vergonha de estar nua na frente de Jacob. A medida que meu corpo relaxava, a sonolância me atingia com mais intensidade.
Jacob sentou na beirada da banheira de louça branca e me ajudou a terminar o banho, sempre alimentando uma conversa agradável para preencher o silêncio constrangedor.
Suas mãos alisaram meu rosto, pressionando levemente minhas bochechas, meus olhos e meus lábios. A água me ajudou a pensar mais calmamente e a voz de Jacob mantinha minha mente ocupada. Em um passado não tão distante, ou em algum futuro incerto, em qualquer outro momento, qualquer outro ângulo que eu olhasse aquela situação, eu veria algo diferente daquilo. Mas agora, nesse momento, eu só conseguia ver a doçura e delicadesa com que Jacob cuidava de mim. Todos os outros ângulos estavam eclipsados por esse carinho quase paternal que emanava dele. E Deus, como eu o amava! E como eu me sentia menor que esse sentimento, como se meu corpo – meu coração – fosse pequeno demais para suportar as proporções de algo que parecia inflar a cada dia.
Ele me colocou na cama, vestindo um shorts e uma regata de algodão – que eu percebi que não eram minhas. Eu definitivamente estava me sentindo melhor, mais leve e mais controlada. Ele me enrolou em um edredon e sentou-se a meu lado, esperando meu cansaço me vencer. Eu queria dizer tantas coisas para ele…mas tinha medo de despertar daquela leve calmaria que se instalou em mim. Arrisquei uma pergunta inofensiva:
- Onde estamos? – Minha voz saiu rouca e fraca. Jacob sorriu ao me ver mais sóbrea.
- Não sei bem que cidade é essa, deve ser na divisa com o Canadá. Também não sei de quem é essa casa, apenas invadi a primeira casa vazia que encontrei. – Ele não pareceu envergonhado em dizer isso, parecia indiferente a qualquer fator externo àquele quarto.
Ele se levantou após alguns minutos de silêncio, beijou o alto de minha cabeça e sussurrou:
- Volto logo. Você vai me ouvir no chuveiro. Quer que eu fique até você dormir? – Acenei negativamente com a cabeça e forçei um leve sorriso para encorajá-lo. Quando ele saiu, fiquei examinando o cômodo a minha volta. A cama em que eu estava era grande, a cabeceira era adornada com formas que imitavam ramos de folhas e flores esculpidas na madeira maciça. Havia uma penteadeira no mesmo estilo em frente a cama, recostada na parede oposta. Um espelho grande e suntuoso fazia reflexo às velas na cabeceira da cama, e quadros, no mínimo cinco quadros de temas diversos espalhados pelas paredes do quarto. Era uma decoração incomum para os humanos modernos. A chuva havia se transformado numa garoa fina, e por um instante eu só ouvi o vento sacudindo as árvores do outro lado da rua. Jacob saiu do banheiro chacoalhando os cabelos, o que me fez lembrar de Rose, implicando com os modos “caninos” de Jacob. Ele vestia uma calsa branca de malha que ficou um pouco curta para seu tamanho, a luz das velas acentuou o tom avermelhado de sua pele e fez o branco se contrastar fortemente. Ele surpreendeu meu olhar e se aproximou.
- Hey, ainda acordada? – Eu não conseguia parar de olhá-lo, parecia uma besteira fechar os olhos para uma imagem tão bonita. – Eu só vou pegar alguns travesseiros e já estou saindo, você precisa descansar. – Ele sorriu e acariciou meu rosto. Eu definitivamente não queria que ele me deixasse “descansar” sozinha. Ele ia se afastando quando eu disse:
- Jake.
- Que foi? – Ele se virou e me encarou.
- Fique. Fique comigo essa noite.
Quando adormeci, envolta o mais próximo que eu podia nos braços dele – ao contrário do que eu contava como certo – não sonhei. Pesadelo algum foi capaz de penetrar os escudos que nossos corpos formaram juntos. Na verdade, foi a noite mais tranquila que já tive na vida.
Capítulo 14 – Ataque
Uma claridade perolada transpassava o tecido claro e fino das cortinas, iluminando todo o quarto. O farfalhar das árvores do outro lado da rua era o som predominando naquela manhã fria e silenciosa. Meus olhos lacrimejavam de sonolência e da súbita claridade. Os lençóis me envolviam até os ombros e se enroscavam por entre meus braços e pernas, tornando difícil a movimentação. Desvencilhei um braço do emaranhado de lençóis e tateei a cama e os travesseiros atrás de mim. Estavam vazios e frios. Rapidamente me virei, tentando encontrar provas de que aquela noite não tinha sido um sonho. O travesseiro estava amarrotado e tinha o exato cheiro delicioso dele, assim como o lençól que se encontrava aos pés da cama. Tudo indicava que não era apenas um sonho. Me sentei, ainda encarando o lugar vazio ao meu lado, afastei meus cabelos do rosto e esfreguei os olhos. Então ele apareceu, seus passos silenciosos não denunciaram sua presença até vê-lo abrir a porta e adentrar o quarto como se fosse uma aparição. Vestia a mesma calça de malha e uma regata igualmente branca, mas havia uma diferença absurta em seu rosto e em sua expressão. Estava feliz, radiante e sereno, como uma brisa quente de primavera. Mas uma surpresa maior me fez arregalar os olhos para ele.
- Jake, o que houve com o seu cabelo? – Ele sorriu e passou a mão pelos fios curtos e arrepiados, negros como a noite.
- Fiquei entediado. Você dormiu metade do dia. – Ele sorriu mais abertamente, do jeito que ele costumava fazer quando me via.
- Que horas são? – Perguntei, meio perplexa e envergonhada, incapaz de desviar os olhos de seu rosto tão tranquilo.
- Quatro da tarde. – Ele se sentou na cama e colocou uma mecha de cachos atráz de minha orelha. – Fiz seu café da manhã, quer que eu traga aqui? – Eu o olhei, e senti minha mão afagar seus cabelos, inabilmente tozados e arrepiados.
- Porquê você cortou o cabelo? – Perguntei, ignorando sua oferta. Ele pareceu exitar por um momento, desviou o olhar para a janela e disse:
- É só que… se vamos caçá-los, bem, é mais prático pra mim. – Ele me olhou de esguelha, avaliando minha reação. Eu estava absorta demais à textura de sua pele, e isso salvou minha expressão de calmaria e sonolência. Pensei naquilo por um momento. “Vamos caçá-los”. Então ele tinha desistido de me levar de volta para meus pais? O que o fez mudar de idéia? Me lembrei então da noite anterior. A primeira vez que ataquei e me alimentei de humanos. Parecia uma memória turva em minha mente, um passado negro e distante daquela calmaria. De alguma forma o desespero da noite passada tinha se esvaído de mim, e só o que consegui sentir em reação as palavras de Jacob, foi uma súbita e inexplicável coragem. Sentia-me mais forte, mais capaz de chegar até o fundo daquela trama.
Jacob se levantou e me puxou com ele, de modo que fiquei em pé no colchão macio. Ele abraçou minha cintura e me colocou no chão, sempre sorrindo com tranquilidade. Me perguntei como ele estava lidando com aquilo e quando iríamos falar a respeito. Descemos as escadas de mãos dadas e eu observei melhor a casa que invadimos. As paredes e o piso eram constituídos da mesma madeira escura e avermelhada. A tapeçaria era antiga, mas bem cuidada. Os móveis tinham o mesmo tom marrom de todo o resto. A lareira era grande e ocupava boa parte da sala, os porta retratos que ocupavam seu console eram pequenos e emolduravam o mesmo rosto feminino. A casa era, em suma, aconchegante e bem arrumada, embora tivesse uma aura de solidão e abandono que impregnavam as paredes empoeiradas.
Jacob encheu uma tigela de cereais e leite e colocou em minha frente, satisfeito com seu trabalho. Eu encarei a tigela com um interesse menor que zero. O cheiro não era atrativo, assim como o gosto. Jacob me observava sentado a minha frente, enquanto comia sua segunda tigela de cereais. Ele se desculpou por não ter nada mais para servir e tagarelou sobre o clima. Forcei algumas colheradas e depois abandonei a tigela, quase intacta. Eu sabia por que não conseguia querer cereais. Eu tinha provado algo muito mais saboroso na noite passada, e seria difícil me livrar do desejo e da queimação em minha garganta. Até lá, toda comida humana teria gosto de areia. Mas aquele prazer era proibido para mim, e eu teria de superá-lo logo.
- Jake. – A necessidade de saber o que ele estava pensando superou meu medo de falar, e quanto mais cedo eu encarasse aquilo, mais cedo eu poderia continuar minha busca. Ele me olhou atônito. – Como você está? – Não consegui encontrar uma pergunta mais direta, minha garganta se fechava ao menor indício daquele assunto. Aquela era, obviamente, a pergunta que ele tentava evitar. Me olhou com um misto de pesar e vergonha, mas eu não sabia o que aquilo significava.
- Ness eu… – Ele ponderou por um momento, era aflitivo vê-lo assim, sem saber o que dizer. Esperei, olhando-o com calma. – Eu sinto muito. – Disse ele por fim. De fato não era o que eu esperava ouvir, mas antes que eu tivesse chance de perguntar ele continuou:
- Sinto muito que você tenha essa culpa nos ombros agora, e te conhecendo como conheço, eu sei que não vai adiantar nada eu dizer que não foi sua culpa. – Ele parou, sustentando meu olhar. Bem, ele tinha razão. Eu não deixaria que mais ninguém tomasse a culpa pelo que fiz, mas eu também não deixaria isso me afetar ao ponto de me mudar. Eu seguiria em frente com essa sombra me seguindo aonde quer que eu fosse, ela sempre estaria lá, e eu teria que aprender a viver com aquilo. Com o tempo, talvez eu pudesse olhar para tráz com alguma sensatez e enxergar tudo aquilo de um ângulo diferente. Mas agora não, eu não podia me acovardar e me lamentar por mais tempo. Coisas mais vitais e urgentes estavam acontecendo em minha volta, e eu não podia simplesmente ignorá-las. Essa conseção particular durou apenas o tempo de um abraço quente e renovador, ao qual eu desejei com todas as forças poder durar por toda minha vida.
***
O choque percorreu meu corpo como uma lâmina – fria e cega – deixando um rastro de dormencia por onde passava. Encarei mais atentamente aquele reflexo, não podia ser meu. Aquele espelho devia estar me gozando. Jacob entrou no quarto – já inteiramente vestido para a viajem – e estacou atráz de mim, com a expressão constrangida de uma criança que acaba de presenciar sua mãe descobrir uma traquinagem. Estávamos nos preparando para partir, fui ao quarto em que passei a noite para mudar de roupa e… Meu olhos, Deus, meus olhos estavam vermelhos! Era a prova concreta e absoluta de minha vergonha. Certamente passaria despercebido para os olhos humanos – era uma mudança muito sutil para ser perceptível a seus olhos tão limitados – mas com certesa era visível para nossos olhos. Me perguntei por quê Jacob não me avizou sobre as mudanças – sim, havia algo mais de diferente em mim. Minha pele, sempre mais corada que a dos meus pais, tinha agora um aspecto mais pálido que contrastava com a íris marrom avermelhada de meus olhos. Era estranho por quê – ao todo – eu me sentia a mesma. Meu coração ainda batia forte e veloz no peito, meu sangue ainda corria em minhas veias, eu ainda sentia sono, fome – apesar da sede ter aumentado drasticamente – ainda me sentia…humana, se é que eu ainda poderia me classificar assim depois dos últimos acontecimentos. Me virei e encarei Jacob, ainda boquiaberta com o susto.
- Jake, meus olhos… – Eu apontei para meu rosto. Era ridículo, Jacob certamente percebera a mudança um segundo após o acidente. – O quê…o que eu me tornei? – Não consegui refrear a pergunta temerosa que latejava em minha mente. Ele me olhou tristemente e afagou meu rosto com as pontas dos dedos.
- Você continua sendo a mesma. Continua sendo minha Nessie, meu amor. – Senti que perdia um pouco o fio da meada. Um sentimento bem mais forte pulsou naquele momento. Ele me amaria se eu me tornasse um monstro? Bem, ele ainda parecia o mesmo comigo, e isso, era mais do que eu podia desejar.
Arrumamos tudo o que foi possível salvar do incidente nas mochilas e apagamos os rastros de nossa estadia naquela casa. Enquanto nos preparávamos para partir – deixando absolutamente tudo no devido lugar – concordamos em ligar para Billy. Jacob estava achando estranho o silêncio. Ninguém estava nos procurando – pelo menos ninguém que tenha quatro patas – e meus pais certamente já estariam revirando cada metro quadrado da península de Olimpic à essa hora, porém, a tranquilidade e o silêncio era alarmante. Voltamos para a floresta ao crepúsculo. O vento frio e úmido castigava as árvores, corremos para o norte, onde – segundo Jacob – nós chegaríamos as florestas geladas de Vancouver, onde, supostamente, Zafrina deveria estar. Uma hora se passou enquanto corríamos pela escuridão da floresta, então, decidimos parar e cumprir o combinado. O telefone de Billy chamou cinco vezes, e uma voz grave e familiar atendeu.
- Alô. – Disse Billy.
- Pai, onde eles estão? – Jacob ignorou a emoção em seus olhos, nós não tínhamos tempo para bater papo.
- Jake? Que diabos vocês estão fazendo? Onde estão? – Billy continha a mesma emoção na voz, parecia alarmado.
- Pai, eu não tenho muito tempo. Me diga onde eles estão. – Insistiu Jacob.
- Quem? Os Cullens? Eles não apareceram por aqui, mas Charlie disse que Bella ligou para ele. Parece que estão todos na Flórida. – Billy esperou pela resposta, mas nem eu nem Jacob sabíamos o que dizer – ou pensar.
- E o que eles foram fazer lá? – Perguntou Jacob depois de uma longa pausa.
- Jake, eu acho que a mãe da Bella… morreu. – Minha boca de abriu num espanto mudo. Levei as mãos à testa para impedir que meu crânio se partisse. Jacob me olhou, refletindo minha expressão de aturdimento. Mais um longo silêncio se seguiu. Estávamos – ambos – absorvendo a notícia.
- Jake? Ainda está aí? – Chamou a voz grave de Billy.
- Sim. É, Pai, escute. Eu e Nessie precisamos fazer uma coisa. Mais os sangue…os Cullens não podem saber. Ainda não. Nós estamos bem, então não precisa mandar o Sam vir atráz de nós nem nada disso. Eu ligo assim que puder, só não… – Ele bufou. – Não surte ok? Eu vou ficar bem, nós…ficaremos bem.
- Jake…
- Tchau, pai. – Jacob desligou o celular e me encarou, esperando que eu dissesse o que faríamos agora. Bem, eu não tinha resposta para isso. Se Billy estava certo, meus pais estavam na Flórida enterrando Renée. Um impulso cego começou a crescer dentro de mim. Eu precisava estar lá. Precisava consolar minha mãe, Charlie… Precisava me despedir de minha avó humana. Mas nada disso seria possível. Eu precisava aproveitar essa oportunidade para tentar ir mais a fundo naquela lama, e descobrir o que diabos estava acontecendo comigo. Droga, até onde eu iria nessa minha busca insensata? E se não houvesse nada? Como eu iria explicar – acima de tudo para mim mesma – todas as consequências que atraí para mim? Até alí só o que eu tinha conseguido era um monte de nada – claro, isso sem contar o fato de eu ter matado três humanos. Comecei a andar em circulos, tentando clarear as idéias. Jacob me observava silencioso, absorto em seus próprios pensamentos apavorados. Eu não podia decepcioná-lo de novo. As esperanças já iam se esvaindo de mim, sentia-me como um galão furado. A noite estava mais calma agora, o vento tinha diminuído a velocidade para um leve farfalhar, a floresta estava muda. Como o auditório de um espetáculo bizarro e sinistro. Eu podia sentir a tensão no ar, o vento trazendo uma brisa adocicada do sul, o cheiro me fez lembrar…
Estaquei. Aterrorisada e paralisada à meio passo. Eu conhecia aquele cheiro. Era cheiro de vampiro. Meus olhos varreram a escuridão à minha frente, deixei meus ouvidos buscarem sons e ruídos a quilômetros na noite. Todos os músculos de meu corpo se retesaram, esperando – anciando pelo ataque. Meu coração martelava tão ruidosamente que chegava a atrapalhar minha concentração. Olhei em direção a Jacob, estava imerso em seus pensamentos, distraído – uma presa perfeita. A brisa que trouxera aquele cheiro até mim ainda não o tinha alcançado.
- Jake. – Ele me olhou aturdido com meu tom de voz.
- O quê? – Ele respondeu com o mesmo nervosismo latente em suas cordas vocais.
- Temos companhia. – Ele inspirou o ar e no mesmo instante vi seu corpo inteiro tremer e se retesar – um reflexo mais intenso do meu próprio corpo. Ninguém falou, estávamos recolhendo as informações que precisávamos. Eram dois, o rastro vinha do sul e ia para o leste. E era fresco. Uma, duas horas talvez.
- Não reconheço o cheiro. Será que são só nômades? – Eu perguntei, enquanto seguíamos o rastro pela floresta. Mas eu sinceramente não acreditava que se tratava de uma coincidência. Não alí. As chances de esbarrarmos aleatóriamente com os de nossa espécie eram muito poucas.
- Não. Um deles não me é estranho. Mas preciso chegar mais perto pra ter certeza. – Jacob mantinha-se à frente, seguindo com habilidade o rastro entre as árvores. Ele parou na sombra de um tronco grosso o suficiente para esconder nós dois e me puxou pelos ombros para junto dele. Olhou por sobre meu ombro e sussurrou:
- Preciso me transformar, sou melhor rastreador como lobo. Fique perto de mim. – Os olhos negros e semicerrados de Jacob vasculhavam freneticamente os cantos escuros à nossa volta. Havia alguma coisa naquela expressão que me dizia que algo o incomodava profundamente – além, é claro, de termos compania.
- O que é Jake? – Perguntei, atônita. Ele me olhou aflito, ainda atento à todo e qualquer movimento à nossa volta e disse:
- Reconheço o cheiro Ness. A última vez que senti esse cheiro foi na clareira, quando os sanguessugas italianos vieram atráz de você. – Ele parou. Um tremor violento sacudiu seu tronco, e ele sibilou: - Eles pararam. Estão nos esperando alcançá-los. – Outro tremor. – Vou mudar.
Um ruído abafado cortou a noite e o lobo castanho avermelhado saiu das sombras. Ele me fez seguir sempre atráz dele. A cada passo o cheiro de intensificava pelo caminho. Os pêlos da lombar do Jacob-lobo estavam eriçados, mas havia uma frieza e ponderação que o deixavam ainda menos humano e mais lobo. Suas grandes patas tocavam o solo com uma delicadeza felina, as orelhas em pé, captando o menor dos ruídos. Eu o seguia de perto, meus sentidos em pleno funcionamento. Eu nunca estive numa caçada como esta, nunca tinha tido a chance de usar minhas habilidades, e agora eu podia sentir a excitação crescer em meus ossos, a adrenalina e a expectativa fluindo em minhas veias. O cheiro do inimigo entrando por minhas narinas e transformando meu corpo numa máquina de morte. A autopreservação misturando-se com o desejo de vingança.
Um grunhido ameaçador escapou da enorme garganta do lobo a minha frente. Jacob circundou as árvores, descrevendo um círculo pelo espaço entre a vegetação. Eles estavam alí, parados, os braços cruzados no peito, uma expressão de satisfação nos rostos pálidos.
- Ora ora ora. E não é que nos encontramos de novo monstrinha. – Félix sorriu para mim, e era como se não tivesse passado nenhum dia desde aquela manhã em Forks.
Capítulo 15 – Tigre x Lobo
- Jake, vá com calma. – Sussurrei, de modo que só ele escutasse. Todos os seus dentes – brancos e afiados como adagas – estavam à mostra, e um grunhido ameaçador irrompia de seu enorme peito castanho avermelhado. O lobo se abaixou – em posição de ataque – e todos os nervos e músculos de seu enorme corpo tremeram de expectativa. Os grandes olhos castanhos não exitavam nem um milímetro de seu alvo, qualquer movimento bastaria para o sangue jorrar. Eu estava num misto de receio e fúria, de expectativa e exitação. Todos os meus sentidos em alerta máximo. Mirei aqueles olhos vermelhos – que passavam de mim para o lobo ao meu lado a cada segundo. Félix manteve a expressão de escárnio, mas eu podia sentir a tensão da luta emanando dele. A outra – uma vampira alta de cabelos cor de mogno, extremamente linda, extremamente hostil – fixava meu rosto com uma curiosa superioridade, como se eu a tivesse insultado apenas por estar parada alí. Ela estava dois passos atrás de Félix, recostada num tronco de modo que seu rosto – lindo e arrogante – ficou parcialmente coberto pelas sombras. Eu podia vê-la, e sabia que aquele rosto não me era totalmente desconhecido. Mas aquela não era uma boa hora para pensar mais a respeito. Tentei ganhar mais tempo.
- Félix, não é? Eu me lembro de você. – Ele sorriu ainda mais desdenhosamente, mas manteve os olhos em Jacob, que o mirava com um ódio dilacerante.
- Você cresceu. A última vez que eu te ví você estava agarrada ao pescoço de sua mãe. E por falar nisso, como ela está? Fiquei tão desapontado ao vê-la imortal. Sabe, ela cheirava maravilhosamente bem. – Félix arriscou uma olhada para mim, verificando o quanto estava se sainda bem na tentativa de me provocar. Mantive minha expressão calma e gentil, o que me fez lembrar Carlisle e o quanto sua calma inabalável me irritava profundamente às vezes. Se eu morresse essa noite, eu morreria com classe.
- A última vez que ví você, que por um acaso também foi a primeira, você estava voltando para casa bem desapontado, mas certamente não mais que seu chefe. E por falar nisso, como vai Aro? – Devolvi, o mais inocentemente que pude. Félix sorriu, e se virou para sua companheira. Jacob se reposicionou em seu lugar, eu esperei, observando.
- Heidi, ela não é uma graça? Quase me lembra a Jane, bem, um pouco mais bem humorada. – Félix agora me analizava atentamente. A mulher – Heidi, eu finalmente tinha me lembrado dela – mantinha-se em sua posição superior e desdenhosa, seu nariz perfeito e anguloso se torcia numa expressão de nojo, e ela olhava Jacob com desdén.
- Diga-me garotinha…
- Nessie. – Cortei-o com asperesa. Ele me encarou surpreso e devolveu um sorriso forçadamente gentil.
- Nessie. Que seja. Diga-me, o que faz tão longe de casa, e em tal compania. – Ele gesticulou com a cabeça em direção a Jacob, sem desviar o olhar de mim.
- Diga-me você Félix. Você está ainda mais longe de casa do que eu. – Um silêncio cheio de significados inundou a noite. Todos se encaravam e estudavam, imersos em seus próprios planos – de ataque e de defesa. Félix riu, coçou suavemente o queixo e deu mais um passo para frente. Jacob rosnou e avançou também, sempre me deixando em suas costas. O balé da morte continuou, sutil e ofensivo. Ambas as partes atentas a menor distração de seu oponente. Lembrei de Jasper e de suas histórias de guerra, tantas vezes contadas longe dos olhares censuradores de meus pais. Como eu gostaria de ter sua habilidade em matar, mas meu tempo estava se esgotando, e Jasper estava longe demais no momento.
- Mais olha pra você hein. – Félix continuou, tentando penetrar minha sobriedade e paciência. – Você realmente cresceu depressa. Pensávamos que você fosse se tornar uma aberraçãozinha faminta por sangue, mas você até parece ser civilizada. Mas com certesa herdou a esquizitisse da família. Andando com raças inferiores e se alimentando de animais. – Félix estava perdendo a paciência, tentando de todas as maneiras nos tirar do sério. Suas apelações me deixaram ainda mais fria diante de seus escárnios. E Jacob continuava focado, ignorando – ou fingindo ignorar – seus insultos.
- Acho que não Félix. – Heidi falou, sobressautando todos. Sua voz melodiosa, clara e sem emoção, ressonou em meus ouvidos como um sino. Félix olhou-a surpreso e sorriu.
- Como é Heidi? – Perguntou ele confuso.
- A garota não parece gostar muito do cardápio da família. – Félix me encarou. – Olhe para ela Félix, os olhos. – Heidi perscrutava meu rosto avidamente. Ela deu um passo para frente, emergindo das sombras seu rosto deslumbrantemente arrogante.
- Ora ora, e não é que temos uma rebelde aqui Heidi. – Félix riu, surpreso por minha condição. Uma pontada de raiva pinicou em minha garganta, mas eu mantive minha civilidade. Pensei nas opções que eu tinha. A luta era iminente, não havia como remediar, e eu precisava sobreviver, manter Jacob a salvo, levá-lo de volta pra seu pai quando tudo isso terminasse – se é que eu chegaria a ver o fim. Tentei afastar o pessimismo de minha mente. O que eu poderia fazer? Tentar eliminar uma vampira mais forte e mais velha que eu, enquanto Jacob cuidava do outro? Sim, era nossa única chance, tería que ser assim. Observei melhor minha oponente. Ela não parecia ser uma guerreira, parecia ser aquele tipo de distração que um contigente ofensivo utiliza, uma isca – irresistivelmente atraente. Se eu estivesse certa, nós duas estaríamos no mesmo patamar, por quê eu era igualmente inepta à luta. Bem, eu teria que aprender na prática, e descobrir um ponto fraco nela, por onde eu poderia vencê-la. O minuto de silêncio observador que se passou tornou a encher a atmosfera de tensão. Eu precisava ganhar mais tempo.
- Não se engane Félix. Eu sou uma Cullen, você já conhece o erro de nos subestimar. – Sorri para ele, deixando em meu rosto uma expressão angelical. Heidi riu, e isso novamente sobressaltou a todos. Seu escárnio era ainda mais arrogante que o de Félix.
- Você é igualsinha a sua mãe. Pensa que pode se meter com coisas que você nem mesmo entende. – Havia uma pontada de raiva contida em sua voz, e sua expressão confirmava isso. Obviamente Heidi sentia um despeito colérico por nossa família. – O que você pensa que é afinal? Não é uma de nós, mas também não é humana. Você é uma aberração garota, é por isso que é a última de sua espécia nojenta. – Heidi parou, o ódio borbulhando em suas palavras, os olhos carmim brilhando desvairadamente.
- Cuidado Heidi. – Disse Félix baixinho, lançando-lhe um olhar de aviso. O quê ela queria dizer com a última de minha espécie? Não havia pelo menos mais três iguais a mim? Aqueles da América do sul que Alice trouxe para testemunhar a meu favor? O que houve com eles? Jacob parecia tão confuso quanto eu. Dei um passo para frente, de modo que fiquei ao lado da cabeça de Jacob. Félix fixou um olhar à Jacob, que mantinha-se à um salto de distância da garganta dos vampiros. Observei-o. Félix era grande, mas não parecia ser muito inteligente. Mesmo assim tinha algo nele que impressionava. Seus movimentos eram leves e brutos ao mesmo tempo, não tinha a sagacidade letal de Jacob, mas uma sutileza mais selvagem, como um tigre, que mesmo sendo gracioso em seus movimentos, ainda é rústico e hostil por natureza. Os dois se encaravam com ferocidade, deixando o espaço entre eles se tornar uma onda de choque. O silêncio novamente encheu a cena, era como nos filmes de terror – a cena de expectativa antes do ataque.
- Não Heidi. – Senti minha voz se expandir para fora de mim, e havia uma maturidade nela que não reconheci de imadiato. Era como se outra Renesmee estivesse falando por mim, meu lado mais maduro e hostil. – Eu entendo perfeitamente o que está acontecendo aqui. – Félix e Heidi me encararam com surpresa e curiosidade. – Aro mandou vocês atrás de nós não é? Mas isso não é uma missão de sequestro, vocês estão só vigiando. Digam-me, vocês já sabiam que eu não estava em casa, ou só descobriram agora? – As palavras saíam de minha boca com uma segurança e certesa que pareciam não fazer parte de mim. Era como se as coisas estivessem se encaixando em minha mente, esperando a hora de virem à tona. – Eu só me pergunto por quê Aro mandou vocês? Afinal, o rastreador real não costumava ser Demetri? Ele está muito ocupado? Não pode vir por quê recebeu ordens mais importantes? – Os rostos dos vampiros se contorciam a cada palavra, como se estas os atingissem como socos. Félix deixou escorregar todo o sarcasmo de suas feições, e Heidi parecia a ponto de estraçalhar minha garganta.
- Eu realmente não entendo por quê ele os quer tanto. Não são nada, não significam nada. – Heidi sibilava, completamente encolerizada.
- Heidi, contenha-se. – Félix alertou-a.
- Não importa Félix, eles vão morrer mesmo. E mortos não falam não é? – Heidi deu um passo em minha direção, e foi o que bastou para Jacob interferir com um rosnado tão bestial, que fez as árvores a nossa volta tremerem. Félix segurou seu braço, impedindo-a de prosseguir. Afastaram-se aguns passos para trás, observando os olhos letais de Jacob, postos sobre eles. Heidi contorcia-se nos braços de Félix, seus punhos e maxicilar trincados de ódio. Prestei o máximo de atenção nas palavras dela, algo me dizia que ela cometeria o erro que eu precisava, e eu não o desperdiçaria. Estava descontrolada, perdera o foco e estava atrapalhando a concentração de Félix. Eu estava certa, Heidi não era uma guerreira.
- É melhor controlar sua parceira Félix, não sei por quanto tempo posso manter os dentes de Jake longe do pescoço dela. – Eu provoquei, sabendo que quanto mais descontrolada ela estivesse, mais informações valiosas escapariam por sua boca. Deu certo, Heidi contorceu-se mais furiosamente nos braços de Félix, seus dentes estavam expostos e um rosnado gutural irrompia de sua garganta. Ela me mirava como se não houvesse nada além de nós duas. Pensei um minuto sobre isso. Não era fácil tirar vampiros do sério, nossa espécie era mais fria e calculista do que os voláteis lobisomens, e para um primeiro encontro, Heidi se mostrava muito recentida comigo, o que confirmava uma de minhas teorias. Aro ainda alimentava algum tipo de interesse em minha família, um interesse suficientemente grande para deixar Heidi com tamanho ciúmes. Pelo jeito o assunto principal em Volterra ainda era nossa pequena rebelião de sete anos atrás. Eu continuei meu jogo, mantendo o máximo de cautela e descrição ao lançar minhas provocações à Heidi, um passo em falso e Félix descobriria minhas intenções. Ele estava fazendo um péssimo trabalho em controlá-la, apesar de conseguir contê-la fisicamente, Félix não conseguia fazer Heidi parar de falar – ou rosnar.
- Solte-me Félix, deixe-me mostrar a ela o tratamento real que sua espécie nojenta têm recebido de nós. – Sibilou Heidi, um sorriso maligno brincando em seus lábios. Se ela estava falando sério, significava que Aro tinha colocado a guarda Volturi atrás dos mestiços – assim como eu. Significava que ele os estava caçando? Por quê? O que ele obteria com isso? Percebi um leve tremor no olhar de Jacob, ele estava na mesma linha de pensamento que eu.
- Ele a quer viva. – Rosnou Félix, e nessa hora eu fiz mais uma conexão em minha mente. Aro estava nos vigiando, assim como nós estávamos de olho em Volterra, mas seja lá o que ele estava pretendendo, eu tinha interferido saindo de casa. Porquê Aro nos queria juntos – todos nós – ele queria nos manter perto de suas vistas. Jacob certamente tinha feito a mesma conexão e ele não estava lidando com ela tão calmamente quanto eu. O modo como ele se posicionou me alertou de que a conversa tinha acabado. Félix percebeu na mesma hora que eu, a tempo de lançar Heidi para o lado e avançar direto para Jacob. Apesar do medo e do nervosismo em meu estômago, eu sabia que essa era a hora em que eu não poderia exitar – ou me preocupar com Jacob. Heidi bateu numa árvore, fazendo-a trincar no meio, ela lançou um olhar surpreso para Félix, que agora era apenas um borrão na escuridão da floresta, com Jacob em seus calcanhares. Eu olhei para ela a tempo de ver a chama de ódio dançar por tráz de suas pupilas carmim. Ela avançou. Heidi era muito impulsiva, deixava-se ler e interpretar muito facilmente. Era algo sutil, mas que eu definitivamente contava a meu favor. Eu antecipei seu ataque apenas por sua expressão, e me senti orgulhosa por ter sido capaz de antecipá-la e desviar tão rapidamente de seu ataque. Manti a calma, mesmo parecendo ser impossível de conter o turbilhão de adrenalina que jorrava em meu sanque. Félix e Jacob estavam à trinta metros atráz de nós, sob a sombras das árvores, e por mais que eu quisesse loucamente saber quem estava com a vantagem, eu não podia me dar ao luxo de desviar minha atenção de Heidi. Ela era inabilidosa em luta. Fazia muito barulho mas também bastante estrago. Era como tentar capturar uma onça brava. Ela avançava e avançava, esmurrava mais do que pensava, mais eu tinha que admitir que ela era enérgica e desviar e bloquear todas as suas investidas requeria muita força e rapidez de minha parte. Ela estava tentando me cansar, mas seus métodos eram falhos, e em resumo – para minha primeira luta – eu não estava me saindo muito mal. Era tudo muito rápido, muito intenso, uma luta como essa se parecia com um jogo, um movimento errado é o bastante, você mata ou você morre. Toda minha mente – todo meu corpo – estava centrado nesse pensamento, a ofensiva era minha, eu estava começando a entender o que eu deveria fazer e o que era inútil contra minha adversária. Consegui encuralar Heidi contra dois abetos, eu via uma chance de terminar aquilo e poder ajudar Jacob…
Foi como se o nome dele surgisse em meus pensamentos na mesma hora em que eu o ouvi ser arremessado contra as árvores, um uivo de dor irrompeu de seu peito ensaguentado e eu não fui capaz de me manter mais no controle. Eu corri, corri aqueles trinta metros que nos separavam com um desespero agonizante, não me importei em baixar a guarda para minha oponente, simplesmente me virei e corri em socorro à ele. Félix o segurava pela garganta e um segundo a mais teria bastado, um segundo e eu o teria perdido. Joguei meu corpo contra Félix, impelindo o máximo de força que eu consegui reunir, mas meu peso leve só o fez cambalear para tráz. Mas foi o bastante, bem, pelo menos o bastante para Jacob se desvencilhar de seu aperto de aço. Félix me segurou pela cintura, me erguendo do chão e logo eu senti seu braço apertar minha garganta. Ele ia me sufocar na frente de Jacob. O lobo tremia ao tentar se colocar em pé, eu percebi a pata dianteira quebrada e vários cortes sangrentos manchando seu pêlo. Heidi apareceu entre as árvores e sorriu diante de nossa morte iminente. Félix não iria respeitar as ordens de Aro, ele não nos deixaria vivos, secretamente desejei que Aro os punissem com algo muito doloroso. Eu calculei que tinha mais um minuto de ar, um minuto para olhar nos olhos escuros de Jacob e me despedir, um minuto para me despedir mentalmente de meus pais, de minha família. Eu esperava que esse minuto desse a Jacob a chance de se recuperar o bastante para lutar e se salvar, mas ele estava muito machucado e ainda seriam dois contra um. Deus, ele morreria por minha causa, eu não seria capaz de salvá-lo. A raiva queimou em mim, e era quase como se eu pudesse ver meu sangue esquentando, e isso pareceu trazer um último sopro de resistencia a mim, clareou minha mente por um momento – o último. Eu morreria com aquele ódio maciço por não ser capaz de salvar as pessoas que eu amo, salvá-lo tinha sido minha última falha. Eu queria tanto fazê-los pagar, imaginei Volterra em chamas, envolta numa fumaça tóxica e densa, a fumaça de seus restos sendo encinerados. A idéia era tão vívida, tão boa, que me fez sorrir, eu me senti leve. Demorou um minuto para que meu corpo percebesse que estava no chão, a mão de Félix não mais apertava meu pescoço, eu pisquei e olhei em volta. Félix e Heidi – parados um ao lado do outro me encaravam com os olhos arregalados. Ele poderiam muito bem se passar por estátuas se a respiração acelerada de ambos não os denunciassem. Então eu entendi, e era como se meu cérebro já soubesse de tudo antes de mim, como se as coisas estivessem lá o tempo todo, esperando que eu abrisse os olhos para elas. E como tudo na vida imortal, levava apenas um segundo entre pensar e fazer algo. Então eu nem pensei, pulei diretamente para a parte em que eu tentava a última coisa para nos salvar. Volterra, chamas, fogo por toda parte, Félix, Heidi, todos… Era difícil saber quem estava mais surpreso, eu ou eles, mas foi com uma surpresa esperançosa que observei os dois vampiros a minha frente perderem o foco de seus olhos, eles encaravam a floresta a nossa volta com desespero e espanto – dificilmente eu saberia dizer qual dos dois. Então eu gritei:
- Jake, agora. – Eu o ouvi se levantar e correr, dessa vez mais facilmente que em sua primeira tentativa, então eu mesmo corri, e era como se minha mente e meu corpo tivessem se separado, por que uma estava em Volterra, em meio ao fogo e a distruição de meus inimigos, e o outro estava correndo diretamente para o corpo desorientado de Heidi. Os segundos que se passaram a seguir pareceram durar dez anos, e mesmo assim, quando finalmente acabou, eu mesma não acreditava que eles realmente tivessem acontecido. Nós tinhamos conseguido, Félix e Heidi não voltariam daquela missão.
Capítulo 16 – Sangue
Não havia muito o que juntar para queimar – pelo menos não de Félix. Jacob o tinha rasgado em partes tão pequenas, que encontrar todas me tomou um tempo extra. Heidi estava mais composta, mas ambos estavam igualmente mortos. Era difícil de acreditar, mesmo com a pira ardendo e a fumaça densa e adoçicada enchendo o ar a minha volta. Jacob tinha ferimentos de várias extensões, entre ossos e costelas quebradas, desde arranhões a cortes profundos. Eu tinha alguns também, mas em geral, Heidi tinha conseguido muito pouco comparado à Félix. Deixei Jacob – na forma humana – descansando perto das árvores e terminei o serviço. Enquanto os via queimando eu pensei sobre o que eu tinha feito, como consegui expandir meus próprios pensamentos para distraí-los e atacá-los. Meus poderes numa extensão que eu até então não sabia que era possível, lembrei de Carlisle falando sobre como nossos poderes podem se ampliar com o tempo e a maturidade, mas algo no fundo de minha mente suspeitava que algo além do tempo havia contribuído para aquele desenvolvimento repentino. De novo, nada podia-se alegar concretamente a meu respeito, por que minha existência era rara – talvez agora, única. Eu teria muito o que pensar sobre essa noite, parecia impossível que tanta coisa pudesse ocorrer num espaço de tempo tão curto. Deixei a pira queimando e fui ver Jacob, nós precisávamos partir o quanto antes, no caso de alguém vir atrás daqueles dois. Jacob estava com os olhos fechados, tremia e suava, estava pálido e com dor, Deus, como eu queria que Carlisle estivesse aqui.
- Jake, Jake. – Chamei-o, minha voz embargada. – Fale para mim onde dói. – Parecia algo estúpido para se dizer, mas eu nem sabia por onde começar a ajudá-lo. Eu não poderia levá-lo a um hospital, eles no mínimo o manteriam em laboratório para estudá-lo. Ele olhou pra mim, e havia tanta dor naquele olhar que fez meu coração doer também. Foi então que ele pegou minha mão, vacilante.
- Ness, eu quero que você vá para La Push. Fique lá até seus pais voltarem. É seguro lá, Sam vai te ajudar, ele vai te manter segura. – Eu começei a protestar, eu jamais o deixaria para trás, por quê ele estava falando essas coisas para mim?
- Jake, esqueça. Eu não vou te deixar aqui. – Eu me aproximei mais dele, afaguei seu rosto e foi quando eu vi. Uma ferida em forma de meia lua sangrava em seu pescoço. Deus do céu, Félix o havia mordido. A compreensão me atingiu ao mesmo tempo que o pânico. O veneno o estava matando.
- Jake – Sussurrei, minha voz incapaz de sair audível. Um frio intenso desceu por meu corpo. Eu iria perdê-lo.
- Ness, não tem mais jeito. Eu não vou me curar dessa vez. – Ele falou, calmo e gentil. Lágrimas começaram a escorrer por meu rosto e o desespero tomou conta de mim. Eu tinha que fazer alguma coisa, eu precisava. Se eu o deixasse morrer, seria como cometer suicídio. Não havia como continuar sem ele. Mas o quê? O quê eu poderia fazer?
Uma tímida luz começou a se acender em minha cabeça, eu nem sabia se daria certo, se funcionaria, mas eu precisava tentar, eu faria qualquer coisa para salvá-lo. Me inclinei sobre ele, beijei sua testa, acariciei seu rosto molhado. Ele me olhava tranquilamente, seu coração martelando no peito, como se estivesse se recusando a desistir, a parar de bater.
- Você confia em mim? – Sussurrei em seu ouvido. Ele me olhou por um longo momento e disse:
- Com a minha própria vida. – Respirei fundo, tentando encontrar a força dentro de mim. Quando toda sua vida depende de algo, não há como remediar. Não há espaço para o medo.
- Eu… Eu te amo. – Eu soluçei, e afundei meus dentes na ferida.
Eu suguei o sangue sujo, sentindo o veneno sair de seu sistema e entrar em mim. O mais incrível era que nem o gosto amargo do veneno era capaz de inibir o gosto de seu sangue. Era forte, absurdamente quente. Era maravilhoso. Eu podia sentir seu coração batendo forte, tão forte que eu nem mesmo podia ouvir o meu próprio. Eram um só. O mesmo, o único. Eu sentia meu corpo arder, era como se minhas veias estivessem se iluminando. O sabor se intensificou, minhas lágrimas se misturaram com o sangue, quase nenhum traço do veneno restava em seu corpo. E era dez vezes melhor. Puro, forte, inebriante. Como minha família podia achar que ele cheirava mal? Seu coração martelava em meus ouvidos, em minhas mãos, mas era estranho, por quê era como se ele estivesse se afastando. Mais longe, mais longe…
Com um súbito terror eu me lancei para tráz, caindo de costas na relva fria. Como era difícil parar, com aquele sabor ainda impregnado em minha língua eu senti que meu corpo pedia mais, o cheiro dele alí ao meu lado… Mas eu não podia, eu não podia matá-lo. Nada seria maior ou mais forte que o meu amor por ele, nem mesmo minha sede. Nem mesmo o apelo de seu sangue, ainda quente e poderoso, correndo por minhas veias. Eu me levantei, clareando minha mente. Ele estava fraco, mas definitivamente ainda estava vivo. Com sorte, logo seu metabolismo acelerado seria capaz de curar todos os ferimentos, sem o veneno para impedí-lo de se curar ele estaria bom em algumas horas. Pelo menos era nisso que eu queria acreditar.
***
Eu o observei dormir enquanto a escuridão empalidecia e o céu se tornava um cinza frio e homogêneo. O fogo há muito já tinha se apagado e a única compania que eu tive durante aquela noite impossivelmente longa, foram as cinzas. Fiquei com ele em meus braços e zelei por seu sono, sempre alerta para todo e qualquer ruído na floresta. Tantas coisas passaram por minha cabeça… Tantas mudanças. Minha vida mudou tão repentinamente, tão bruscamente, o certo e o errado não estavam mais nos seus lugares de costume. Minha mente mudou, meu corpo mudou, minha alma e tudo mais que me fazia ser Renesmee Cullen à uma semana atrás, já não eram mais os mesmos. Em uma semana eu tinha feito todas as coisas que eu prometi a mim mesma jamais fazer. Eu menti para meus pais, feri Jacob, provei do sangue humano, matei minha própria espécie, e mesmo com todas essas promessas quebradas em minha consciência, eu não conseguia deixar de me sentir aliviada agora, com ele dormindo profundamente em meus braços. Aquilo parecia tão certo, tão natural, que não havia qualquer outra conceção que eu pudesse fazer. Haveria redenção se houvesse ele, e então, eu poderia dar um jeito. Isso me atormentou, por quê eu já não sabia o que esperar de mim, não sabia se os últimos dias fizeram de mim algum tipo de monstro, se eu estava me escondendo atrás de desculpas incoerentes. Os fins justificando os meios. Eu não queria isso, mas também não queria ser fraca. A Renesmee que eu costumava ser não era forte o bastante para enfrentar o que enfrentei nos últimos dias, não teria sido capaz de salvar Jacob, não teria sido capaz de abandonar a família – mesmo sob o pretexto de protegê-los. O amor nos obriga a fazer escolhas difíceis, e na maioria delas você perde algo, alguma parte extremamente importante de você. E só ele – só o amor – te dá as forças que você necessita para continuar, mesmo depois de ter que deixar uma parte sua para trás.
A luz perolada penetrou as árvores e o tímido canto dos pássaros me tirou de meus pensamentos. Olhei Jacob – ainda dormindo profundamente em meu colo. As cicatrizes em seu corpo já estavam fechadas e os ossos quebrados – que eu tive que colocar no lugar – provavelmente já estavam praticamente curados. Se eu não tivesse sugado o veneno para fora de seu sistema, ele não teria sido capaz de se curar, morreria de hemorragia em poucos minutos. Félix conseguiu por os dentes nele antes de ter sua cabeça arrancada do corpo, se Jacob não tivesse agido rápido, provavelmente nem minha distração teria sido capaz de nos ajudar.
Tentei me desvencilhar do corpo adormecido de Jacob o mais cautelosamente possível. Eu precisava resolver algumas coisas. Andei em circulos, tentando clarear minha mente. Minhas suspeitas foram confirmadas pela boca descontrolada de Heidi – Aro estava em movimento de novo, planejando Deus sabe o quê. Eu precisava avizar minha família, se Aro mandasse mais alguém atráz de nós, eles precisavam estar atentos. Havia também a suposta morte de Renée, eu nem sabia se isso era verdade, mas já sentia a dor da perda se alojar em mim, eu não tinha tempo nem mesmo para ficar de luto. Se eu piscasse, eu corria o risco de perder mais alguém. Tentei empurrar essa nova dor para um compartimento escondido, eu iria lidar com isso mais tarde. Lutar primeiro, lamentar depois. Essa era a minha nova regra.
E por fim, a mais perturbadora das questões em minha mente. Como Aro estava conseguindo burlar as visões de Alice? Como ele estava enviando gente para nos vigiar sem que Alice visse ele tomando essa decisão? E como diabos eles passaram despercebido por todos nós – por meu pai? Quanto mais eu pensava em todas essas perguntas sem resposta, mais cansada eu me sentia, e mais perdida eu ficava em mim mesma. Haviam tantas coisas – tantos fatores – que eu precisava considerar. Por que eu tenho tido essas visões? Por quê Forks? Por quê Vancouver? Por quê Zafrina?
Eu estava tão soterrada por essa onda de perguntas que não percebi Jacob despertando e se aproximando de mim. Seus braços me alcançaram apenas um segundo antes que seu cheiro. Minha garganta ardeu, e eu tive que me lembrar que aquele sabor era proibido para mim.
- Hey, como se sente? – Eu perguntei, tentando disfarçar a dor da queimação. Ele girou meu corpo para ficar de frente para ele. Eu suspirei. Ele estava bem.
- Vivo, graças a você. – Ele respondeu. Havia um tom emocionado naquelas palavras, quase como se ele tivesse um nó na garganta. Eu pude ver também várias perguntas nadando na escuridão de seus olhos, talvez fossem as mesmas que as minhas. Era estranho, parecia que nossas mentes estavam sempre em sintonia, era quase como olhar para um espelho. A expressão dele talvez fosse uma boa réplica da minha, pelo menos era isso que seus olhos diziam. Ele entendia, eu também não queria trazer tudo aquilo à tona naquele momento, todas as nossas perguntas mudas, toda exasperação. Éramos jovens, tínhamos vencido nossos inimigos, tínhamos sobrevivido, mas ao contrário do que os jovens geralmente costumam fazer, nós não comentamos a luta épica, nem repassamos os detalhes, golpe a golpe. Estávamos vivos e juntos, e era mais como duas pessoas que se amam muito e temem a perda do outro com a mesma intensidade dolorida. Haviam tantas outras batalhas, tantos outros riscos que poderiam ser fatais para um de nós dois. Por agora, bastava abraçá-lo, bastava ficar olhando para ele, absorvendo o máximo de detalhes de seu rosto. As palavras pouco ou nada podiam expressar agora. Nem sei quanto tempo se passou, poderiam ter sido horas, dias, semanas, ele sempre anulava todas as coisas à minha volta.
- Eles precisam saber. – Sussurrou ele em meu cabelo. Sim, eles precisavam. Me obriguei a soltá-lo, o mundo real ainda estava alí, no meu encalço.
Parecia impossível que meu celular tivesse sobrevivido à luta, mas lá estava ele – no bolso de trás de meu jeans inteiramente arruinado. O visor estava quebrado, faltavam algumas partes, mas ele ainda era capaz de fazer ligações, e no momento, uma ligação era tudo que eu precisava.
- O que eu vou dizer à eles Jake? – Sim, eu estava com medo. Não por mim, mas por eles. Se houvesse alguma forma de mantê-los longe disso tudo, eu faria. Mas todas as minhas opções se resumiam basicamente em tentar ficar viva até o dia seguinte, e se Aro tinha uma carta na manga – que impossibilitava Alice e meu pai de vê-lo – bem, eles definitivamente precisavam saber.
- Diga a verdade Ness. Eles talvez fiquem muito bravos com você, mas sou eu quem eles vão querer matar. – Jacob sorriu me encorajando, e apesar de toda minha apreensão, não consegui evitar um sorriso cansado de aparecer em meu rosto.
- Vou deixar no chão qualquer um deles que tentar. – Eu brinquei, embora eu não fosse realmente capaz de deter todos eles juntos. Jacob riu, e o som mandou uma onda de calor por meu corpo. Era o som que eu mais gostava no mundo.
- Você está andando muito comigo Ness. Esse é o tipo de coisa que eu falaria. – Ele balançou a cabeça e começou a andar em direção à mochila. Observei-o procurar uma camisa e o último par de tênis que ele ainda não tinha arruinado. Peguei meu aparelho de celular, e, bem, ele não tinha muito tempo de vida. Disquei o número que julguei o mais seguro, três chamadas mais tarde a voz suave e delicada de Alice atendeu:
- Meu Deus Ness, onde você está? – Alice falava baixo e rapidamente. Ela soava nervosa, mas de qualquer forma, eu não esperava outra reação.
- Fique calma Alice, eu estou bem. Onde está minha mãe e meu pai? – Tentei parecer o mais calma possível, na esperança de passar credibilidade.
- Você ainda não sabe? Deixamos um recado com Billy, estamos em Jacksonville. – Então era verdade. Talvez uma marreta invisível tivesse caído em minha cabeça nesse exato momento.
- Alice, não… Alice vocês foram… – As palavras não saíam, nenhuma delas parecia servir.
- Sim Ness. Nós viemos para o enterro de Renée. – Um silêncio gelado pairou na linha por um instante. Deus, minha mãe devia estar acabada, e eu nem estava lá para confortá-la.
- C-Como? – Obriguei a palavra a sair. Alice explicou que Renée tinha descoberto à dois anos que estava com câncer e que fez Phil jurar que não contaria á ninguém. A doença venceu minha doce e impulsiva avó. Eu deveria saber lidar com isso, afinal, nós éramos imortais, mas o resto do mundo – o resto de nossa família humana – eram perecíveis, estavam suscetíveis à inúmeros fatores que poderiam acabar com suas vidas em um piscar de olhos. Essa era a poesia de ser mortal. Cada minuto pode ser o último.
- Alice, eu preciso falar com meu pai. Onde ele está? – Consegui dizer após alguns instantes lutando com minha própria garganta.
- Está com Bella, ela ainda está muito abalada. O ponto é, onde você está? Se sua mãe souber que você e Jacob não estão em La Push… Até agora eu consegui fazer Edward respeitar o luto dela, mas você sabe como seu pai é Ness, ele não gosta de esconder nada de Bella.– Alice retrucou.
- Meu pai já sabe? – Eu não sei porquê aquilo me assustou, é claro que ele já sabia. Ele sabia de tudo.
- Sabe. – Disse Alice. – Eu liguei para o Billy para avizar você, já que o Charlie não conseguiu te encontrar, e Billy me disse que vocês estavam fora à dois dias. Ele queria mandar Sam atrás de vocês e Ness, eu fiquei assustada. – Ela parou, a tensão na voz dela me alarmou.
- O quê foi Alice? – Perguntei.
- Eu não sei. São minhas visões. Ness, eu não consigo ver nada. Nem mesmo eu ou Jasper, está tudo borrado e vocês nem estão por perto no momento, quero dizer, era pra tudo estar mais nítido que o normal. – Senti um calafrio descer por minha espinha. Eu estava fazendo a mesma pergunta a mim mesma – bem, quase a mesma. Como Aro estava driblando as visões de Alice? Seria essa outra conexão? Era impossível que Alice estivesse perdendo seus poderes, também era impossível que não houvesse nenhuma conexão em todos os fatos recentes. Meus sonhos e visões, Heidi e Félix nos vigiando, Alice no escuro… Algo estava acontecendo, e eu sabia disso desde a primeira noite que sonhei com Aro.
Respirei fundo, tentando aparentar a mim mesma mais firmesa e coragem, e falei:
- Alice, nós temos sérios problemas.
Capítulo 17 – A Última Noite
Eu nunca imaginei que a fortuna e as propriedades dos Cullen fossem tão abrangentes. Eu sabia dos carros caros, dos imóveis espalhados pelo mundo – droga, eu nem sequer tinha cogitado a ilha de Esme até perguntar para meus pais onde eles passaram a lua de mel. Ok, talvez eu soubesse de toda aquela grana, mas nunca tinha de fato me importado muito com isso, ou parado para pensar a respeito por cinco minutos. O dinheiro facilitava as coisas – e muito. Minha família estava cruzando o país num jatinho particular no momento e eu e Jake recebemos instruções para aguardá-los em uma das casas de Rosalie e Emmet nos arredores de Surrey. Partimos assim que desliguei o telefone, deixando toda minha família em estado de total tensão. Mas o que eu poderia fazer? Não podia deixá-los no escuro quando havia uma conspiração medonha se formando nas sombras. Já era hora de parar de fugir. Parte de mim temia o reencontro, afinal, como eu iria explicar minha aparência? Eu tinha pulado a parte da história em que eu matava três humanos e secava suas veias, assim como a parte em que eu pirava e começava a expandir meus pensamentos para a mente dos outros sem tocá-los – ou a parte em que usei isso para matar dois vampiros mais velhos e mais experiêntes do que eu. É, eu não tinha muitos pontos positivos ao meu lado, e não me sentia muito otimista com a perspectiva de ter de explicar tudo isso à eles. Eu estava morrendo de medo de decepcioná-los, como eu iria encarar os olhos pacíficos e acolhedores de Carlisle e dizer a ele que em um lapso de controle eu simplesmente tinha arruinado toda crença e luta de nossa família? Como eu poderia não parecer um monstro quando olhasse para meus pais – especialmente meu pai, que lutou contra sua sede tão dolorosamente para proteger minha mãe?
As doze horas do prazo de viajem que Alice me deu estavam se esgotando mais rápido do que eu gostaria. As paredes aveludadas da casa de Rosalie estava me deixando ainda mais apreensiva. Aquela casa era de longe, a casa que mais se encaixava no estereótipo vampírico de nossa família. Esme preferia usualmente tons mais claros e leves para suas decorações, assim como a modernidade sofisticada. Mas Rose, bem, ela meio que montou uma cripta. Os tons vermelhos, cobres e pretos cobriam do chão ao teto com tapetes, cortinas, e móveis antigos. As paredes eram cobertas com veludo vinho e por todo lugar estavam espalhados castiçais, pratarias antigas e obras de artes renascentistas. A sala era de longe o cômodo mais amplo da casa – que eu não me interessei em explorar mais a fundo com medo de encontrar algum caixão. Me perguntei se Rose usava a casa quando estava com humor negro ou algo do tipo.
- A loira pscicopata é realmente…pscicopata. – A voz de Jacob me arrancou de meus devaneios. Ele andava pela sala olhando tudo com espanto e com uma certa curiosidade. – Essa sim é uma típica casa de vampiros. – Ele riu, e eu imaginei que Rosalie provavelmente teria de aguentar muita gozação quando…bem, quando tudo isso terminasse. E só o que eu desejava era poder voltar à respirar e observar Jacob e Rosalie se atacando verbalmente, parecia o paraíso. Ele me olhou quando eu não respondi e torceu o nariz para minha expressão atônita.
- Ah qual é Ness. Eles vão entender, e afinal de contas você não matou nenhum inocente, eles eram assaltantes. Sabe-se lá quantas outras pessoas eles já machucaram.
- Jake, você não está ajudando. – Não mesmo. Nada justificaria matar humanos, eu não era Deus, como eu poderia julgar quem era bom ou mal? Quem viveria, quem morreria por minhas mãos?
- Desculpe. Me diga o que eu posso fazer pra ajudar então. Eu costumava te distrair bem antes. – Ele se sentou ao meu lado no tapete junto a lareira e sorriu pra mim, como quem pede para brincar. Deus, eu era algum tipo de pervertida mórbida, ou Jake tinha algum poder de introduzir pensamentos impróprios em minha mente, já tão superlotada de coisas estranhas. Não, não, não. Repeti pra mim mesma mentalmente, me convencer estava ficando realmente difícil ultimamente. E, bem, Jacob não estava ajudando muito. Eu olhei pra ele, e fiquei pensando como as coisas tinham mudado entre nós. Saber do imprint tinha mudado muitas coisas, mexido com a ordem em que as coisas usualmente ficavam em minha cabeça. Agora eu não sabia se eu podia beijá-lo, abraçá-lo, mas definitivamente, era o que eu queria fazer.
- Você é tão ridiculamente linda… – Ele suspirou e tocou meu rosto. Droga, lá se ia meu tão sofrido autocontrole.
- Eu devo aceitar isso como um elogio? – Isso, falar era bom, ajudava a manter o foco.
- Absolutamente. – Lentamente, ele estreitou o espaço entre nós. Era como se ele fosse um enorme imã no qual eu estivesse presa completamente, sem poder algum sobre meu próprio corpo. Só a atração, puxando e puxando cada vez mais partes de mim para ele.
- Jake. – Sussurrei, à um centímetro de seus lábios.
- O quê. – Ele respondeu suavemente, sua respiração quente tocando meu rosto. Bem, eu esqueci o que ia dizer. Era algo importante, mas mesmo assim foi facilmente substituído.
- Você cheira tão bem… – Joguei-o de costas no chão e toquei seus lábios com violência. Ele revidou com a mesma pressão, sabendo que não me machucaria. Seus braços se estreitaram como prenças em volta do meu corpo enquanto minhas mãos agarravam sua camisa. Ela virou trapos em segundos e foi só quando eu deixei minha boca explorar a base de seu pescoço que percebi que eu estava desejando mais do que seu corpo. O calor estuporante no meu corpo cedeu lugar à queimação ardente em minha garganta. Jacob parecia alheio a minhas reações, ele estava em toda parte, dificultando – e muito – meu trabalho para não matá-lo. Todo meu corpo pedia, chamava por ele, e minha sede parecia explodir para meu olhos, meus ouvidos, minhas narinas… Sem perceber eu apertei levemente meus dentes em seu lábio inferior, era pra ser um beijo, mas o “beijo” foi mais forte do que eu pretendia. Jacob afastou meu rosto por um momento, percebendo o filete de sangue escorrendo pelo canto de sua boca. Alguma parte mais consciente de mim ficou envergonhada e com medo que ele se chateasse – e com toda razão. Mas meus olhos – eu podia sentir – ardiam de desejo pelo seu sangue. Ele me encarou por um instante interminável, e apesar de toda vontade gritando dentro de mim, eu não lutei contra o espaço que ele colocou entre nós. Apenas fiquei alí, devolvendo seu olhar inexcrutável, meio fora de mim, mas ainda dentro do meu controle, ainda ciente de que aquele era o homem que eu amava, e eu não o mataria. Era algo realmente estranho, eu estava acomodando dentro do meu corpo duas forças impossivelmente grandes. A sede e o desejo. Ambos fortes e poderosos, ambos dominando todo meu ser, mas alí, presa naqueles olhos escuros que brilhavam como tochas na escuridão, eu senti que podia controlar. E Jacob parecia ter tido a mesma concessão.
Quando ele me beijou de novo, o corte em seu lábio já estava fechado. O ritmo diminuiu, ele passeou por meu corpo com uma delicadesa que parecia ser impossível para mãos tão grandes. Ele não se importava que eu o mordesse, e eu não sabia se ceder à esse novo prazer era algo seguro para mim. Parecia errado, parecia vulgar, em qualquer outro momento de minha vida eu teria repudiado essa idéia, mas alí, presa sob o corpo quente dele, todo princípio moral-ético-religioso derreteu.
- Você sabe que eu me curo rápido. – Ele sussurrou em meu ouvido. O quê era aquilo? Uma permissão oficial? Ele queria que eu mordesse ele? Meu corpo reagiu antes dos meus próprios pensamentos e quando falei, eu não fazia idéia de como minha boca tinha conseguido se mover independente dos meus comandos cerebrais.
- Me avise se eu te machucar.
***
Eu acordei meio desnorteada, e a princípio eu estava completamente segura de que eu tinha adormecido e sonhado coisas que me deixariam muito embaraçadas se meu pai estivesse por perto. Mas então eu me sentei, e eu estava numa cama, num quarto desconhecido e escuro. Iluminado apenas por três velas, o que não provia muita luz, tendo em vista o tamanho do cômodo. E bem, eu estava desprovida de roupas – por falta de termo menos embaraçoso. Droga, droga, droga. Nada bom.
Encontrei minhas roupas jogadas pelo chão e desci as escadas correndo. O cheiro de bacon vindo da cozinha me avisou onde Jacob estava. A cozinha de Rosalie era pequena, mas organizada, e era o cômodo mais “normal” da casa. Jacob usava um avental branco por cima do jeans, e eu me perguntei onde estaria a camisa dele. Talvez rasgada no chão da sala?
- Oi. – Ele sorriu pra mim, seu rosto estava iluminado. Ele mexia alguns ovos numa panela enquanto despejava bacon num prato. Jacob não era nenhum chef nem nada, mas ele se virava bem. Conhecimento culinário adquirido nos anos em que ficou conosco – vampiros raramente preparavam o jantar.
- Oi. – Me sentei na bancada e encarei minhas mãos. Tinha mesmo acontecido? Enquanto eu sucumbia de vergonha, Jacob arrumou a mesa e os pratos. Um silêncio constrangedor encheu o ar, então, algo me veio a mente.
- Que horas são? Quantas horas para eles chegarem?
- São oito horas. Mais uma hora, duas talvez. – Ele começou a mastigar e o silêncio retornou. Mesmo sem ter certesa de que nós dois fizemos o que eu achava que tínhamos feito, não consegui evitar o desconforto. Jacob estava mais tranquilo, mas eu podia ver lá no fundo – por tráz da expressão de contentamento – uma leve apreensão.
- Não vai comer? – Ele perguntou.
- Claro. – Puxei um prato para perto de mim e me servi. Era uma boa desculpa para não falar. Alguns minutos se passaram assim, apenas o barulho de nossa mastigação e os olhares constrangidos, constantemente flagrados um pelo outro.
Mas que droga, eu pensei. Eu estava agindo como uma criança. Me acovardando para não ter que lidar com as consequências dos meus atos. Sexo nem de longe era a coisa mais grave na minha lista de infrações. Mas até onde eu podia me lembrar – e era muita coisa – eu tinha…mordido ele. Toda nova mordida durava apenas o tempo de uma respiração. Ele se curava no mesmo instante, e tudo que eu podia sentir era um leve dislumbre de seu sangue. Eu não o matei, não bebi de seu sangue, nada disso. Não era tão ruim, era? Bem, parecia muito bom pra mim.
- Jake. – Eu comecei, mas logo Jacob estava de pé, retirando seu prato.
- Não precisa se explicar Ness. Eu entendo que não era para acontecer aquilo, e peço desculpas por meu atrevimento. Foi culpa minha, não precisa dizer nada. Não vai acontecer de novo. – Eu o encarei, perplexa. Ele achava que eu me arrependia? Que eu estava tentando evitá-lo? Que ótimo, fiz um grande trabalho agindo como uma pirralha.
- O quê? Não… – Eu levantei, aquele mal entendido estava me matando. Meu comportamento covarde não estragaria tudo. – Jake, olhe pra mim. – Ele se mateve de costas para mim, curvado sobre a pia, encarando a parede. Vários minutos se passaram – talvez nem tantos assim, mas parecia o bastante para mim.
- Ok, vai ser do seu jeito. – Agarrei um prato em cima da mesa e arremecei em suas costas. A louça partiu em mil pedaços, nenhum deles nem sequer fez cócegas na pele de Jacob, mas o susto o fez se virar – boquiaberto – para mim e me encarar.
- Agora me ouça. Eu não me arrependo de nada. Nada. E isso faz de mim uma indecente pervertida, mas quer saber? Dane-se. Eu gostei e se nós sairmos dessa vivos, eu vou querer repetir. Então, Jacob Black, me desculpe se abusei de sua inocência, mas eu não lamento por isso. – Eu gritei e atirei as palavras nele como adagas pontudas, mas eram tão verdadeiras e chocantes, que eu duvidei por um minuto que eu as tinha dito de verdade. Eu estava orgulhosa de mim, jamais – nem em um milhão de anos – eu teria suposto que diria algo assim algum dia, muito menos para Jacob. Ele ficou parado, me encarando com aquelas sobrancelhas contraídas e aquela testa vincada – ele sempre fazia isso quando estava em grande confusão mental.
- Não precisa ter um derrame cerebral, Jake. – Eu resmunguei, ainda sustentando seu olhar.
- Estou me decidindo se te beijo antes de te devolver a pratada. – Ele rebateu, e apesar da brincadeira, sua voz e expressão ainda estavam sérias e pensativas. Aquilo me fez sorrir.
- Será que eu tenho que decidir tudo por você? – Chutei os cacos do prato do meu caminho e joguei meus braços envolta do pescoço dele. Ele laçou minha cintura e me puxou para cima, sustentando meu peso nos braços. Nossos beijos pareciam serem sempre inflamados, tinham uma característica que condizia muito com nossas personalidades. Eram intensos, fortes e instintivos, como se houvesse uma quantidade de combustível inexgotável em nós. Nós tínhamos descoberto essa paixão em tempos muito conflituosos, tudo estava um caos agora, e mesmo assim, ainda havia espaço para amá-lo e desejá-lo, era quase como um oases no meio do deserto. E era impossível de se parar. Bem, quase…
Três batidas na porta talvez fosse o suficiente. Nós nos encaramos por um minuto, constrangidos de novo, mas dessa vez não com nós mesmos, mas com minha família que obviamente estava na porta da frente.
- Essa foi rápida. – Disse ele, olhando em direção a sala.
- Jake, dê um jeito nisso. Eu vou atender a porta. – Arrumei minhas roupas – tortas, amassadas e capengas – e meu cabelo e fui para porta.
Estavam todos lá, me encarando com seus olhos tão familiares. Eu senti meu peito esquentar à medida em que – um por um – eles me abraçavam. Deus, como senti falta deles!
Eu nunca estive ausente por tanto tempo, nunca se passou nem mesmo vinte e quatro horas sem que eu os visse, falasse com um deles. Era difícil de se imaginar, mas vampiros também podiam ser tumultuosos. Todos queriam saber detalhes, desde a noite em que saí de casa com Jacob, até a ligação para Alice. Eu também queria fazer inúmeras perguntas, mas eu estava com uma estranha sensação de que meu tempo estava se esgotando.
- Hei, gente. – Tentei me fazer ouvir no meio do tumulto e das conversas paralelas, teorias e extratégias sendo discutidas freneticamente.
- Ela quer nos mostrar o que aconteceu. – Eu odiava quando meu pai fazia aquilo. – Desculpe.
- Tudo bem pai. Olhem, eu tenho um jeito mais prático de contar a vocês. – Bem, eu tinha prometido a verdade não é? Nua e crua. Minha família já se arrumava em volta de mim – para tocar minhas mãos – quando eu os interrompi.
- Não. – Oito pares de olhos confusos me fitaram. Meu pai enrigeceu, isso era o que se ganhava quando se xeretava o tempo todo na mente alheia. – Apenas, não se movam. – Lancei um olhar nervoso à Jacob, sentado no outro lado da sala. Ele acenou, me encorajando. Fechei os olhos e deixei todas aquelas sensações estranhas que eu sentia quando expandia meus pensamentos para fora de mim me alcançarem. Quando senti a conexão, tentei organizar meus pensamentos em ordem cronológica. Eu me esforçei para isso, mas mesmo assim, a coisa toda ficou um pouco caótica. Sonhos, visões, fatos… Tudo se misturava de uma forma homogênea, quase não dava para se notar as nuances daquilo que era real, e do que era ilusório. Minuto por minuto dos últimos cinco dias passaram por minha mente, e eu senti toda angústia de novo, como se ela fosse um bônus incluso no pacote. Quando terminei, eu senti a tensão no ar em volta de mim. O choque nos rostos de pedra. Minha mãe e Alice me olhavam espantadas, Esme, Rose e Emmet estavam mais para…bem, orgulhosos, o que era bem estranho por quê eu não poupei nenhum detalhe sórdido. Carlisle e meu pai dividiam a mesma curiosidade no olhar, eu só esperava que os dois não queisessem me estudar ou algo assim. Só Jacob, do outro lado da sala me olhava normalmente – bem, normalmente no estilo de Jacob pelo menos.
- Como isso aconteceu? – Perguntou minha mãe. Ela se aproximou e pegou minhas mãos, como se quisesse checar se eu continuava sendo a filha dela.
- É o que eu tenho tentado descobrir mãe. – A sala ficou em silêncio, e eu podia ver as engrenagens funcionando na mente de cada um. Eu queria ouvir logo os sermões por mentir, trapacear, e principalmente por matar três humanos. Queria passar logo por isso. A angústia da espera tinha sido amarga demais até agora. Naquele silêncio repentino, eu olhei nos rostos deles, e uma agulhada fria passou por meu estômago. Era tanta informação, tanta coisa que mostrei a eles… Talvez até vampiros precisassem de tempo para digerir uma avalanche de más notícias como esta. As próximas horas seriam tensas naquela casa, momentos difíceis nos expreitavam das sombras. Um frio repentino passou por mim, eu não sabia de onde vinha, se era só o medo. Vampiros não deveriam temer a escuridão, éramos filhos da noite, as sombras sempre andaram ao nosso lado. Mas agora, era como se eu pudesse vê-las nos alcançando, se espandindo de cada canto, descendo sobre nós como um manto de silêncio e escuridão. Nos engolindo, um a um.
Demorei apenas um segundo para perceber que estava acontecendo de verdade – minha mente não seria capaz de produzir uma sensação tão real – mas então já era tarde, e tudo escureceu à minha volta. Tudo sumiu, como se eu mesma nunca tivesse existido.
Capítulo 18 – Escuridão
Em algum lugar no meio da escuridão eu podia sentir minha consciência, era a única forma de acreditar que eu ainda existia. Mas não era nada além de um pensamento, como se minha mente tivesse sido arrancada do meu corpo, por que eu não podia sentir nada, ouvir nada, todas as coisas se tornaram insubstanciais. Eu morri? Essa era a sensação da morte? Um nada? Um nada sem começo e sem fim? Eu nem a vi chegando, e agora eu estava mergulhada num mar de escuridão onde o tempo não existia. Poderiam ter sido horas, dias, semanas, ou até mesmo a eternidade – quem poderia saber? Só me restava as lembranças... Tentei me lembrar de quem eu era, de quem eu fui um dia. Eu costumava ser gentil com as pessoas, e elas gostavam de mim. Meus pais me amavam, eu tinha certeza disso, mesmo aqui, onde o amor parecia ser algo distante e imaginário. Eu conhecia o amor bem demais para acreditar que ele só tenha sido um sonho. Jacob Black parecia um sonho, mas ele existiu, em algum lugar, em algum tempo, eu o toquei, eu estive com ele. Eu me lembrava de cada detalhe de seu rosto, do jeito que ele sorria, do som de sua voz, a cor exata de seus olhos. O marrom derreteu em minha pele e aos poucos empalideceu na escuridão que me cercava de todos os lados. Eu senti uma leve brisa soprar meus cabelos e tocar meu rosto, senti o frio pressionar minhas costas, então percebi que tinha reencontrado meu corpo. Ele estava ali - frio e rígido – preso pelo torpor da minha consciência vazia. Eu não entendia, eu ainda me sentia viva, ainda podia sentir o ar entrando pelos meus pulmões, mas não havia cheiro, não havia substância. Tentei encontrar meus olhos, obrigá-los a se abrirem, quando ergui minhas pálpebras não enxerguei nada além do breu, mas aos poucos – à medida que meus olhos se ajustaram à escuridão – eu percebi que eu ainda podia enxergar, bem, pelo menos até onde a escuridão me permitia. Isso não parecia ser o inferno, então talvez eu não estivesse morta. Havia a escuridão e o frio a minha volta, e um silêncio desorientador, mas era pacífico. Onde estavam os gritos, as pessoas queimando? Talvez cada um tivesse um tipo de inferno, seu próprio sofrimento e danação eternos.
- Você parece assustada. – Uma voz de veludo cortante penetrou em meu ouvidos. O choque me fez despertar completamente do torpor, trazendo de volta à tona meu corpo e meus sentidos adormecidos. – Não tenha medo, eu não te machucarei. – Procurei na direção daquela voz, mas a escuridão só me entregou uma silhueta alta e imóvel à alguns metros de mim. Eu senti as correntes eu meus pulsos baterem contra pedra escura, e o tilintar ressonou pelo espaço imerso na escuridão. O que era esse lugar? Algum tipo de câmara?
- Quem é você? – Deixei minha voz firme e destemida, eu não ia dar uma de moçinha em perigo, o que era bem verdade considerando que eu estava em algum lugar com um estranho e que não sabia absolutamente nada a respeito dele – ou de suas intenções. Não houve resposta e por um momento eu pensei que estava tendo algum tipo de alucinação, mas então – mais atenta e desperta, eu pude sentir o cheiro adocicado vindo dele. Um vampiro - eu já deveria saber. Mas como eu tinha chegado ali, era algo completamente fora do meu poder de conclusão. Tentei me concentrar no espaço a meu redor. O chão era frio e duro como mármore, mas plano. As paredes eram igualmente rígidas, e ao julgar pelo completo isolamento de som, elas eram grossas – ou isso ou estávamos no subterrâneo. As correntes em volta de meus pulsos pendiam de algum lugar acima de minha cabeça, e eram grossas, talvez eu pudesse quebrá-las, mas eu duvidava disso - meu seqüestrador deveria ter se certificado de que essas correntes fossem fortes o suficientes para resistirem a minha força – nessas horas eu odiava ser meio humana. Mas que diabos era isso? Há um minuto atrás eu estava na sala medieval de Rose, encarando os rostos chocados de minha família diante do fato de que nós estávamos sendo seguidos e vigiados - entre outros acontecimentos absurdos. E agora eu estava em algum lugar remoto, presa em correntes maciças e sendo vigiada por um vampiro anormalmente educado e silencioso. Era parte do plano de Aro? Me seqüestrar? Como? Como alguém poderia ter me tirado de uma casa cheia de vampiros – e um lobisomem – sem que nenhum deles impedissem? Eu sempre achei que nossos dons e nossa força fosse praticamente invencíveis, nossas barreiras eram intransponíveis com Alice e meu pai, e mesmo se alguém conseguisse se aproximar demais, minha mãe protegeria nossas mentes de investidas hostis que nos paralizasse. O único jeito de eu estar aqui agora, era se... Eu gelei com o pensamento. Não, eu não poderia me permitir pensar isso. E se tivesse havido uma luta e minha família tivesse sido derrotada? E se eles estivessem todos mortos? O ódio começou a me inundar como uma maré de água fervente – o que eles queriam de mim?
- Hey, você. – Eu chamei. O vulto permaneceu imóvel, mas eu tinha a nítida impressão de que ele me observava atentamente. – Você é um Volturi? Está aqui seguindo as ordens de Aro? – Eu duvidava que conseguiria alguma resposta dele, mas procurei ganhar algum tempo para encontrar um meio de fugir, ou para estudá-lo melhor. Ele fez um leve movimento nas sombras, mas não foi o suficiente para me deixar ver nada além de seus sapatos e as barras de sua calça – e eram sapatos caros, pretos e lustrosos, e o tecido de sua calça era igualmente fino e impecável. Não se ouvia nada além do leve farfalhar de nossas respirações fluindo suavemente.
- Você parecia mais disposto a conversar antes. Ficou desapontado por quê eu não estou com medo de você? – Eu estava com muita raiva, e imaginei que destilar um pouco do meu sarcasmo ajudaria a aliviar minha tensão. Ele riu, e o som era suave e gentil, como se ele estivesse se divertindo realmente com minha presença alí.
- Sobre o que você quer conversar? – Ele perguntou, e novamente a delicadesa e cavalheirismo no tom de sua voz me sobressaltou. A pergunta me pegou de surpresa, mas eu fingi indiferença.
- Que tal conversarmos sobre quem diabos é você e o quê eu estou fazendo aqui? – Trinquei meu maxicilar com força, tentando conter o impulso selvagem de arrancar a cabeça dele, bem, logo após de conseguir me soltar. Um silêncio pesado pairou no espaço entre nós, e eu pensei que ele não diria absolutamente nada. Eu esperei, talvez ele estivesse ponderando sobre os riscos de me dar informações demais.
- Meu nome é Alec. E você está nos arredores de Volterra, nós ficaremos aqui algum tempo, e eu fui encubido da missão adorável de cuidar de você. – Meu queixo não caiu nem nada, mas com certesa meus olhos se abriram quase ao ponto de pularem das órbitas. Se a situação fosse menos preocupante eu gritaria Bingo. É claro que estávamos “nos arredores de Volterra”, e é claro que havia um dedo – talvez os dez dedos – de Aro nisso. Eu odiava ser a pessoa que diz: “Eu avisei”, e talvez eu nem tivesse para quem dizer isso. Minha família estava um oceano de distância de mim, e talvez... Deus, talvez eles nem estivessem mais vivos.
- O que você fez com eles? – Eu ainda não conseguia acreditar que – mesmo a guarda Volturi – fosse capaz da proeza de nos pegar desprevenidos. E até onde eu lembrava, até o momento em que terminei de contar minha história para minha família, nem Alice nem meu pai detectaram nada estranho vindo atrás de nós – e eles estavam em alerta vermelho desde o momentos em que fiz aquela ligação. Mas Alice tinha se queixado de suas visões – ou da falta delas, e algo me dizia que isso estava inteiramente ligado ao fato de que Aro estava agindo nas sombras.
- Eu? Eu não fiz nada. Minha única missão era te trazer em segurança até aqui, e me assegurar de que você não faça nada imprudente. – Alec deu um passo à frente, e a única réstia de uma fraca luz iluminou seu rosto marmóreo. Seus olhos carmim brilharam na escuridão, mas a expressão gentil e afetuosa em seu rosto impediu que um arrepio subisse pela minha espinha. Eu podia entender por quê Aro o enviou até mim, ouvi meus pais conversarem sobre os poderes dele. Alec podia anular todos os nosso mais afiados sentidos, e agora eu entendia de onde viera a escuridão repentina. Ele me deixou imersa em seus poderes durante todo o trajeto até aqui, sem ver ou ouvir, sem sentir absolutamente nada, sem poder reagir, para que eu não tentasse escapar. Isso explicava a sensação de extremo vazio e desolação, mas ainda não explicava como Alec se aproximou de nós sem que percebêssemos.
- Como você não foi pêgo? Alice veria você chegando, meu pai te notaria à quilômetros. – Essa dúvida estava me matando, por quê poderia muito bem ter havido uma briga depois que Alec me apagou, e se houve briga, houve perdas, e eu precisava saber alguma coisa além de...nada.
- Vamos deixar esse pequeno detalhe em mistério por enquanto. – Um sorriso simpático surgiu no canto de seus lábios e seus olhos me fitaram com uma curiosidade lisonjeira. Eu queria exigir mais respostas, mas algo na expressão dele me fez parar por um minuto. Qual era a dele afinal? Se ia me manter trancada deus-sabe-lá-onde esperando Aro decidir o que fazer comigo, eu gostaria que ele não parecesse tão gentil, isso só tornava as coisas mais difíceis. Eu sempre fui muito direta com relação aos meus sentimentos, não havia meio termo. Se ele era meu inimigo, eu o odiava. Se ele feriu alguém que eu amo, eu o odiaria em dobro. Tantas coisa giravam em minha mente...e mesmo com todo o caos, eu não conseguia me sentir desesperada. Havia uma friesa em meus sentimentos, que de imediato me alertou – era como se eu pudesse observar todos os fatos de um ângulo externo.
- Do que se trata tudo isso? Eu quero dizer, o que vocês pretendem? Qual é o grande plano? – As palavras saíram monótonas, frias, e eu pude ver na expressão de Alec que ele achava essa minha reação tão inusitada quanto eu. Talvez tenha sido isso que o fez falar, e eu o ouvi, absorvendo e guardando palavra por palavra quer saía de sua boa delicadamente desenhada.
- Você é esperta, devo reconhecer isso. Você percebeu o que estava acontecendo antes de qualquer um, e acredite, nós cobrimos bem nossos rastros. – Ele parou em minha frente e me observou mais atentamente, eu sustentei seu olhar com firmesa, podia sentir meus olhos impacíveis. – Sabe...Nessie, não é? – Ele parou, esperando uma confirmação, eu não queria que ele me chamasse assim, só pessoas queridas me chamavam assim, ele não tinha esse direito. Contudo, preferi ficar em silêncio, eu queria mantê-lo falando. – Você é diferente dos outros da sua espécie. E não eram muitos para se considerar...
- Eram? – Interrompi. Heidi então estava falando sério quando disse que eu era a última de minha espécia nojenta? Alec me olhou mais uma vez, e eu senti seus olhos penetrarem minha alma. Seu rosto não denunciava nenhuma reação a minha pergunta.
- Sim, eram. Nós caçamos e matamos todos os outros. – Ele falou isso com uma serenidade quase doentia. – Dois meses após nosso...encontro, Aro colocou a guarda em movimento. Fomos para as florestas do sul e não foi difícil para Demetri encontrar os outros mestiços. – Ele suspirou e olhou para algo além de mim. A friesa em meu corpo oscilou, Nahuel e suas irmãs, caçados e abatidos como animais.
- Por quê? – A pergunta escorregou de meus pensamentos e escapou por meus lábios. Alec colocou as mãos nos bolsos de seu terno preto e impecável e me olhou daquele jeito ilegível dele. Ele parecia se fazer a mesma pergunta.
- Aro passou esses sete anos limpando a bagunça que vocês fizeram. – Apesar da acusação, Alec falava lenta e suavemente, quase como se estivesse comentando sobre o tempo. – E devo dizer que foi uma campanha bem sucedida, talvez até demais. – Ele sorriu, mas o sorriso não alcançou seus olhos. Era estranho, havia um cansaço intrínseco em seus olhos felinos, que não condizia com o estigma durão e impiedoso de um Volturi. Eu o olhei enojada, e isso pareceu perturbá-lo.
- Entenda. – Ele disse, desviando de meu olhar. – Nós precisávamos reestabelecer a ordem depois daquele pequeno motim. Nosso mundo precisa de controle, nossa espécie também precisa de governo, e como todo governo, nós também temos oposição. – Um segundo de silêncio se passou, então ele contornou meu corpo suspenso pelas correntes em meus pulsos e disse: – Se a notícia se espalhasse, nós teríamos muitos problemas. E Aro sabia disso no momento em que partimos de Forks. E então, nos anos seguintes, nós limpamos a bagunça. – Ele suspirou outra vez e se colocou de frente para mim. Mais uma vez aqueles olhos injetados penetraram minha alma. Eu não sabia dizer por quê sentia isso quando ele me olhava, talvez fosse parte do poder dele, invadir nossos sentimentos e sensações daquele modo tão peculiar. Começei a imaginar as coisas que Alec me contou, e fazia pleno sentido. Soava como Aro. Eu me lembrava de muita coisa daquele dia, foi algo que me perturbou durante muito tempo. As conversas sobre os motivos de Aro mover toda a corte, o “julgamento teatral” dos anciões que meu pai descreveu, o desejo de Aro pelo domínio dos poderes de Alice, sua cobiça pela matilha... E eu me lembrava também da indignação e disposição dos que estavam presentes de provarem minha inocência – ou bem, minha não selvageria. Tudo aquilo – toda farsa – ficou exposta, e Aro teve que recuar. Eu podia imaginá-lo, confrontado pelo desejo de poder e pela reputação de seu clã. “Limpar a sujeira” parecia algo inteligente e eficaz para se fazer na posição em que ele estava, mas era também arriscado. Todos os vampiros que estiveram naquela clareira para testemunhar a meu favor, estavam cientes do risco, sabiam que estavam com a mira na testa, mas ninguém sabia ao certo como Aro reagiria àquilo. Bem, pelo que parecia, ele resolvera silenciar as testemunhas do ocorrido. De imediato me vieram à mente os rostos, mas um rosto me preocupava em particular...
- Alec. – Ele pareceu sobressaltado ao ouvir seu nome sair de minha boca num tom tão natural, na verdade eu mesma achei estranho.
- Sim. – Ele respondeu, igualmente amigável. Sua expressão estava leve enquanto me observava.
- Vocês... – Eu exitei. – Vocês mataram todos? – Minha voz saiu embargada e eu me aborreci com isso, não queria demonstrar o quanto eu sentia por aquilo tudo. Alec também exitou, seu olhar oscilou por um instante, então ele disse:
- Como disse, foi uma campanha bem sucedida. Eliminamos quase todos que estiveram presentes naquele dia. – Engoli o que parecia ser uma bola enroscada em minha garganta. Alec esperou com o olhar ainda preso em meu rosto. Deus, quase todos. Mortos. Por minha culpa. Eu nem me lembrava de todos, apenas alguns nomes se destacavam em minhas lembranças: Benjamin, Maggie, Garret, Kate, Tânia, Eleazar, Senna, Zafrina...
- Alec, quem resta? – Perguntei, e dessa vez minha voz saiu quase como um grunhido. Alec não respondeu, apenas ficou me encarando como seu eu fosse alguma coisa de outro mundo. – ALEC. – Insisti, eu precisava saber, eu merecia isso. A vida de todos eles se perdeu para que eu tivesse o direito de viver. Alec fechou os olhos - e isso me sobressaltou muito, era um genuíno sinal de fraqueza, não condizia com sua força, seu poder. Um segundo depois ele os abriu e me fitou com uma determinação quase hostil.
- Restam o clã Denali, os Cullen e o clã da Romênia. Há alguns em Volterra, sob a vigílha da guarda e um ou dois foragidos. – Ele parou e sua expressão se tornou mais soturna. – E claro, os transmorfos, Aro quis deixar os melhores para o final. - Ele se afastou, sumindo na escuridão que nos rodeava, e me deixou com meus pensamentos – um misto de alívio por minha família estar incluída nos “assuntos pendentes” e horror por todas as outras vidas que se perderam, e as que ainda estavam em perigo enquanto eu permanecesse aqui. Não que eu acreditasse que pudesse fazer muito, mas eu definitivamente não queria ficar presa aqui enquanto Aro completava sua “faxina”.
- Me tire daqui. AGORA. - Um grito estrondoso e hostil irrompeu de mim, e era tão colérico que não pensei ter saído de minha boca. Usei toda minha força para me desprender das correntes, mas como eu pensei, ele tinha se certificado de que elas me mantessem alí o tempo necessário – ou pelo menos até Aro dar a ordem para me matar.
Alec não voltou naquela noite.
Capítulo 19 – Proposta
A manhã trouxe lentamente a percepção do terror em que eu estava, afundada até o pescoço. Era como se a luminosidade perolada que descia das pequenas cavidades do teto abobadado iluminasse não só a ampla câmara vazia, mas também meu senso de ineficácia. Tudo que fiz foi em vão. Tudo pelo qual lutei foi inútil, e o preço que me seria cobrado era alto demais para que eu pudesse se quer cogitá-lo. E agora eu estava aqui, impotente e vulnerável, a mercê dos planos Aro. Eu me sentia estúpida. Tola. Sentia-me arrastada pela correntesa e afogada em meu próprio orgulho. Quem era eu para salvar todos eles? Uma mestiça fraca e limitada brincando de heroína em um mundo de seres indestrutíveis, de seres que não necessitavam dormir ou comer. Seres que não sangravam como eu. Me sentia rasgada ao meio, limitada a cada membro pelas correntes do meu medo, do meu fracasso.
O que você fará agora, Renesmee? Você decepcionou todos eles. Você mereceu perdê-los.
Os passos de Alec interromperam meus pensamentos, mas não minha dor. Nunca julguei ser capaz de sentir uma dor tão abrasadoramente forte. Me queimava tanto que, agora, eu só podia sentir a dormência. A inércia crescente se espalhando por meu corpo e mente.
Alec se aproximou de mim, mas eu não ousei olhá-lo nos olhos. Eu tinha medo de que todos os meus pesadelos se tornassem mais reais se eu olhasse para aqueles olhos vermelhos e frios. Senti seus dedos gelados tocarem meu braço, e uma onda de choque desceu por meu corpo. Meu coração deu um pulo, como se seus dedos fossem fios desencapados.
- Fique calma. Eu vou te soltar, mas tem que me prometer que não vai tentar fugir. – Ele sussurrou em meu ouvido e sua voz era doce e macia. Como ele poderia me pedir algo assim? Daquele jeito tão condescentende? Eles mantinham minha vida em suas mãos e eu ainda tinha que cooperar? Eu tinha que aceitar meu destino e agradecer por isso? Não. Essa não era eu, eu morreria lutando...
Que estupidez – uma voz dentro de minha cabeça falou. O que você tem feito até agora? Pelo quê você lutará agora? Por sua vida? Eu não a queria sem Jacob, sem minha família, eles podiam tomá-la. Simplesmente não haviam mais motivos para que eu continuasse a tentar manter minha cabeça na superfície. Não havia mais motivos para resistir. Talvez eu quisesse morrer, agora que tudo estava perdido. Morrer parecia mais fácil, uma opção mais plausível.
Senti as mãos de Alec percorrendo a extensão de meus braços e desatando minhas mãos das correntes. Eu estava mole, meus joelhos cederam sob meu peso, meu corpo também não queria resistir. Alec me pegou no mesmo instante, impedindo minha queda. Ele era patético, eu era tão indestrutível quanto ele – bem, quase. O que ele pretendia com aquilo? Será que ele levava seu trabalho tão a sério ao ponto de ser minha babá e cuidar de mim com tanto empenho? Bem, não me importava quais eram seus motivos, nem os motivos de Aro, nem quaisquer outros motivos, não mais...
***
Os dias passaram indistintos, inexoráveis. Eu não era mais capaz de distinguir o dia da noite, não percebia mais as nuances da claridade ao meu redor, talvez por quê eu me sentia mergulhada em trevas, uma escuridão que nada tinha a ver com o quarto amplo e bem arrumado que Alec me mantinha agora. Estávamos numa grande galeria subterrânea, o que conheci nos primeiros dias aqui, fora apenas o átrio frio e escuro. Alec me carregou pelas escadas e pavimentos de pedra e pelas pesadas portas de madeira maciça e me levou até um aposento longícuo, bem, pelo menos era o que me pareceu, mas eu não estava prestando muita atenção nas coisas ao meu redor.
Ele providenciou uma cama, lençóis e travesseiros, assim como as roupas que eu usava agora. Me trazia comida três vezes ao dia e sangue humano ao anoitecer. E eu o bebia.
Não tinha mais que honrar nenhum código de conduta, não valia mais a pena, não tinha mais motivos para ser um monstro melhor – como se isso fosse possível. Aliás o sangue era a única coisa que fazia eu me sentir um pouco mais viva, a única coisa capaz de aquecer meus membros e tonificar meu coração amortecido.
As vezes eu ficava sozinha durante todo o dia, ciente de que todas as saídas estavam lacradas, e apenas me sentava na cama e prendia meu olhar em um objeto inanimado por horas. Mas ás vezes Alec ficava comigo, na verdade isso era o que acontecia mais frequentemente. Ele se sentava em um poltrona no canto do quarto e apenas me observava, silencioso e sereno, algumas vezes conversávamos, outras não.
Eu não sabia dizer o que estava se passando em minha mente. Talvez nada. Talvez eu estivesse com algum tipo de apagão mental, o que ainda assim, era melhor do que a dor intensa que me assolava todas as vezes que lembrava deles. Tantos dias em silêncio. Nenhuma notícia, nenhum veredicto. Nada.
- Não vai mesmo tentar fugir? – Perguntou Alec em uma das noites em que ficou comigo. Eu o encarei, e o vazio em meu olhar oscilou ao encontrar seu rosto, ele parecia atormentado com algo. A pergunta me pegou de surpresa, tive que pensar um pouco sobre aquilo, minha mente estava muito acostumada com o torpor.
- E por quê eu deveria? – Era a primeira vez que eu ouvia minha própria voz em dias e ela parecia...diferente. Soava monótona e fria, e mesmo quando senti aquela dor aguda atravessar meu estômago, minha voz não oscilou em seu tom gelado. Alec sustentou meu olhar e a impressão que eu tinha, era que ele estava tentando enxergar atravéz de um poço sem fundo e completamente vazio.
- E se eles não estivessem mortos? – Ele desafiou. – Tentaria fugir daqui? – Ele me olhou mais intensamente e seu rosto usualmente imóvel se torceu em uma máscara de curiosa apreensão. Senti as paredes oscilarem ao meu redor, eu não queria sentir esperança, não queria sentir aquela sensação sombria de que eu estava desistindo deles, que eu falhei e os condenei. Por quê ele estava perguntando essas coisas? Ele estava tentando sondar? Estava blefando? Estava brincando comigo?
- Por quê está me perguntando essas coisas? – Sufoquei meu desespero dentro de mim e tentei parecer o mais displicente possível. Alec exitou um minuto, e havia um brilho estranho em seus olhos, que o deixavam ao mesmo tempo ameaçador e atraente.
- Por quê quero saber o que você faria se saísse daqui, sem sua família, estaria sozinha. Tentaria se matar como seu pai? – Aqueles olhos varreram meu rosto com uma avidez que me perturbou, como se meu destino fora daqui realmente o interessasse. Mas aquela pergunta penetrou em meu cérebro e se arraigou fundo em minha mente. O que eu faria? Se não houvesse nada mais para mim lá fora, se existisse uma chance de Aro me deixar ir, para onde eu iria? Não respondi aquela pergunta, por quê primeiro, eu teria que encontrar uma resposta para dar a mim mesma.
Pensei muito nessas coisas durante toda a noite, tanto que me sentia fraca e sonolenta pela manhã. Eu sonhava com eles todas as noites, mas naquela noite em particular, eu senti que meu cérebro iria explodir. Acordei aos berros com Alec me segurando pelos ombros, os travesseiros estavam arruinados, penas e plumas espalhados por todo o quarto.
- Ness, acorde. – Eu ouvi Alec dizer, mas eu não conseguia abrir meus olhos. Ouví-lo me chamando daquele jeito me fez lembrar de Jacob e meu coração afundou no peito. Reunindo todas as forças que me restavam eu forcei meus olhos a se abrirem. A primeira coisa que ví, foram os olhos profundos e vermelhos de Alec à dois centímetros de distancia.
Fiquei olhando para ele, incapaz de me afastar daquelas cores intensas, nadando em sua íris. Era como um mar de sangue, revolto e feroz, mas impossível de se resistir. Era lindo e aterrorisante. Mas eu não estava com medo.
- Por quê está me olhando assim? – Eu sussurrei. Minha voz estava frágil e atormentada, ele parecia pacífico, mas seus olhos não mentiam para mim. Seu inimigo não te olharia daquele jeito.
- Fuja comigo. – Seu hálito doce e suave acariciou meu rosto e por um momento eu pensei ter ouvido errado. Mas as palavras dele ainda ecoavam em meus ouvidos e seus olhos estiveram me pedindo isso o tempo todo, agora eu entendia. Só não conseguia entender o por quê. Ele – juntamente com sua irmã – eram os braços de Aro, aqueles que tornavam possível qualquer sonho extravagante daquele velho ambicioso. Essa era a vida dele, isso é o que ele era.
- Está brincando comigo? – Foi tudo que consegui dizer, minha mente estava congelada com o choque. Alec sorriu e eu pensei estar vendo coisas, como isso aconteceu?
- Nunca falei tão sério em toda minha...existência. – Ele disse. Deus do céu, ele estava realmente me propondo isso? Ele me sequestrou, me manteve presa aqui todo esse tempo, e agora estava me propondo uma fuga romântica ao pôr do sol? No mínimo ele era louco. Agora eu entendia sua pergunta “e se eles estivessem mortos?”, ele estava tentando me dizer que, como eu não tinha mais nada mesmo, poderia muito bem fugir com ele. Era um absurdo. Seus olhos faíscaram nos meus com a intensidade do que ele estava prestes a dizer. Eu me encolhi, com medo do que ouviria.
- Pense bem Nessie. Eu poderia te tirar daqui, eu conheço todas as saídas, conheço essa cidade como conheço minhas próprias mãos. Eu poderia te manter à salvo...- Suas palavras saíram duras e suplicantes.
- Pare. – Eu não queria mais ouvir nada. Aquilo estava errado.
- Poderia te levar para longe deles. Acabou agora. – Ele continuou sem dar ouvidos a mim.
- PARE. – Gritei e me afastei dos braços dele. Eu estava furiosa, magoada e confusa. Eu não queria ouví-lo dizer que eu não tinha escolha, que tudo estava acabado para mim, isso só intensificava a dor que me consumia por dentro. Eu sentia como se as paredes estivessem se estreitando ao meu redor, e em pouco tempo me esmagariam. Me encolhi como uma bola na cama o mais longe dele que o espaço me permitia e tentei controlar minha dor e confusão. Ouvi ele se levantando e caminhando pelo quarto silenciosamente. Não ousei olhá-lo, não queria ver seu rosto e seus olhos me pedindo para fugir com ele. Mesmo que não me restasse nem uma folha seca, eu não poderia aceitar sua oferta. Isso seria uma traição das mais sujas e imperdoáveis.
- Não posso te deixar aqui para morrer. – Sua voz era fria, cortante, ele estava tentando me fazer ser razoável. Mantive minha cabeça abaixada nos joelhos, e tentei suportar as palavras dele me perfurando como facas. – Eles vão te matar, sabe disso. Sua sorte é que Aro é um dramaturgo insolente. Está jogando, fazendo seu teatro, se não fosse por isso já estaria morta. – Eu sabia que ele estava certo, só não entendia como Aro foi de pai supremo à dramaturgo insolente.
- Você e sua irmã o servem fielmente à séculos. De todos os membros da guarda, você e Jane são os mais fiéis à causa, se deleitam com o poder e prestígio dos Volturi. Por quê isso agora Alec? – Eu não estava inteiramente certa de que queria a resposta, mas eu precisava saber, precisava entender o que estava acontecendo e bem, precisava tomar uma decisão. Ficar e morrer, ou fugir e viver eternamente com essa dor lancinante em meu peito?
Ele me olhou consternado, como se eu estivesse perdendo algum detalhe óbvio. Aqueles olhos cruéis não combinavam com sua expressão aflita.
- Eu... – Ele exitou, dando as costas para mim. – Eu estou cansado. Cansei dos jogos de domínio de Aro, cansei das reclamações de Caius, cansei da obediência cega que Jane tem por eles, cansei dessa eternidade de servidão. O que eu tenho feito durante séculos é limpar a bagunça de outros imortais, mas agora, Aro parece querer ultrapassar algumas linhas que até então nós evitáva-mos. Eu não quero mais isso. – Ele se virou de frente para mim e me olhou com indiferença. Não deveria ser fácil para ele falar essas coisas, mas nenhum de nós estava iludido com a idéia de que qualquer escolha que fizéssemos seria de alguma forma fáceis. Ambos estávamos escolhendo entre morte e traição.
- Criaturas como nós precisam desesperadamente de um propósito, mas o problema conosco é que nossos propósitos geralmente não são tão duráveis quanto nossas vidas. Eles acabam logo nos primeiros anos e o que nos resta é a eternidade buscando algo pelo que lutar e viver. – Disse ele, pensativo. – Mas pior do que viver uma existência vazia, é descobrir que dedicou tempo demais em mentiras, coisas que nunca fizeram o menor sentido. – O silêncio que se seguiu me fez entender de uma maneira perturbadora o que ele estava querendo dizer. Esperei que ele continuasse.
- Você faz sentido pra mim. – Eu mal tive tempo de me chocar com aquelas palavras e Alec já estava à centímetros de mim. – Pela primeira vez em duzentos anos eu sinto que minha vida faz sentido. Me sentar nesse quarto todos os dias e te observar durante horas tem sido a coisa mais importante que eu fiz em todos esses anos, eu faria isso por toda eternidade.
- Alec... – Arfei, era como receber um soco no estômago. Aquelas palavras eram absurdas e não faziam o menor sentido, mas mesmo assim me tirou o ar e a capacidade de pensar ou agir. Meu cérebro simplesmente não conseguia absorver a idéia de que Alec – um dos vampiros mais letais da guarda Volturi – estava me dizendo essas coisas. Ele pegou minhas mãos e isso me assustou de início, a pele dele era como seda fria e o calor da minha pele era um contraste agradável com a sua. Eu nunca tinha sentido nada como ele. Alec era ameaçador por natureza, mesmo quanto estava tentando ser gentil, ele tinha aquela elegância ofensiva, seus olhos escondiam tantos mistérios que se tornava quase impossível prever seus pensamentos. Ele era irresistivelmente nocivo, e eu não sabia se estava encantada ou apavorada com ele. Eu me sentia a própria Pandora, fascinada e aterrorizada com o conteúdo daquela caixa completamente intransponível que ele era.
- Fuja comigo. Por favor. – Ele sussurrou, apertando minhas mãos contra seu peito. - Por mais que me odeie, por mais desprezível que você me ache, me deixe salvar sua vida. Só salvando você eu poderei salvar à mim mesmo.
Capítulo 20 – Redenção
O que você faz, quando tem que decidir entre dois caminhos que jamais cogitou tomar? Quando o destino coloca diante de você, duas opções que até então nunca sequer passaram por sua cabeça? O que diabos você faz quando tem que escolher entre vida ou morte?
Vida e morte. Coisas que já não significavam a mesma coisa para mim. Eu não queria morrer, mas eu já não tinha muitos bons motivos para continuar viva. Monstros também sentem dor, e a minha era de um tamanho incalculável. Eu viveria para sempre com ela, e esse talvez seja uma bom motivo para se abrir mão da eternidade.
Mas morrer? O que se pode esperar da morte? É preciso coragem para seguir em frente, e mais coragem ainda para desistir.
Alec colocara em minhas mãos não apenas a decisão do que fazer com minha vida, ele procurava redenção e supostamente a encontrara em mim. Ainda assim, como eu poderia confiar nele? Como eu poderia acreditar outra vez no amor de alguém – ainda mais alguém que até então estava do outro lado do tabuleiro? Mas o que eu tinha para perder?
Nada...
Como disse, viver ou morrer já não significava muita coisa para mim, mas se eu morresse, não seria pelas mãos de Aro.
E esse talvez, era o meu único e mais forte motivo pelo qual eu estava prestes a fazer o que eu jamais pensei que faria.
- Partiremos ao amanhecer. – Disse Alec, que andava de um lado para outro no quarto, absorto em seus próprios planos. Faltavam poucas horas para o nascer do sol, e eu o observava alheia, estava muito distante daquele quarto, estava na sala da grande casa branca, rindo e comemorando meu aniversário de três anos. Estavam todos alí. Até Charlie, Billy, Seth... Eu até podia sentir o cheiro da comida sendo preparada por Esme e Rose na cozinha, enquanto Alice enfeitava meu cabelo com presilhas na sala. Podia ouvir a música alegre que meu pai tocava no piano e os sermões que minha mãe dava em Jacob por ter comprado outra aliança para mim. “Ela é muito nova para isso Jake” , ela dizia. Era meu terceiro aniversário, mas eu já tinha o tamanho de uma criança de dez anos. Lembro-me do vestido que usei naquela noite, cuidadosamente escolhido por Alice e Rose. Me lembro dos risos, das vozes, dos abraços... Lembrava-me de tudo com uma exatidão dolorosa, aquelas imagens jamais morreriam em mim. E era por isso que eu estava partindo com Alec. Ele era a minha única chance de escapar daqui e vingar minha perda, minha enorme e tortuosa perda.
- Ness, está me ouvindo? – A voz de Alec me trouxe de volta ao meu presente.
- Não me chame assim. – Eu disse duramente. Por mais que ele quisesse me ajudar, Alec não tinha o direito de me chamar daquele jeito, era invazivo demais, íntimo demais.
- Desculpe. – Disse ele se afastando. Ele se sentou em sua poltrona de costume e ficou em silêncio, me observando de uma forma que me incomodava.
- Repita para mim o plano. – Eu pedi. Precisava manter minha mente focada. Ele sustentou o olhar em mim por um minuto e suspirou.
- Assim que o sol nascer eu vou levar você à antesala no patamar superior, ao lado do saguão de entrada. Você me esperará lá até que eu diga que pode sair. Os guardas que estão na superfície supervisionam as entradas num esquema de 12 por 12.
- O que isso significa? – Perguntei, desenhando todo o esquema em minha mente. Alec olhou distraído para a porta do quarto e respondeu:
- Significa que a cada doze horas os guardas se revesam com outros guardas que vêm de Volterra. – Disse ele monótonamente.
- Porquê? Eles ficam com sono? – Ironizei, sem nenhum humor em minha voz. Alec olhou para mim, sua expressão era insondável.
- Não. Mas eles precisam comer algo. – Seus olhos vermelhos varreram o espaço ao redor, como se procurassem por algo. Eu me levantei, sentindo a excitação espalhar-se por meu corpo, talvez, com um pouco de sorte, eu estaria fora dalí em algumas horas e nem todos os vampiros do mundo seriam capazes de proteger Aro de mim. Não me importava o quanto esse pensamento parecia ridículo, o quão patética eu estava soando, só o ódio dentro de mim era capaz de me manter de pé, a promessa de terminar o que começei, apenas aquela fúria amarga fazia minha força permanecer em mim, anestesiando minimamente minha dor.
- E depois? – Insisti, sentindo-me cada vez mais perto da beira do precipício, um pouco mais fundo naquele poço interminável.
- Nós esperaremos os guardas trocarem seus postos, o que deve acontecer logo ao amanhecer.
- Por quê temos que esperar que eles troquem? – Interrompi.
- Por quê assim demorarão mais doze horas para encontrarem seus restos na floresta. Isso nos dará tempo. – Era perturbador a frieza com que Alec se referia à morte, mas aquele era seu tom habitual, aquela era sua profissão. Exterminar outros imortais. E realmente, eu não me importava de pagar esse preço, na verdade, o monstro enraivecido dentro de mim anciava por arrancar algumas cabeças.
- Não se preocupe, vou cuidar deles sozinho, eles nem ao menos vão me ver chegando. – Alec observava minha expressão diante da perspectiva de eliminar outros imortais, e obviamente estava concluindo que eu estava com medo. Olhei-o de esguelha, sem responder ao seu cavalheirismo grosseiro. Será que ele sabia o que eu e Jacob fizemos com Félix e Heidi? Será que encontraram suas cinzas espalhadas pela floresta? Era difícil dizer o que eu não faria por minha família - por Jacob – mas agora que eu os perdera, eu tinha apenas uma coisa pelo que lutar: vingança. E, apesar de não ser uma coisa tão nobre, ainda era uma razão pelo qual viver - ou talvez, morrer. De repente, algo estúpido me veio à mente.
- Alec, por que Aro está demorando tanto? Por quê não me matou ainda? – Perguntei, dando as costas para ele. Não queria que ele visse a chama de raiva latente em meus olhos.
- Ele está tendo problemas internos, Marcus não está contente. Ademais, os novos membros não estão cooperando tanto quanto ele gostaria. – Novos membros? Virei de frente para Alec, sua expressão estava séria e concentrada.
- Quem são esses novos membros? – Indaguei. Alec não respondeu, levantou-se num átimo e parou na porta, escutando algo que eu ainda não tinha captado. Parei também, absorvendo até o menor dos ruídos. Alec virou-se e disse-me:
- Está na hora.
***
A escuridão me envolvia como um véu denso e impenetrável. Eu permaneci alí, naquela sala fria e inócua, paciente e silenciosa em meu esconderijo. Alec saíra há dez minutos, mas eu não fui capaz de ouvir os gritos ou o som metálico de pedra dilacerada. Eu queria ajudar, desmembrar alguns guardas Volturi, imaginando que cada rosto era aquele rosto, o que mais ardia em minha mente, o que eu mais anciava para destroçar. Aro.
O tempo se arrastava, como se estivesse me desafiando. Deixei Alec fazer aquilo sozinho, era a minha maneira de agradecê-lo, era a chance dele se sentir vivo... Seria fácil para ele, como ele mesmo tinha dito, os guardas nem mesmo o veriam chegando. Ele neutralizaria todos os seus sentidos, e eles talvez nem se dariam conta de que estavam sendo desmembrados e empilhados antes da pira começar a queimar.
Cada minuto que passava era uma tortura. Eu queria correr, apenas correr de volta para casa. Queria ter certeza de que não estava tendo um pesadelo, queria fingir que, quando chegasse lá, eles todos estariam me esperando. Aquela antecipação fustigava meu peito, e eu tinha que me concentrar muito para me manter focada. O silêncio era opressor em meus ouvidos atentos, a única coisa que meus olhos captavam na escuridão, era o pequeno corpo de um inseto, andando pelos cantos da sala vazia. Só havia uma porta. A única entrada e saída daquela câmara fria. As paredes de pedra eram grossas o bastante para vedar os ruídos exteriores, mas eu fui capaz de ouvir os passos felinos de Alec se aproximando. Era um bom sinal. O plano estava tendo sucesso até alí. Ele abriu a porta e estendeu a mão para mim, sem olhar para o interior da câmara. Seus olhos varriam todo o perímetro externo. Hesitei por um momento em pegar sua mão, mas achei que seria indelicado com meu salvador. Porém, eu não estava feliz com aquilo. Assim que cruzei a porta e nos lançamos pelas escadas, eu a larguei. Deixei que ele me guiasse pelos caminhos que conhecia tão bem. Agora, mais atenta e desperta, eu podia absorver melhor as reentrâncias daquela galeria subterrânea. Era majestosamente construída em pedra, com pilares e paredes esculpidos com figuras diversas de anjos e divindades. O mármore que cobria o chão era enegrecido e polido. Quando chegamos ao átrio eu logo o reconheci, mais acima – no topo de uma longa escadaria – ficava uma pesada porta de madeira entalhada, e pela corrente de ar que se deslocava alí, eu podia deduzir que era a porta de entrada – a única saída.
- Escute. – Alec parou no topo da escadaria, segurando meu braço para que eu o encarasse. – Nós seguiremos pela floresta ao norte, quando chegarmos ao rio, nós iremos subir o leito até Montepulciano, lá nós pegaremos um trem.
- Alec, Demetri vai nos rastrear, ele vai nos encontrar, sabe disso. – Falei, sem querer dar ouvidos a minhas próprias palavras, mas era um fato que eu não poderia ignorar se não quisesse ser pega novamente.
- Sim, mas eu também sei as falhas desse rastreador. Caçei com ele durante minha vida toda, sei quais são seus hiatos. – Disse ele empurrando a porta de madeira. A primeira coisa que vi foi o céu. Azul e límpido sobre as árvores, e o sol – quente e vívido, refletindo e iluminando tudo em que tocava. Parecia uma afronta à minha tristesa, à escuridão fria e entorpecente que habitava em meu peito. Olhei em volta, estávamos no meio de alguma floresta nos arredores de Volterra. Dei um passo em direção ao sol – em direção à minha liberdade – e deixei o calor cair sobre minha pele. Fechei meus olhos, e o rosto dele dançou por trás de minhas pálpebras. O sol, quente e poderoso como ele, sempre aquecendo todas as coisas ao seu redor, tão perto de mim e mesmo assim tão distante. Algo que estaria sempre no fundo de minha alma, cuja ausência sempre deixaria que tudo em mim esfriasse, virasse trevas. Jake, eu sinto tanto! Queria tanto que tivesse sido diferente...
A mão fria e macia de Alec tocou meu braço, e me arrancou daquele momento único e derradeiro.
- Precisamos ir. – Disse ele, e sua voz era tão maçia quanto seu toque em minha pele. Olhei para ele, sua pele brilhava intensamente sob o sol e seus olhos estavam vívidos, mais claro e intensos do que jamais os vira. Um diamante de sangue, que agora me pertencia sem eu ao menos tê-lo desejado. Forcei meus pés a se moverem e em um segundo estávamos em movimento pela floresta, contornando as árvores e arbustos em uma velocidade irrefreável.
A medida em que nos aprofundávamos entre as árvores, o sol ficava cada vez mais encoberto pelas nuvens e pelas copas das árvores altas. Os pássaros cantarolavam distraídos pela floresta, como se debochassem da nossa corrida desesperada para salvar nossas vidas.
Eu podia ouvir o rio à cem milhas. Estávamos quase lá – quase livres.
Alec parou, seus sapatos derraparam no chão da floresta com a freada brusca. Eu parei alguns metros à frente, xingando-o baixinho pela súbita parada. Olhei-o de longe, me perguntando o que diabos ele estava fazendo. Ele estava de costas, as mãos em punho, sua postura indecifrável e imóvel. Então ele se virou rapidamente para mim, e a expressão em seu rosto perfeito fez meu corpo gelar.
- Corra! – Ele gritou, o desespero distorcendo suas compleições sempre sutis. – Saia daqui! - Por um minuto não entendi, mas então o vento trouxe o cheiro – o cheiro que significava morte – e o som de passos leves correndo em bando pela floresta. Eu sabia que devia correr, e não parar até que estivesse longe dalí. Mas o último vislumbre dos olhos de Alec me fez pregar no chão, como se meus pés se negassem a deixá-lo para trás – para morrer em meu lugar. Eu tinha que ir, eu deveria ir... Mas a dor lancinante que envolveu meu corpo fez meus joelhos cederem e eu caí no chão. Meu corpo contorcia-se como se estivesse em chamas, e eu não podia fazê-lo parar. A pior dor que já senti. Aquilo fazia a morte parecer o próprio Éden. No meio de toda aquela dor, eu senti minha mente se diluir, como se o calor das chamas que me corroiam estivessem derretendo meu cérebro. Mas eu fui capaz de ouvir o rugido atormentado rasgando o ar.
- Nãããoo! – Gritou Alec. E então a dor aumentou, e parecia ser impossível de suportar mais um segundo. Meus gritos pareciam um eco longícuo em meus ouvidos, misturando-se com outros sons indistintos. Olhei para o céu, esperando encontrar meu sol, mas a única coisa que encontrei foi um rosto angelical emoldurado por um capuz negro e um par de olhos vermelhos e cruéis deleitando-se com minha agonia. Jane sorriu para mim, e então meu corpo e mente sucumbiram à dor infernal que emanava dos olhos dela.
Capítulo 21 – ligação - Rising Sun a Historia
Capítulo 21 – Ligação
Chovia na superfície. Eu podia ouvir a água infiltrar-se pelas pedras e escorrer pelos túneis que circundavam toda extensão daquela galeria milenar. Cada gota fazendo um som distinto, as poças enegrecidas formavam pequenos lagos pelo chão, uma delas estava quase alcançando meus pés. A água era fria, as paredes eram frias, e além daquelas paredes não havia nada além da chuva para se escutar. Um silêncio que parecia ser impossível de se romper, arraigado no fundo de minha mente entorpecida.
Sentia-me tão humana... Era como se eu nunca tivesse passado disso. Uma sensação que um imortal jamais iria conhecer, a qual eu pensava ser impossível. Mas afinal eu era metade humana também, não era? E era essa a parte estúpida e frágil de mim que sucumbira a inconsciência após o ataque de Jane. Patético. Só não sentia-me com mais raiva, por causa da dor, raxando meu cérebro ao meio. Uma simples dor de cabeça, só que com a força de uma colisão de caminhões. O silêncio parecia elevar a dor dez mil vezes mais.
A consciência do que havia acontencido me atingiu aos poucos, lembro-me que quando acordei – há algumas horas – eu só conseguia sentir o torpor adormecendo cada parte de meu corpo, e as lembranças vieram como facas no escuro, cada uma delas atravessando impiedosamente meu peito.
Alec já deveria estar morto a essa hora, reduzido a cinzas por tentar me ajudar. Eu só desejava que o lado teatral de Aro falasse mais alto, assim talvez Alec teria um suposto julgamento, isso o daria mais tempo. Mas, do que adiantaria mais tempo? Ninguém nos salvaria. Alec estaria queimando no fim do dia ao lado de minha própria pira.
Sentada alí, naquele chão frio e úmido, encarcerada numa cela de dois por dois em algum lugar remoto da grande galeria subterrânea dos Volturi, eu começei a pensar em como a vida era injusta. Pensei basicamente em como tudo acontecera tão rápido em minha vida, e em como tudo parecia ser extremamente errado, antinatural. Se o mundo fosse um lugar saudável, sem monstros ou aberrações da natureza como eu, talvez as coisas parecessem um pouco mais certas, ou talvez não. O fato é que eu não entendia o propósito da nossa existência, os seres imortais, afinal de contas para quê servíamos? Nossa existência contrariava a ordem natural das coisas, e no fim de tudo, éramos apenas predadores, lutando entre sí por um espaço no mundo. E criaturas como Aro, eram apenas o que os humanos chamavam de ditador, só que com força e poder ilimitados e a eternidade a seu favor.
Esses pensamentos eram tão úteis quanto um guarda-chuvas furado no deserto, e eu me achava ainda mais tola por me importar com isso, justamente quando nada mais importava. Sentia-me quebrada e o silêncio apenas fazía com que tudo aumentasse de volume. Eu não queria mais escutar. Não queria mais pensar ou lembrar coisas que já se foram. Eu os perdi. Todos eles.
Esperei que viessem me buscar. Acho que lá no fundo eu anciava por isso, um fim para todo desespero que eu tentava conter sem êxito algum, uma represa rachada prestes a inundar tudo. Eu olhava para o fim do túnel e lá eu enxergava uma fraca luz. Talvez fosse o fogo do inferno me esperando, e Aro não o deixaria esperar por mim muito mais tempo. Eu já até sabia o que ele diria em seu discurso final, podia ouvi-lo sussurrando em meu ouvido suas palavras gentis sempre cheias de falsas intenções, podia ver seus olhos brilhando de satisfação e seu rosto macilento contorcendo-se naquela máscara de escárnio. Sim, eu esperava por ele, esperava pelo fim. Mas ninguém apareceu nas primeiras doze horas, e isso me fez pensar sobre algo que Alec tinha me dito antes da fuga. Outra coisa inútil que ficava rodando e rodando em minha mente sem que eu concedesse minha permissão.
“Aro está tendo problemas internos, os novos membros não estão cooperando tanto quanto ele gostaria.” Essas palavras iam e vinham, remexendo-se insistentemente dentro de mim, e com elas vinha aquela sensação, como se deixassem um rastro, clamando para que eu o seguisse. Eu sabia o que era, e queria mais do que nunca ignorá-la. A mesma sensação que eu sentia toda vez que sonhava com Aro na campina, uma inquietude, uma coceira irritante em minha mente. Naquela noite, depois de muito tempo, eu sonhei de novo. Eu estava na campina, aquele mar verdejante que nunca tinha um fim. As vozes de Carliste e de meu pai soavam longe, eu não podia vê-los. A risada felina de Aro trovejou ao meu redor, memórias turvas que dissipavam-se antes mesmo de ganharem alguma coerência. Eu sabia que estava sonhando. Eu sabia que fecharia meus olhos, e quando os abrisse eu o veria me encarando. Mas não eram os olhos astutos de Aro que me fitavam quando abri meus olhos, e eu demorei algum tempo até reconhecer o rosto anguloso e rígido que pairava diante de mim.
Zafrina, tal como eu me lembrava dela, olhava-me paciente, uma polidez que não condizia com suas feições selvagens e enérgicas. Eu estava mesmo sonhando, mas algo naquele sonho soave-me um tanto fora do normal.
- Zafrina. – Cumprimentei, e me espantou o fato de eu ainda ser capaz de sorrir, mesmo que em um sonho. Ela me olhava serenamente, sua imagem era como uma aparição.
- Você cresceu criança. – Disse ela com sua voz grave.
- É, eu cresci. – Olhei para minhas mãos. Era estranho, havia algo de errado naquele sonho, eu sentia isso de um modo muito pessoal. Uma sensação que eu conhecia muito bem.
– Zafrina, eu não estou sonhando não é mesmo? – Perguntei.
- Não minha criança, você não está sonhando. – Respondeu ela calmamente. Pensei um pouco sobre aquilo, mas não foi preciso muito para eu compreender o que estava acontecendo.
- Era você. – Suspirei. – Sempre foi você.
- Sim, era eu na sua mente esse tempo todo. – Zafrina olhou em volta e quando segui seu olhar eu pude ver todos alí. Minha mãe, meu pai, Alice, Jasper, Carlisle, Esme, Rosalie, Emmet, Jacob... Fantasmas sem forma girando em volta de mim.
- Por quê Zafrina? Por quê tem feito isso comigo? Você quase me enlouqueceu. – Fechei meus olhos, doía olhar para aquelas imagens desfocadas do que um dia tinha sido toda minha vida.
- Por quê era preciso criança, você precisava saber a verdade. – Disse ela.
- Que verdade? Sobre Aro? Sobre os Volturi? – Era tudo perturbadoramente real, a campina parecia estar bem alí, e isso fazia tudo parecer mais assustador, como um labirinto sem entrada nem saída, e a perspectiva de que todo aquele pesadelo era real, deixava um buraco dentro de mim.
- Você precisava saber a verdade sobre mim. Eu estou aqui Nessie, em Volterra. – Zafrina olhou em volta mais uma vez, e novamente o cenário mudou. A campina sumiu, e todo o verde desbotou até virar cinza. E havia tanta tristeza naquele novo cenário, tanta desolação. Eu podia sentir no ar, como se uma fumaça tóxica pairasse sobre nossas cabeças. Zafrina caminhou por entre os pilares de pedra esculpida, seus pés estavam descalços e suas roupas puídas e sujas. Eu a segui, observando os detalhes do saguão principal dos Volturi.
- Como você faz isso Zafrina? – Perguntei, perplexa com a exatidão de suas ilusões. – Eu estava do outro lado do globo.
- Não consigo fazer isso sempre, nem com qualquer pessoa. É por isso que tinha de ser você, Nessie. – Ela virou de frente para mim e pegou minhas mãos, a textura suave me sobressaltou. Eu esperava que, se eu tocasse nela, talvez ela se desvaneceria em uma nuvem de fumaça. Mas ela estava alí, perfeitamente palpável a minha frente.
- É incrível. – Sussurrei.
- Nossos poderes são similares, por isso tenho essa ligação com você. Eu não seria capaz de me conectar com ninguém a esse nível. – Ela me olhou nos olhos, como se procurasse alguma coisa neles.
- Meus poderes não são nem de longe tão abrangente quanto os seus. Bem, ultimamente eles têm se desenvolvido, mas... – Eu parei, percebendo a verdade em minha palavras. Verdade que até então eu não tinha me dado conta. – Foi você também? Na Floresta, quando eu e Jacob lutamos contra Félix e Heidi? Foi você não foi? – Ela me olhou confusa por um momento, ponderando minhas palavras.
- Não fui eu Nessie, mas acho que sei como meus poderes influenciaram os seus. – Disse ela, sorrindo ternamente. – Como eu disse, nós temos dons muito parecidos, acredito que, quando começei a me conectar com você em sonhos, eu devo ter acelerado seu processo de desenvolvimento. Mas o que você fez naquela floresta, saiu de sua mente, não da minha. Eu só não entendo como se intensificou tão rápido. Expandir seus pensamentos para a mente de outras pessoas geralmente requer décadas de treinamento. – Ví sua face perfeita torcer-se num misto de admiração e espanto. Eu tinha uma boa idéia do que ajudou meus poderes a se expandir tão depressa. Na verdade, eu tinha duas teorias. O veneno de meu pai e o sangue humano. Duas coisas extremamente poderosas para um imortal.
As coisas faziam mais sentido agora, mas ao contrário do que eu esperava, esse novo entendimento não me fez sentir melhor. Eu duvidava que existisse algo que fosse capaz de fazer eu me sentir melhor.
- Você está tão triste criança, seu coração chora. – Falou Zafrina no tom brando que ela sempre usava comigo. Me espantou o fato dela sentir isso em minha mente, e eu começei a entender o que ela queria dizer quando falava em nossa “conexão”. Era algo além de simples ilusões introduzindo-se em minha mente, era como se a realidade escorregasse para os pensamentos dela e então chegassem a mim. Era tão complexo e inacreditável... Se eu ainda fosse a Renesmee que costumava ser, eu ficaria excitada com a perspectiva de aprender com ela, aperfeiçoar meus dons. Mas agora, agora não havia muitas coisas que eu gostaria de fazer, e se eu ainda respirava, era por quê eu mantinha secretamente dentro de mim a esperança de vingar minha família. Esperança que se frustrava a cada minuto.
- Eu estou bem Zafrina. – Menti. – Eu vou fazer tudo ficar bem. – Outra promessa que eu sabia que não poderia cumprir, mas que escolha eu tinha? Eu precisava dar à ela algo em que se apoiar, uma parte da esperança que eu não tinha.
- Eu sei criança, você vai salvar a todos nós. É seu destino nos salvar. – Zafrina voltou a caminhar pela ampla câmara vazia, seus pés mal tocavam o chão. Eu queria muito dizer a ela a verdade, que eu estava condenada assim como ela e todos os outros, mas eu não podia admitir, não conseguia dizer as palavras em voz alta, era muito para mim.
- Onde estamos indo Zafrina? – Perguntei.
- Vou te levar até os outros. – Disse ela. – Eles também esperam por você.
- Outros? Alec disse que estavam quase todos mortos. – Não fazia sentido, por quê Aro correria o risco de manter mais prisioneiros aqui, no covil das cobras? Ela não respondeu, apenas deslizou pelas reentrâncias da galeria, descendo cada vez mais fundo nos túneis que, certamente, eram intersecções do túnel que levava a minha cela do lado oposto. Havia no fim daquele túnel lúgubre e estreito, na extremidade mais longícua e mal iluminada, uma porta de ferro, com ferrolhos da grossura de meus braços. Zafrina parou a dez metros da porta e virou-se para mim.
- Vá até lá criança, ela está te esperando. – Disse ela com um leve sorriso na face perfeita.
- Quem Zafrina, quem está lá? – Perguntei, sentindo um tremor subir por minhas pernas.
- Ela me disse que você viria nos salvar. Vá até ela Nessie. – Ela segurou minha mão levemente e depois voltou pelo caminho em que viemos. Olhei para a porta, tentei sentir algum indício de quem me esperava, mas só havia o silêncio. Tive que me lembrar que aquilo era uma ilusão afinal de contas, por mais real que parecesse. Nada poderia me acontecer de fato, era apenas Zafrina em minha mente, tentando me dizer algo.
Eu pisquei meus olhos e já estava alí, parada em frente a porta, girando o ferrolho maciço com minhas mãos desnudas. O trinco cedeu e o rangido das dobradiças ecoou pelo espaço vazio. Real demais.
Ela estava bem alí, perfeitamente imóvel no meio do quarto frio e úmido, uma réplica de minha própria cela. Senti meu coração martelar em meus ouvidos quando coloquei meus olhos em seu rosto frágil e miúdo. Alice sorriu para mim e as lágrimas rolaram por meu rosto sem que eu pudesse contê-las. Eu queria abraçá-la, tomá-la em meus braços e nunca mais deixar que ela se afastasse de mim, mas meu corpo começou a se contorcer de uma forma que eu não conseguia controlar e a imagem doce e frágil de Alice foi se desvanescendo diante de meus olhos. Eu gritei para ela voltar, me sacudi tentando fazer meu corpo ir para frente, mas eu sentia-me presa, como se um abraço de ferro estivesse me segurando, contendo minha vontade de alcançá-la.
Ela se foi. No lugar em que ela estava havia apenas a parede tosca e úmida de minha cela. Eu começei a chorar, não queria ter acordado antes de falar com ela, antes de saber se ela estava bem, se realmente estava aqui. Um dedo frio e suave tocou meu rosto, limpando as lágrimas de meus olhos. Os braços que me trouxeram de volta da ilusão de Zafrina estavam bem alí, em volta de mim, amparando-me no chão de pedra.
- Alec – Sussurrei. Ele sorriu pra mim e afagou meu rosto mais uma vez. As lágrimas rolaram incontroláveis de meus olhos e eu já não sabia pelo que eu estava chorando. Acho que chorei por todas as coisas que perdi, por tudo que passei desde o dia em que saí de casa com Jacob. Aquelas lágrimas continham todo desespero que eu havia sufocado dentro de mim, e naquela hora, eu agradeci silenciosamente por Alec estar alí. De alguma forma ele tornava minha dor mais suportável, e eu me senti aliviada por ele ainda estar vivo e por eu não ter sido a responsável por sua morte.
- Shhhh, está tudo bem. Eu vou te tirar daqui. – Disse ele em meu ouvido. Ele extreitou seus braços em mim, e a força dele pareceu me fortificar também. Pela primeira vez em muito tempo, eu senti meu corpo reagir. Senti minha velha sede de justiça despertar como um vulcão adormecido. Se Alice e Zafrina estavam alí, se contavam comigo para salvar a todos nós, eu não falharia com elas novamente. Eu ia arrumar um jeito de nos tirar dalí.
Capítulo 22 – A Queda Das Testemunhas - Parte 1
- Você precisa me levar até ela. Tem que me levar até Alice. – Meus sussurros reverberavam pelas paredes de pedra, de alguma forma soavam mais suplicantes do que exigentes. Eu não me importei.
- Sabe que eu não posso fazer isso. – disse Alec consternado. – Eu não fui perdoado, Aro apenas me ofereceu uma segunda chance por quê valoriza demais minhas habilidades, mas está de olho em mim. Caius está furioso comigo, se não temesse tanto meus poderes, ele já teria me destruído pessoalmente. – A desesperança esgueirava-se nos cantos úmidos de minha cela, mas eu não podia me deixar vencer. Tinha que arrumar um jeito de chegar até Alice, falar com ela. Eu precisava mais do que tudo ouví-la dizer que os outros estavam bem, foragidos talvez. Precisava contar com isso, era uma fé cega que queimava fragilmente em meu peito, dando-me forças para não sucumbir naquele chão imundo.
- Eu nem ao menos sei aonde Aro a escondeu. – Alec suspirou, recostando-se nas grades maciças. Eu estava feliz por vê-lo vivo de qualquer forma, por Aro ser tão egoísta a ponto de perdoar a traíção dele apenas por não querer perder a vantagem de seus poderes. Sentia-me mal por pedir que colocasse sua vida em risco de novo, por mim, por minha família, mas que escolha eu tinha?
- Então leve-me até Zafrina. Aponte-me uma direção. – Eu andava de um lado para outro, cubrindo o espaço da cela apenas com dois passos, tentando inutilmente encontrar um modo de escapar. – Alec, eu agradeço muito o que fez por mim, e me odeio por estar te pedindo isso, mas eu não tenho escolha, e cada minuto que eu passo aqui, é mais um minuto que me separa de minha família. – Me aproximei de seu rosto perfeitamente liso, os olhos vermelhos prendendo-se em meu rosto com voracidade. – Você é minha última esperança. Por favor. – Eu sei que não deveria, e que essa era a coisa mais fútil e errada que eu já pensara em fazer, mas foi algo que me surpreendeu tanto quanto à ele. Talvez algo que eu mesma não esperava, brotando em mim silenciosamente, talvez um reflexo bruto do meu próprio medo, só sei que foi real. Eu me aproximei de seu rosto até sentir a respiração fraca e suave em minha pele, e minha consciência por um momento ficou muda. Meus olhos acompanharam tudo com uma frieza estarrecida, como se eu mesma não acreditasse que estava fazendo aquilo.
Senti os lábio frios e macios nos meus, tocando levemente minha pele, e o aroma doce e suave que me envolvia por todos os lados. Ví claramente cada nuance carmim ardendo em suas pupilas, encarando-me atônito daquele mar de sangue e imortalidade, e era como se por um momento eu pudesse ver todos os anos, décadas, todos os séculos da vida dele. Alec, quem é você?
Senti suas mãos em minhas costas, deixando um rastro tão frio por onde passavam, que chegava a me queimar. Minha boca se abriu em volta daqueles lábios frios, tão impossivelmente vivos, contradizendo a aparência rígida eles eram tão suaves quando seda.
Ele fechou os olhos, cerrando o fogo que ardia por tráz de suas pálpebras finas, ocultando de mim sua alma, que agora queimava silenciosa através de seu toque. O ar oscilou a minha volta, senti a parede de pedra em minhas costas, onde um segundo antes ele estava encostado. Seu corpo me pressionou contra a pedra lisa, e eu pude sentir seu peito rígido contra o meu. O calor me inundou, e ele vinha de dentro de mim, irradiando atravéz de minha pele. Sim, eu era mais quente que ele, mais macia, mais viva, embora ele nunca tivesse me parecido mais vivo que agora. Eu sentia o poder emanando dele, me envolvendo como um cazulo, todos os anos vividos, todas as coisas que ele viu, todo mistério perdendo-se em mim como o gelo que se derrete sob o sol.
Sim Alec, eu sei quem você é. Nos encontramos agora...
Foi como uma brasa queimando contra o céu noturno, um fogo poderoso que consumiu muitas coisas em poucos minutos. Mas então o mundo nos arrastou de volta para a realidade, onde tudo era inabalavelmente mais frio e escuro. Na verdade, uma voz nos repeliu, fazendo toda mágica apagar-se como cores que desbotam com a chuva.
- Mais que coisa maravilhosa! Nosso Alec se apaixonou finalmente. – Aqueles olhos...
Aqueles malditos olhos bem alí, escarnecendo de nós à três metros. Aro sorria languidamente, com seu rosto macilento torcendo-se naquela expressão falsamente gentil, enganosamente bondosa. Alec segurou levemente minha mão, como se tentasse me dizer para manter a calma. Meus músculos retesaram-se no momento em que senti seu cheiro, no segundo em que ouvi sua voz prepotente. A única coisa em que eu conseguia pensar era numa forma de romper aquelas barras de ferro que me separavam do tirano infeliz. E não me importava que Jane – ao lado de seu tão amado mestre – fosse fazer eu me contorcer no chão antes mesmo que eu tocasse em Aro. Eu queria uma chance de me acertar com ela também.
- Não é maravilhoso minha querida Jane. A adorável Nessie entrou para família. – Aro deliciava-se, Jane encarava Alec com pura revolta, vincando suas feições angelicais.
Então era isso, eu pensei. Meu julgamento tinha finalmente chegado. Só que agora eu não o queria. Fiquei olhando aquele rosto poeirento, lembrando dos sonhos, revivendo as lembranças de quando eu era apenas uma criança assustada com a perspectiva de causar a morte de meus pais, de minha família.
- Então é isso Aro? – Falei, sentindo minhas cordas vocais tremerem. – Você venceu? Já tem tudo que quer? – Aro fitava-me com uma expressão profundamente satisfeita. O ódio borbulhava dentro de mim como um caldeirão prestes a derramar.
- Abra Jane querida. – Aro continuou a me fitar enquanto Jane destrancava a grade que mais cedo tinha sido destrancada por Alec. A grade rangeu, o ferro maciço arrastou-se na pedra nua. Alec estreitou sua mão na minha, seu rosto estava impassível, nenhuma expressão legível em suas faces de porcelana.
- Venha Nessie, vamos dar uma volta. – Disse Aro, estendendo suas mãos lívidas para mim.
- Você não vai me tocar, não vai entrar em minha mente. – Grunhi.
- Ora, está sendo grosseira. Mas se você prefere assim, que assim seja. – Ele baixou a mão e com movimentos lentos ele se virou, caminhando como um espectro pelo corredor escuro, o manto negro misturando-se as sombras. Parou a meio passo quando percebeu que eu não o estava seguindo.
- Venha minha querida, não há nada a temer. – Aro aguardava-me de costas, como se não houvesse nada que pudesse ferí-lo em sua retaguarda. Jane e Alec se encaravam, presos em suas discuções silenciosas. Soltei a mão de Alec relutante, ele me lançou um olhar aturdido por um instante, depois deixou-me ir. Jane seguiu logo atrás de mim, com Alec em seus calcanhares. Coloquei-me ao lado de Aro, usando toda força que me sobrara para não rasgar sua garganta. Ele sorriu para mim daquele jeito que eu odiava, uma cobra querendo passar-se por uma centopéia fofinha.
- Isso. – Cantarolou ele satisfeito. – Vê? Nada tem a temer ao meu lado querida. – Ele sorriu, seu rosto pétreo enrugando-se. – Agora vamos, temos um longo dia nos aguardando hoje. E não se preocupe, terá suas respostas antes do anoitecer.
Aro caminhava sossegadamente entre os túneis mal iluminados, subindo de vez em quando um lance de escadas escorregadias, ou embrenhando-se atravéz de portas de carvalho maciças. Por fim, quando já tínhamos subido dois andares, a porta de um moderno elevador brilhou contra a luz fraca de um saguão limpo e arejado. Compreendi que aquela grande câmara estendia-se no subsolo muitos metros mais do que aparentava. Haviam alí inúmeros patamares de pedra, entrando no solo cada vez mais fundo. Entramos todos no elevador. Minha mente estava aturdida, mas estranhamente silenciosa. Eu apenas observava tudo com uma clareza perturbadora. Não sentia medo, não sentia nada. O elevador subiu, parando suavemente dois andares acima. As portas metálicas se abriram, revelando outro saguão muito bem decorado, mais amplo e claro que o anterior. Assemelhava-se muito com a recepção de uma grande empresa, era sóbrio, discreto e sofisticado em seus detalhes. Mas não me detive neles, apenas segui Aro pelas portas duplas, que se abriram livremente, revelando um grande salão retangular, onde três majestosos tronos pairavam ao fundo. Então eu entendi. Era minha história, retrocedendo ao início. Meus pais caminharam por esse grande salão uma vez, pararam em frente a esses tronos, esperando o veredicto desse mesmo velho insolente a meu lado. Só que desta vez eu estava só, e não esperava nada.
Avistei a figura loura e extremamente pálida, sentado folgadamente no trono do lado direito. Caius se não me engano. Sim, com certesa era ele. Uma expressão mal humorada e revoltada praticamente esculpida em suas faces encovadas. Por todos os lados haviam vampiros, membros da guarda, postados rigidamente com seus mantos acinzentados nos cantos mais discretos do grande salão. Observando como estátuas vivas cada movimento que fazíamos. Marcus não estava alí, seu trono jazia vazio ao lado esquerdo do trono principal. Arrisquei uma olhada para tráz. Jane e Alec seguiam lado a lado, mas tão distantes quanto jamais estiveram. “Os gêmeos bruxos” como eram conhecidos, a poderosa ofensiva dos Volturi estava seriamente ameaçada. Como estaria a guarda agora? Sem Félix, a máquina de triturar vampiros, e com a confiança em Alec rachada? Eu ainda não tinha avistado “os novos membros” e isso de certa forma me perturbava. Aro não tinha o hábito de se cercar com o segundo escalão, e isso significava más notícias para mim e para aqueles foragidos que ainda lutavam por suas vidas onde quer que estejam.
Aro subiu os degraus até seu trono, e foi alí mesmo que eu parei. Jane seguiu-o, postando-se ao seu lado esquerdo. Alec hesitou ao meu lado por um momento, lançando-me um olhar de esguelha que eu tentei não devolver em público, depois subiu os degraus até Aro, colocando-se em seu posto, o qual ocupava a tantos anos. O braço direito de Aro. Será que Alec ainda era assim considerado? Depois de arquitetar minha fuga, depois de matar os membros de seu própria guarda?
Aro captou meu olhar, que seguia Alec em seus movimentos discretos. Deve ter visto a pergunta muda estampada em meu rosto.
- Não consideramos um crime se apaixonar, sabe. – Disse Aro, perscrutando meu rosto. Alec baixou a cabeça, ficou alí envergonhado, os olhos presos no chão. Eu podia sentir sua vergonha, sua exasperação.
- E o que você considera um crime Aro? – Minha voz soava fria e impassível. Caius encarou-me ferozmente de seu trono. Os olhos injetados destacando-se na pele poeirenta e pálida. Jane lançava-me o mesmo olhar, como se desejasse me queimar alí mesmo.
- Não vamos tratar desses assuntos agora. – Disse ele pensativo. – Primeiramente, vou te explicar por quê você está aqui. – Aro encostou-se imponente em seu trono e chamou numa voz baixa. – Demetri.
Um vulto negro passou por mim, e pousou como um fantasma ao meu lado. Olhei-o atônita. Demetri, o infalível rastreador Volturi, estava alí, a meu lado, as mãos juntas na frente de seu corpo imponente. O manto negro cubrindo-lhe por inteiro, os olhos pequenos e hostis esperando as ordens do mestre.
- Traga minha querida amazôna até aqui, creio que Renesmee adorará revê-la. – Demetri assentiu, sem dizer palavra. – E diga à Willian que quero vê-lo. Agora.
Demetri saiu, deixando novamente apenas seu rastro para tráz, um vulto negro na pálida luz daquela câmara. Eu não me lembrava de nenhum Willian na guarda Volturi, mas isso logo saiu de minha mente, dando espaço à perspectiva de ver Zafrina novamente, depois de tanto tempo tendo-a apenas em meus sonhos, em minha mente.
- Agora, querida Renesmee, creio que tenho algumas explicações para lhe dar. – Caius e Jane lançaram o mesmo olhar indignado à Aro, mas foi Caius quem falou:
- Explicações Aro? Desde quando essa laia merece explicação? Ela não é diferente dos outros híbridos. – Caius torceu o nariz, e por um momento eu achei tão cômica a expressão de seu rosto arrogantemente afetado, que não pude conter o esgar que impregnou meu riso. A som saiu estranho, divertido, e ecoou pelas paredes de pedra mais alto do que eu notara. Jane deu um passo em minha direção, e eu já estava em guarda quando a voz de Aro restringiu-a.
- Acalme-se Jane querida. – Sussurrou Aro delicadamente, como se cantasse o nome dela. Jane voltou para sua posição formal, seus olhos me penetrando como facas. Alec estava à meio passo de impedir Jane, de modo que ele também voltou a seu posto, suas feições delicadas mais ameaçadoras do que eu jamais as vira. – Tenho certesa que Renesmee não quis desrespeitar Caius. Mas devo-lhe dizer meu irmão, você fica realmente engraçado quando está assim tão atormentado. – Aro tocou levemente as costas da mão de Caius que pairavam tensas no braço de seu trono, uma risadinha marota brincando nos lábios de Aro. Será que aquela falsidade irritava Caius tanto quanto à mim? Eu podia apostar que sim.
- Bem, vamos ao ponto então. – Disse Aro, voltando a seu tom formal e brando. Ele juntou as mãos, como quem medita, e me lançou um olhar frio. – Você deve estar nos julgando horrivelmente depois de tudo que aconteceu. O caso é que, entenda, eu não tive escolha. – Havia muitas coisas que eu queria dizer à ele, mas sabia que era inútil e que eu precisava ouvir atentamente agora. Aro encenava uma expressão sofrida em seu rosto de pedra, mas o meu não oscilou nem por um momento. Ele continuou:
- Sabe, proteger nosso segredo, manter a ordem, limpar a bagunça... Tudo isso é muito trabalhoso para nós. Mas é tão absolutamente necessário minha querida. Você alguma vez já imaginou como seria nosso mundo, como seria o mundo humano, se nos descobrissem? Simplesmente é inconcebível, seria o caos. – Aro parou, seus olhos leitosos presos em minha expressão vazia. – Nossa espécie precisa ser controlada, eles precisam de um governo que estabeleça a ordem e faça valer e cumprir as regras. Por quê todos precisam de regras minha querida, até mesmo os imortais.
- E quantos tiveram que morrer por essas suas regras malucas Aro? – Interrompi, incapaz de conter as palavras que queimavam em minha garganta. – O que minha família fez de tão grave? – Aro ouvia minhas palavras com uma falsa indulgência que me enojava, eu procurava ignorar as reações coléricas de Caius e Jane à minhas acusações.
- Você não percebe criança? – Aro argumentou. – Para que possamos manter a ordem, nossa espécie precisa crer em nós. Precisam acreditar que nós somos a justiça, o que de fato somos. – Ele balanço a cabeça e seu rosto assumiu uma expressão pesarosa.
- Não sabe o quanto lamentei por ter que fazer isso, mas o destino da nossa espécie dependia dessa minha difícil decisão. Eu tive que silenciar aqueles que estavam cegos e enganados à nosso respeito. Por quê do contrário essa inverdade se espalharia, e sem um governo, o que seria de nós?
- Não minta pra mim! – Gritei, e toda guarda moveu-se a meu redor. Aro encarou-me surpreso, choque cruzando seu rosto apenas por um segundo. Alec estava a meu lado antes mesmo que eu percebesse. Dez mantos negros cercaram-me de todos os lados, Alec entre mim e eles, sibilando baixinho. Sua postura ameaçadora me assustou.
- Paz meus queridos. Voltem para seus afazeres. Renesmee e eu estamos apenas conversando. – A guarda dispersou-se como fumaça, Alec não se moveu de sua posição. Ví Jane grunhindo atrás de Aro, como se ele fosse uma coleira que a mantinha longe de mim, e de seu irmão desertor. – Alec, está tudo bem. Acalme-se. – Chamou Aro, seus olhos marejados traindo uma leve impaciência. Alec voltou a seu lugar silencioso, olhei para ele, nossos olhos se encontraram por um momento. Eu podia sentir sua tensão, mas não entendia o que o levava a se arristar tanto por mim. Voltei meus olhos para Aro, que me estudada atentamente.
- Você pode enganar qualquer outro imortal idiota com essa conversa tola de regras e inverdades. O que você queria aquela manhã em Forks era Alice. – Seus olhos faíscaram em mim por um segundo, toldando-se depois numa máscara de pesar, como se ele sentisse muito até mesmo por minha audácia. – Mas você cometeu um grande erro indo até lá Aro, sua ganância foi maior que sua inteligência, não é? Você perdeu, foi desmascarado, suas intenções foram expostas. Teria nos destruído por puro orgulho se minha mãe não estivesse nos protegendo. – Eu sorri enquanto dizia cada palavra, não de felicidade ou contentamento. Não havia humor naquele gesto. Havia apenas escárnio, indiferênça. – O que você não consegue aceitar é que você não nos engana mais. Não é o rei que todos acreditam que você seja. É um tirano, Aro. – A câmara foi engolfada por uma onda de silêncio, eu podia sentir os olhos de cada vampiro alí presente, presos em mim. Eles provavelmente nunca presenciaram alguém falando com Aro nesse tom, com tal atrevimento. Aro encarava-me e eu à ele, eu podia ver o ódio nadando na superfície de seus olhos, dificilmente contido. Seu rosto estava lívido. E então, de algum lugar da grande câmara, o som de palmas e uma risada gutural quebraram o silêncio. Olhei para tráz, em direção às portas duplas de carvalho. Parado alí havia uma figura alta, de porte elegante e fino. Os cabelos castanhos caíam ondulados até a base de seu pescoço. O rosto pálido de porcelana, os olhos grandes e zombeteiros ardiam em um vermelho vivo.
- Há há há. Parece que alguém não tem medo de você afinal, Aro. – Escarneceu o estranho. As palmas das mãos brancas batendo-se uma na outra em sinal de aprovação. – Vai ter que se esforçar mais com essa daí. – Ele caminou tranquilamente o espaço que nos separava, seu andar era elegante e ao mesmo tempo descontraído. Usava uma calça jeans escura e puída e uma camisa branca de botões completamente amassada, alguns botões faltavam, seu peito magro e delineado reluzia por baixo do tecido. Tinha uma beleza incomum, atraente, até mesmo entre imortais. Uma jovialidade que derramava-se de suas feições, uma estranha combinação de delicadesa e hostilidade. Caius bufou de seu trono, como se a presença daquele ser o chateasse profundamente. Aro apenas manteve-se taciturno, silencioso enquanto o recém chegado se aproximava.
O estranho aproximou-se de mim, seus olhos analisando-me minunciosamente. Eu podia dizer que ele estava gostando do que estava vendo, ou talvez aquele brilho fugaz de seus olhos fosse nada além de habitual. Ele curvou-se numa reverência diante de mim.
- Senhorita. – Pegou minha mão e beijou-a sem que eu o desse permissão, os lábios frios acariciando minha pele como plumas. – Sou Willian Volturi, encantado.
Capítulo 23 – A Queda Das Testemunhas - Parte 2
- Muito prazer Willian Volturi. Agora me largue antes que você fique sem seu braço. – Eu realmente não me importava com quem ele era ou o que fazia dele alguém especial, tão especial que mesmo sendo muito impopular entre a guarda, eles ainda assim o tratavam com um certo respeito. Até mesmo Aro demonstrava certa cautela com ele, isso foi algo que eu pude perceber de imediato, assim como percebi que aquele estranho imortal não tinha por Aro nenhum tipo de respeito ou até mesmo medo, como era comum por aqui. Era como se ele fosse um grande estorvo para todos, um aborrecimento andante com uma língua bastante afiada. Só me intrigava o fato dele mesmo se chamar de “Volturi”. Eu certamente não me lembrava de ter ouvido seu nome nas conversas de meus pais, nem mesmo nas conversas que tive com Alec.
- Você ouviu a moça. – A voz gelada de Alec chamou minha atenção para o fato de que Willian ainda não tinha me soltado. Ele me encarava num misto de curiosidade e divertimento, o que me irritava completamente. Willian ignorou o aviso, olhei para Alec pelo canto do olho. Seu rosto delicado estava imóvel, desprovido de qualquer expressão, mas seus olhos eram fogo puro, queimando silenciosamente em sua face juvenil. Eu me odiava cada vez mais por me sentir tão bem com as atitudes de Alec a meu respeito, mas era algo que eu não podia controlar. Uma satisfação muito íntima que florescia dentro de mim sem que eu permitisse ou se quer percebesse. De qualquer forma, acho que eu gostava disso, era bom saber que alguém estava cuidando de mim, mesmo que fosse algo tão inútil.
- Alec, Alec... Você nunca muda não é? – Cantarolou Willian, enquanto soltava minha mão delicadamente, como se estivesse acariciando-a. Um sorrisinho zombeteiro brincando em seus lábios finos e delicados. – Sempre com esse ar superior. Eu adoraria te reeducar um dia desses. – Willian suspirou, e seu rosto assumiu uma expressão de tédio. - Mas afinal de contas você foi fisgado, pensei que você fosse passar a eternidade virgem. Não, perdoe-me, não pensei isso. Na verdade eu pensei que você simplesmente não se interessava por esse tipo de coisas.
- Já chega Willian. – Aro interveio. Alec ouvia os insultos em total silêncio e indiferença. Eu sinceramente não estava entendendo nada, mas pelo que parecia, a rixa entre aqueles dois era muito mais velha que eu. Bem, isso por quê tecnicamente eu tinha apenas sete anos e meio.
- Quem é você afinal de contas? – Perguntei. Ele definitivamente não era o membro mais popular da guarda, mas nada nele propunha o estereótipo de um lutador. A verdade é que ele não parecia se encaixar em lugar algum, muito menos àquele lugar. Ele sorriu gentilmente para mim, de uma forma que nunca deixava o sarcasmo abandonar seu rosto. Que tipo estranho era aquele homem...
- Oh sim, que indelicadesa a minha. Estive tanto tempo vigiando você que me esqueci por um momento que não fomos devidamente apresentados. – Olhei-o atônita. Então eu também estava certa sobre isso. Havia alguém nos vigiando aquele tempo todo. – Eu já me sinto um amigo íntimo sabe...
- Willian, eu disse que já chega. – A voz rouca de Aro interrompeu-o outra vez, e o tom restritivo intrínseco em sua voz me alarmou. Olhei para Willian, que encarava Aro desafiadoramente, como se soubesse que não devia dizer algo, como se estivesse provocando, testando a paciência de Aro.
- Eu te chamei aqui com outra finalidade. Agora, por favor não perturbe minha hóspede. Estou tentando explicar à ela algumas coisas importantes.
- Está tentando convencê-la à ficar também Aro? – Provocou Willian, os braços esguios cruzados no peito, um olhar felino nos olhos. – Apesar dos seus métodos tão convincentes, eu posso arriscar um palpite de que ela não vai ceder. – Quem diabos era aquele vampiro arrogante e presunçoso? Ele trabalhava para Aro, mas parecia desafiá-lo, eu diria até mesmo que o repudiava. Afinal o que ele pretendia desafiando-o daquela forma?
- A adorável Renesmee está aqui para compreender coisas que agora ela não compreende muito bem. – Corrigiu Aro, a impaciência tingindo sua voz.
- Ah eu acho que ela entende muito bem Aro. Mas vejamos o que você preparou para hoje, estou curioso. – Willian caminhou tranquilamente até o trono de Marcus, que até então estava vazio, e sentou-se preguiçosamente. Acho que minha exasperação estava sendo compartilhada por todos alí presentes. A audácia daquele rapaz ao sentar-se no trono de um dos anciões era nada além de chocante, para não dizer absurda. Caius levantou-se num átimo, o rosto torcendo-se de raiva.
- Quem você pensa que é para sentar-se num trono Volturi? Levante-se já daí seu bastardo sujo. – Caius gritava descontroladamente para Willian, a guarda hesitando entre proteger Caius e permanecerem em seus postos. Willian levantou-se, escárnio toldando suas feições delicadas. Ele gargalhou na cara de Caius e disse:
- Quem sou eu Caius? Se alguém aqui tem direito de sentar nesse trono, esse alguém sou eu. – Esbravejou Willian, a tensão envolvendo todos como uma névoa densa. – Eu sou o herdeiro Volturi, o verdadeiro. Você e Aro são apenas dois velhos oportunistas que iludiram meu pai com suas conversas sobre leis e regras. Se ele não fosse tão burro teria destruído vocês a mil anos atráz.
- JÁ CHEGA WILLIAN !– Uma voz rouca e áspera ressonou no espaço vazio, ecoando nas abóbadas do teto como sinos de uma catedral. Olhei em direção à voz, e ví o manto negro arrastando-se no chão, caminhando com passos cansados em nossa direção. Marcus passou por mim sem ao menos me olhar, seus olhos leitosos estavam estagnados no rosto de Willian, que por sua vez assumira uma expressão amarga que em nada combinava com seu rosto de menino.
- Falando no demônio... – Murmurou Willian carrancudo. Senti meu peito arfar. Era isso mesmo que eu ouvira? Willian era filho de Marcus?
- O-oque? – Falei, sem me preocupar em intorromper a suposta reunião de família. – Ele é seu pai? – Willian suspirou, desceu lentamente os degraus e parou a meu lado. Olhou-me com aqueles olhos indiferentes que pareciam não se importar com nada.
- Não tanto quanto Edward é seu mas, sim. Tecnicamente eu fui criado por ele. – Disse ele desanimado. Olhei para Marcus, parado a alguns metros a frente. Um rosto marmóreo sem vida, sem expressão, e mesmo assim tão envelhecido e cansado, como se a eternidade o atormentasse profundamente. Olhava para Willian sem uma sentelha de emoção no olhar.
Caius ainda bufafa como um toro castrado, e Aro apenas observava pensativo o desenrolar daquela discução.
- Deixe-nos agora Willian. Quem você é não interessa a ninguém. – Disse Marcus indiferente, sentando-se em seu trono como se nada tivesse acontecido. Olhei para Willian, não devia ser agradável ouvir seu próprio pai lhe dizer aquilo, mas ele simplesmente virou as costas e saiu como um raio pela porta principal. Eu fiquei alí parada, encarando o espaço vazio onde Willian estivera um segundo atrás, sem saber o que pensar. Se Willian fora criado por Marcus, quem era a mãe dele? E por quê ele disse que era “o verdadeiro” herdeiro do trono? Pelo que eu sabia, os Volturi eram um clã com três líderes. Aro, Caius e Marcus estiveram juntos desde o início não é? Bem, eu já não tinha certesa de nada, mas a cada minuto a mais que eu permanecia alí, mais eu sentia o cheio de mentiras e armações exalando no ar como fumaça tóxica.
- Terá essas respostas mais tarde minha queria. Agora, é preciso que entenda sua situação. – Disse-me Aro, perscrutando meu rosto como se pudesse ler minha mente como meu pai costumava fazer. A lembrança doeu em meu peito, o rosto tão lindo e compassivo dançou por minha mente apenas por um segundo.
- O que quer dizer com “entender minha situação”? – Perguntei, sem me dar ao trabalho de olhá-lo nos olhos. Ao invéz disso observei Marcus, sentado em seu trono, absorto em seus próprios pensamentos, indiferente a todos que o rodeavam. Imaginei que tipo de pai ele teria sido para Willian.
- Refiro-me à sua sentença, é claro. – Eu e Alec trocamos um rápido olhar, os olhos dele traindo um desespero mudo, os meus, uma tristesa fatalística. Não havia nada que eu pudesse fazer se Aro me condenasse à morte. Não poderia fazer nada por Alice ou por Zafrina, não poderia procurar os outros, escondidos em vários cantos do mundo. Não poderia dizer à Alec que ele tem escolha, a escolha de ser bom, viver dignamente dentro da próprio eternidade. Respirei fundo, sentindo o peso das noites que não durmi me puxarem para baixo, ameaçando minha sanidade.
- Estou ouvindo. – Falei, e Aro rejubilou-se com minha deixa. Seria um saco ouvir aquele velho decrépito falar e falar de como ele era misericordioso e comprometido com as leis, e como ele lamentou ter tido que nos caçar e silenciar, mas o que mais eu poderia fazer senão ouvir?
- Claro claro. – Disse Aro sorrindo ternamente. – Mas permita-me fazer-lhe uma pergunta antes de começarmos, e aconselho-te à pensar bem na resposta minha querida, por quê ela pode salvá-la ou pode condená-la. – Aquilo definitivamente não era bom, o tom de voz demasiado gentil de Aro me alarmou. Eu devia saber que ele tinha seus truques para não me deixar sair dessa, só não pensei que fosse usá-los tão depressa. Alec estava tão rígido que realmente parecia uma estátua, me olhava silenciosamente, mas parecia ter um grito preso em sua garganta. Senti vontade de tocá-lo, segurar sua mão, como eu costumava fazer com Jacob enquanto caminhávamos pela floresta. Mas eu não podia pensar em Jacob, não se eu quisesse me manter firme, inteira. Esperei pacientemente até que Aro fizesse sua pergunta tão importante, mas quando ele a fez, ela veio em forma de acusação.
- Você vai me dizer agora onde seus pais estão escondidos! – Esbravejou Aro. O choque acertou-me em cheio e me deixou desorientada por um minuto. Eu não tinha certesa se tinha ouvido direito ou se estava delirando. Olhei-o atônita, esperando uma prova de que eu não estava ficando louca. Ao lado de Aro, Alec refletia minha própria exasperação, o choque cruzando suas faces como num espelho refletindo meu próprio rosto.
- O-oquê? – Gaguejei, confusa. Aro estudava meu rosto com ceticismo, de alguma forma ele acreditava que eu sabia onde meus pais estavam. Mas, Deus, eu nem tinha certesa de que eles estavam vivos. Eu não podia conter a onda de calor que me inundou, a pequena centelha de esperança que eu cultivava tão arduamente, de repente explodiu dentro de mim. Em algum lugar, de alguma forma, eles ainda viviam. Existia ainda uma chance de encontrá-los.
- Minha querida, nós sabemos sobre o esconderijo de Denali. Sabemos que estão sendo ajudados por aquele clã. Meu Eleazar ainda vive com aquelas mulheres, eu conheço a mente dele como a palma de minha mão. Sei também que foi ele quem os tirou de lá à tempo, infelizmente ele também conhece meus métodos. O que ele não entende é que essa fuga constante não levará à nada. Porém Demetri retornou hoje com péssimas novidades. Nós os perdemos e você vai nos dizer onde encontrá-los, você nos guiará até eles. – Aro parou, seus olhos cor de vinho estavam arregalado, como se ele pudesse me enxergar melhor se os abrisse bem, como se pudesse enxergar a verdade que ele procurava atravéz de mim. A cada palavra que ele pronunciava naquele italiano medieval, eu podia sentir meu coração pulsar. Não conseguia pensar em nada que eu pudesse dizer, não conseguia pensar em nada que não fosse meus pais, vivos, foragidos. Não sei quanto tempo se passou naquele silêncio, na verdade não sei dizer se todos estavam em silêncio de fato, ou se eu apenas os esqueci. Mergulhei em minhas suposições, planos, estratégias, maneiras infinitas de fugir para encontrá-los onde quer que estivessem. Eu era a Renesmee que sempre fora novamente, a alma que não aceitava ser contida ou controlada. A herdeira dos Cullen que faria de tudo para destruir a influência gananciosa de Aro. Contudo, eu sabia que precisava conter meu mau gênio se quisesse manter Aro falando, o que por sorte não era algo difícil.
- Não sei onde eles estão, mas posso descobrir se me prometer não machucá-los. Preciso saber quem restou, quem vocês ainda não encontraram. Se eu fosse meu pai, eu iria procurá-los, pedir ajuda, como eles fizeram com o clã Denali. – Não era de todo uma mentira, certamente meu pai e minha mãe fizeram isso quando se viram encurralados, mas meu blefe era exatamente esse, dizer a verdade para ocultar uma mentira. Alec observava-me consternado, ele sabia o que eu estava fazendo. Aro sorriu consigo mesmo por um momento, ponderando silenciosamente sobre minha colaboração tão repentina.
- Ela está mentindo. – Acusou-me Jane com um olhar felino. O rosto angelical que sempre estava transtornado de raiva.
- Eu sei minha querida. – Choramingou Aro, esfregando as mãos brancas. Meu coração descompassou, traindo meu estado de espírito. – Contudo, o que Renesmee disse não deixa de ser uma hipótese bastante provável. Durante semanas Demetri rastreou-os mudando de lugar constantemente, eles se separaram em certo ponto. Meu amigo Carlisle foi localizado na Irlanda com sua companheira há alguns dias atrás. Eles estão tentando nos confundir, nos dispersar, tendo em vista que temos apenas um rastreador. É possível que estejam tentando encontrar os outros sim, mas Renesmee querida, temo lhe dizer que não sobraram muitos para serem encontrados. – Meu coração afundou ao ouvir o nome de Carlisle, será que o pegaram, será que capturaram meus avós? E os outros, onde estariam os outros? Rosalie, Emmet, Jasper, Jacob...
Tentei manter meu rosto composto, minhas expressões ilegíveis, mas eu sabia que tudo estaria perdido se Aro me tocasse. Não importava o que eu fizesse, seria em vão se isso chegasse a acontecer, eu precisava desesperadamente ganhar tempo.
- Você não me deixa escolha criança. – Disse Aro, levantando-se pesadamente de seu trono. Eu sabia o que viria agora, Aro me tocaria e veria tudo que eu pretendia fazer, todos os planos que ainda nem tinham se formado por inteiro em minha mente, e então ele iria me condenar, pois veria também que não importava o que ele dissesse, eu jamais entregaria minha família para ele. Aro caminhou em minha direção sem nenhuma pressa, Jane em seus calcanhares como uma sombra. Alec estava apavorado, não sabia o que fazer, seus olhos quase pulavam das órbitas. Eu queria dizer-lhe que não se preocupasse, que estava tudo bem, e que não havia nada que ele ou qualquer outra pessoa pudesse fazer por mim agora.
Mas eu estava errada...
Capítulo 24 – Herança
Por um instante eu oscilei, senti-me nas bordas, prestes a cair, prestes a afundar. Por um instante eu ví o fim passando diante de meus olhos fechados. Por um instante eu perdi todas as minhas esperanças.
Senti as mãos frias de Aro pressionarem meu rosto, firmes, enérgicas... Senti a proximidade de seu rosto, o cheiro adocicado de sua pele, a suavidade que era ao mesmo tempo impressionante e aterrorisante. Ouvi o silêncio que nos rodeava, senti os olhos dos expectadores presos em nós, senti a tensão de alguns e a excitação de outros.
Eu não poderia dizer quanto tempo se passou antes de Aro soltar-me, apenas senti quando suas mãos frias deslizaram de meu rosto, caindo impotentes ao lado de seu corpo. Agradeci silenciosamente quando concluí que terminara, pelo menos não me machucou, pelo menos não senti nada como o ataque de Jane na clareira.
Lentamente abri meus olhos, com medo do que veria. Aro ainda estava parado em minha frente, à um passo de mim, a cabeça baixa, os olhos fixos e sem vida pregados no chão. Eu não sabia se aquilo era um efeito colateral das visões dele, talvez ele ficasse um pouco desorientado depois de penetrar na mente alheia, mas então olhei para Jane, e ela parecia tão... tão chocada. Mas por quê diabos Jane estaria chocada com algo? Seu rostinho angelical estava lívido, seus olhos que mais pareciam dois rubis, estavam absortos no rosto de Aro. Fiquei alí, encarando os rostos aturdidos de Aro e Jane, sem saber ao certo o que esperar ou o que pensar daquilo. Aro levantou a cabeça, devagar e pausadamente, até que seus olhos opacos encontraram-se com os meus. Senti um arrepio gelado percorrer meu corpo. A expressão no rosto dele era um misto de muitas coisas, medo, raiva, exasperação, choque, e finalmente satisfação. Podia ver as engrenagens de seu cérebro funcionando enquanto essas transformações ocorriam em seu rosto macilento bem diante de meus olhos.
Não consegui desviar os olhos do rosto de Aro, e de alguma forma aquilo estava me assustando. Não sabia o que esperar, não sabia o que pensar, apenas tinha uma vaga consciência de que algo estava errado.
- Você herdou os poderes dela! – Sussurrou Aro, encantado. Havia uma sentelha assustadoramente brilhante em seus olhos leitosos, e o jeito como ele pronunciou aquelas palavras me fez ficar ainda mais desconfiada. Que diabos ele queria dizer com aquilo? Eu não tinha feito absolutamente nada.
- O-oque disse? – Perguntei atônita. Aro encarava-me com um júbilo doentio, seus lábios pálidos esticando-se em sua face, sulcando as bochecas e os cantos dos olhos com pequenas rugas.
- Não, isso é impossível. Ela não é imune à mim, eu sou tão eficaz nela quanto em qualquer outra pessoa. – Disse Jane. Uma pontada de desespero e incredulidade tingindo sua voz aguda. Aro olhou para ela, os olhos astutos passando por seu rosto apenas por um segundo antes de se desviar para Caius e Marcus. Então ele caminhou até seu trono, onde sentou-se e ponderou em silêncio sobre algo que eu não fazia idéia do que era. Olhei para Alec, imóvel ao lado de Aro, seu rosto delicado estava retorcido com a mesma expressão confusa de Jane, mas seus olhos estavam levemente mais tranquilos. Para onde quer que eu olhasse, eu encontrava um par de olhos vermelhos a me encarar. Eu estava prestes a berrar minhas perguntas tão alto quanto eu conseguisse quando Aro falou:
- Pode ser uma variação, uma combinação dos poderes de ambos. – Aro ponderava sozinho, como se não houvesse mais ninguém alí. Marcus observava-o entediado e Caius esforçava-se para entender algo. Jane estava ainda no mesmo lugar, com a mesma máscara desolada em seu rosto, era como se seu orgulho estivesse ferido, como se a superioridade dela estivesse seriamente abalada.
- Não entendo Aro, o que tem a garota? – Retorquiu Caius, desistindo de tentar acompanhar o raciocínio precário de Aro.
- Não vê meu irmão? – Perguntou Aro. – Eu não pude entrar na mente dela. Ela está me bloqueando. – Senti novamente a sensação de soco no estômago. Quantas vezes mais eu iria sentir-me assim? – Ela herdou o poder da mãe dela e parece nem mesmo ser consciente disso. – Ele parou, analizando-me mais uma vez. - Mas por alguma razão ela não é imune à Alec ou a Jane como Bella, mas é imune à mim. Consegue ver a poesia nisso meu irmão? – Aro gargalhou. Senti a sensação de déja vú se instalar em minha mente, aquela mesma gargalhada felina explodindo no céu azul de meu sonho, aquela mesma sensação de profundo contentamento na voz daquele demônio. Ele só poderia estar ficando louco. Eu não tinha herdado nada além dos olhos marrons de minha mãe. Meus poderes não tinham nenhum traço do poder dela, eu não poderia tê-lo bloqueado assim como não fui capaz de bloquear Jane ou Alec. Contudo, não abri minha boca, por quê ao mesmo tempo que percebi que Aro estava terrivelmente enganado, percebi também que algo maravilhosamente útil havia acontecido. Ele não entrou em minha mente, ele não viu todas as coisas que vi e pensei. Ele ainda estava no escuro em relação à mim, e isso... Isso era um milagre impossívelmente bom e completamente incompreensível. Não importava. Eu estava à salvo por mais alguns instantes, e isso era mais do que eu tinha à dois minutos atrás.
- Conseguem ver a ironia nisso irmãos? – Ele continuou enquanto olhava desvairadamente em meu rosto. – A filha de Bella é a única que pode me dar o que quero, e eu sou o único que não pode tocá-la. – Aro suspirou, o medo lutando com a satisfação em seu rosto ofídico. Eu realmente não entendia a razão daquele júbilo. Ele deveria estar muito zangado com o fato de não poder arrancar de mim minhas lembranças e pensamentos, mas apesar da ponta de frustração em seu rosto, havia também uma satisfação soturna que eu não compreendia.
- Isso é possível Aro? – Perguntou Caius desconfiado. Aro encarou-me mais uma vez, perscrutando meu rosto.
- Creio que essa seja a única explicação. Contudo, vou mantê-la aqui para mais alguns testes. – Olhei atônita para ele, eu não gostava de como aquilo soava. – Ah, que ótimo. Finalmente. – Aro levantou-se, ignorando minha presença por um momento. Segui seu olhar até a porta principal e senti meu coração afundar quando vi a figura alta e esguia aproximando-se em passos firmes e hostis.
- Zafrina. – Soluçei, sentindo minha garganta se fechar. Ela esboçou um leve sorriso para mim e continuou caminhando vagarosamente com Demetri em seu encalço.
- Olá minha criança. – Saldou ela quando aproximou-se de mim. Eu queria abraçá-la, tocá-la como eu fazia antigamente e mandar meus pensamentos para ela daquela forma que só nós duas sabíamos fazer. Mas ao mesmo tempo senti uma tristesa profunda ao ver como ela estava abatida. Seus rosto sempre tão expressivo estava agora tão suavizado e vazio, como se todas as linhas de seu rosto tivessem se apagado gradualmente. Os olhos grandes e vermelhos estavam desbotados, como se o fogo que vivia alí tivesse sido soprado por uma brisa implacável.
- Minha querida. – Chamou Aro, interrompendo nosso momento. Nosso olhar silencioso se quebrou quando ela lentamente ergueu seus olhos até ele. – Agora vê como cuidei bem dela? Nunca deixo de cumprir uma promessa. – Gabou-se Aro, sentando-se novamente em seu trono. Zafrina não respondeu, fiquei olhando para ela, obrigando-me a memorizá-la enquanto Aro despejava sua ladaínha de sempre.
- ... mas vamos ao que interessa. – Pausou Aro. – Demetri, leve Renesmee à seus novos aposentos, creio que ela esteja bastante cansada. – Olhei de esguelha para Demetri e de volta para Aro. Atrás dele Alec moveu-se desconfortavelmente.
- Posso fazer isso. – Disse Alec. Aro esboçou um sorrisinho.
- É claro que pode. – Riu ele. – Mas preciso que você faça algo para mim. Ademais Alec, sossegue, Demetri cuidará bem de sua amada. – Senti o sangue agrupar-se em minhas bochechas. Por quê Aro sempre tinha que fazer piadas com aquilo? Alec era um assunto bastante delicado para mim. Eu não sei se gostava dele, mas tinha certesa de que não o amava, embora devesse minha vida à ele. Trocamos um olhar rápido e tímido, no qual eu pude ver claramente sua preocupação comigo, e o que tornava tudo mais embaraçoso é que aquele olhar só existia quando eu estava presente. Para todo o resto, Alec ainda era o vampiro perigoso que executava as leis de Aro. Eu era sua fraqueza e sentia-me mal por isso. Olhei para Zafrina mais uma vez, sem saber ao certo se voltaria a vê-la e de súbito algo me ocorreu.
- Quero ver Alice. – Meu pedido saiu mais como uma ordem, mas eu não me importava. Aro me encarou por um momento, desconcertado. Ele certamente não contava com aquilo, por quê em tese, eu não deveria saber sobre a prisão de Alice. O silêncio envolveu a cena mais uma vez, e eu me senti meio temerosa.
- Entendo. – Resmungou Aro. – Não há como guardar segredos entre essas paredes, não mais. – Brincou ele. Apesar do sorrisinho descontraído que Aro tentava manter em seu rosto, eu podia ver a insatisfação brilhando por trás de seus olhos. – Paciência minha cara Renesmee, paciência. Tudo em seu tempo. – Disse ele, e com um gesto vago, ordenou que Demetri me levasse. Senti as mão frias e impossívelmente rígidas envolverem meu braço e de imediato afastei-me dele.
- Sei onde é a saída. – Sibilei. O rosto imaculado de Demetri não demonstrou nenhum aborrecimento, seus olhos carmim pareciam ter vida própria, faíscaram em meu rosto por um segundo e depois voltaram-se adiante novamente. Uma paciência inabalável aquele alí tinha. Caminhei sem olhar para trás, sentindo a presença opressora de Demetri seguindo-me de perto. Quando deixamos o salão, e a luz perolada da antesala nos atingiu, me permiti analizá-lo um pouco mais e logo percebi que da primeira vez que o tinha visto, naquele mesmo dia mais cedo, eu realmente não tinha reparado nele, por quê parecia impossível que eu tivesse deixado passar o que estava vendo agora. Era terrível.
As mãos, o pescoço delicado, o rosto pálido... Demetri tinha cicratizes por toda parte. A imagem de Jasper voltou-me a mente nitidamente e com ela as histórias que explicavam as velhas cicatrizes. Mordidas de nossa espécie marcam para sempre, até mesmo nossa pele imortal. E sem que eu pensasse muito sobre aquilo, eu logo entendi de onde vinham aquelas marcas. Se os Volturi estavam caçando os aliados de minha família durante aquele tempo todo, em quantas lutas Demetri não esteve envolvido? Um rastreador sempre lidera o contingente ofensivo, está sempre na linha de frente, era bem óbvio de onde vinham aquelas marcas.
- Diga-me. – Falei, enquanto o elevador nos levava para o andar inferior. – Quem foi que colocou os dentes em você primeiro? Aposto que foi Amum, aquele turrão, ah pensando bem, acho que não. Ele era muito covarde para isso. Talvez tenha sido Garrett, ele não foi muito com a sua cara da última vez. – Eu realmente não deveria provocá-lo daquele jeito, até por quê Demetri sempre me deu medo. Ele me olhou, sem nenhuma expressão em seu rosto arruinado, e para minha surpresa falou:
- Zafrina. Ela foi a primeira. E quer saber quem foi o último?. – Ele ergueu o suéter e expôs uma cicatriz enorme em seu abdome. – O transmorfo que você tanto ama! - A cicatriz não tinha o formato de meia lua nem era meio brilhante na luz opaca, era uma linha grossa que começava no tórax e terminava onde começava a baínha da calça de Demetri. Eu podia imaginar a enorme pata dianteira passando de raspão alí, as garras que mais se pareciam com adagas, arranhando a pele de mármore. Podia imaginar o rugido bestial cortando o céu e os pêlos castanho avermelhados eriçando-se nas costas. Mas o que foi mais brutal e doloroso de se lembrar: o rosto dele. Tão nítido e perfeito que não pude deixar de evitar que uma lágrima escorrece pelo canto de meu olho. Eles tinham lutado. Demetri estava aqui. Ele só podia estar morto!
***
As velas tremeluziam, produzindo sombras nas paredes de pedra. Eu poderia imaginar milhares de formas alí, mas minha mente não conseguia se prender em nada, estava perdida num mar de dor, minha esperança tentando inutilmente não se afogar. A cama de dossel entalhado parecia mover-se sob mim, como num colchão de areia movediça. Eu sabia que estava me aproximando do desespero e que aquele era talvez o pior momento para deixar que isso acontecesse. Me enrosquei feito uma bola nos travesseiros de plumas e nos lençóis de seda, tentando não ceder àquela dor que já corroera muitas partes de mim. Sentia sede, minha garganta queimava, mas de alguma forma essa queimação parecia apenas um eco enfraquecido do fogo que consumia meu peito. As lembranças me voltavam como pancadas diretamente em meu peito, tirando-me o ar. “Finja que é meu coração”, disse ele uma vez, a floresta nos rodeando por todos os lados, a voz rouca cortando a noite, ele estava chateado. “Essa é a sensação. Como se meu coração tivesse sido espremido”. Sim Jake, eu sei como você se sentiu aquela noite, embora eu saiba de alguma forma que meu coração morreu com você esta noite.
Uma batida na porta, a frágil chama das velas iluminando o visitante inesperado que não esperou minha permissão para entrar. Eu estava de costas para a porta, mas ouvi seus passos descuidados demais para um imortal, aquele cheiro agridoce, aquela intromissão desprecavida. Quem mais poderia ser?
- O que quer Willian? – Resmunguei entre os travesseiros. Ele sentou-se na beirada da cama e nada disse. Ficou olhando para a chamas vassilantes das velas, escutando minha respiração descompassada, meu coração um pouco mais veloz que um coração humano...
Sentei-me também, apoiando minhas costas na cabeceira ricamente esculpida da cama em estilo italiano. Olhei-o silenciosamente, esperando que ele dissesse algo e desejando muito que ele não o fizesse. Ele apoiou os cotovelos nas pernas longas e levou as mãos ao queixo, parecia estar mergulhado em pensamentos. Pela primeira vez vi seu rosto desprovido daquela máscara de escárnio e o que restara era puro sofrimento, quase tão amargo quanto o meu.
- Esse costumava ser meu quarto quando eu era garoto. – Disse ele taciturno. – Lembro-me de esconder meus soldadinhos embaixo daquela táboa solta. – Ele apontou um relevo no assoalho envelhecido. – Ás vezes eu esquecia aonde os colocara, então minha mãe vinha e encontrava-os para mim. – Ele sorriu consigo mesmo, olhou para mim por um instante e percebendo minha pergunta muda ele disse:
- Ela está morta. Eu a matei.
Capítulo 25 – A História do Herdeiro
- Minha mãe chamava-se Dydime, era a rainha Volturi naquela época, quando Aro e Caius eram apenas conselheiros de meu pai. – Eu tinha muitas perguntas nadando na superfície de minha mente, perguntas que só se multiplicavam a medida em que Willian derramava suas palavras lentas e pesarosas no silêncio daquele quarto escuro. Ele olhou para mim, os olhos vermelhos cintilando como pérolas de sangue na penumbra e mais uma vez foi como se ele lesse a confusão em meus olhos. Um sorriso pesaroso brincou nos cantos de seus lábios, uma comoção constrangedora toldou seu rosto tão jovem e bonito.
- Não sei ao certo por quê estou lhe contando essas coisas tão velhas e inúteis, mas acho... Bem, talvez te ajude entender algumas coisas, ou talvez não ajude em nada. – Ele suspirou. – Mas se quer ouvir, eu te contarei tudo desde o começo. Quem sabe meu fardo seja um pouco atenuado, o que eu duvido... Entenda, nunca contei isso a ninguém. – Não sei muito bem o que me fez querer ouvir as histórias de Willian, ou entender um passado tão remoto de sua vida, talvez eu quisesse apenas não pensar em Jacob, não mais escutar sua voz me chamando. Talvez eu estivesse com tanto medo de encarar a realidade, que qualquer oferta que me protegesse, por poucos momentos, de toda minha dor, bem, eu aceitaria grata.
- Quero ouvir sua história Willian. Por favor, conte-me. – Sussurrei, com medo que minha voz falhasse e traísse o desespero que eu tentava conter arduamente dentro de mim. Ele acenou lentamente com a cabeça, como se procurasse uma forma de começar. Os cabelos castanhos cintilavam na escuridão, a luz das velas sombreava seu rosto delicado e impetuoso.
- Minha história começou muito antes do dia em que nasci. Marcus, meu pai, era o soberano dessas terras. Era um bom rei, protegia a cidade das guerras e dos saqueadores, protegia o povo contra um mau que parecia assolar toda Europa. De alguma forma Volterra era uma terra de paz em meio a guerras infindáveis, pestes de todos os tipos e uma miséria que se alastrava como o vento. O povo o amava, faziam comemorações e festanças em sua homenagem, até hoje eles comemoram o Dia de São Marcus pelas ruas de Volterra. Naquele tempo Aro e Caius eram os conselheiros de meu pai, ele os considerava sábios e dignos de confiança, os três viveram muitos anos juntos e por isso muitos pensam que eles estiveram juntos desde o início, mas Marcus sempre foi o mais antigo dos três e o governante de Volterra, por maior que fosse a amizade entre eles, meu pai era o líder desse povo e de toda guarda imortal que ele criou para proteger essa cidade e seus habitantes. Aro e Caius não concordavam com a modéstia de meu pai, achavam os desejos dele pequenos. Tudo que ele almejava era proteger o povo de Volterra dos perigos que nos cercavam, e isso era muito pouco para Aro, principalmente. Contudo, ele nunca tentou nada contra meu pai, era muito covarde para isso, apesar de ser o mais talentoso em toda corte. Meu pai deu à ele o cargo de comandante da guarda, em tempos de conflitos com nosso visinhos, era Aro quem ia negociar a paz ou aplicar e punição e erradicação dos problemas. Numa dessas viagens diplomáticas, Aro encontrou algo que ele realmente cobiçou. Algo que, mais tarde, o ajudaria a tomar o poder. Jane e Alec. – Ele pausou, desviando seu olhar das velas para meu rosto compenetrado. – Naquele tempo, os gêmeos eram apenas crianças de cinco ou seis anos. Aro não podia transformá-los, era terminantemente proibido dar a imortalidade a crianças, então Aro esperou. Em segredo ele visitava os gêmeos bruxos, como eram conhecidos em sua aldeia. Levava presentes para eles, prometia coisas para eles, estava encantado com os poderes deles, extasiado com a perspectiva de ter aqueles poderes ao seu alcance, a sua disposição. Acho que já pode imaginar por quê Jane é assim, insolente e arrogante. Os gêmeos cresceram rodeados pelos cuidados e mimos de Aro e meu pai nada soube a respeito até o dia em que Aro os transformou. Mas eu estou me adiantando. Nesse intervalo de tempo, quando Aro começou ter suas idéias de dominação com os gêmeos, aconteceu outra coisa muito importante. Minha mãe, Dydime, fez algo que colocou todos na corte em risco. Ela roubou o bebê de uma pobre viúva que vivia mendigando nos portões de Volterra, vendendo pêndulos e talismãs por preço de banana para turistas e comerciantes para comprar pão e trigo nas feirinhas do mercado. A mulher chamava-se Terezza, e era bem jovem na época. Gritou enlouquecida pelo seu bebê roubado nas praças da cidade durantes vários dias, até que Dydime a matou, para que não fosse descoberta. O povo logo esqueceu o incidente e a pobre artesã. – Willian parou, seus olhos se fecharam por um minuto. Ele inspirou uma golfada de ar e voltou seu olhar cansado para mim.
- Fui criado como um príncipe por Dydime. Marcus me amou também, apesar de ter desaprovado a atitude da esposa. Ela estava feliz, e isso o fazia esquecer e perdoar qualquer atitude impensada dela. Marcus a amava cegamente, fazia de tudo por ela, e Dydime era muito amargurada pelo fato de não poder ser mãe, um filho era tudo que ela sempre quis de Marcus, e a única coisa que ele não podia dar à ela. Eram parceiros a tantos séculos, e noite após noite Dydime queixava-se por não ter um filho. Era apenas questão de tempo até que ela tivesse a idéia que a levou ao roubo e ao assassinato de uma inocente. Marcus fechou os olhos para essa atrocidade, a felicidade de Dydime compensava qualquer ato imoral. Justo ele, o rei da justiça e igualdade... – Willian escarneceu, um sorriso amargo e maldoso cerrou seus lábios por um momento, me fez lembrar do “velho” Willian. Ele continuou:
- Bem, como disse, fui criado como um príncipe. Dydime me ensinou a ler e escrever em muitas línguas, ensinou-me artes e história antiga. Com a ajuda de Sulpícia e Athenodora, as esposas de Aro e Caius, ela me educou para ser um verdadeiro príncipe. Mas algo faltava em mim, eu sabia de alguma forma que não era filho daquela mulher branca e rígida como mármore polido. Eu olhava em minha volta e tudo que via eram rostos e olhos que nada tinham a ver com os meus. Dydime não me deixava sair do castelo, dizia que era perigoso para um príncipe andar entre o povo. Cresci entre essas paredes de pedra, nunca tinha visto as pessoas da cidade. Eu ouvia suas vozes altas e alegres ecoando nos pátios do castelo, e desejava conhecê-los. A Festa de São Marcus era uma tortura para mim, por quê eu ouvia as crianças correrem pelas ruas, ouvia o povo cantar e festejar, e tudo que eu queria era poder vê-los. – Willian parou, e por um momento o silêncio inundou o quarto, diminuindo seu tamanho, fazendo tudo parecer menor. As sombras nas paredes dançavam ao ritmo das velas, o cheiro da cera enchendo o ar. Minha mente estava vazia. Eu ouvia as palavras de Willian e imaginava todas aquelas coisas tão vividamente... Podia ver o jovem Willian encarcerado naquele castelo, o único humano no covil dos demônios. Podia ouvir os ecos das vozes vindas da praça central, as pessoas festejando o dia em que São Marcus livrou a cidade da peste de sugadores de sangue. Sentia-me vagar sem rumo por dentro daquela história que não era minha. Eu sentia a dor dele refletir em mim...
- Aos quinze anos, meu pai contou-me no que eu iria me transformar quando completasse dezoito anos. Disse que a imortalidade seria a herança que ele deixaria para mim. Eu fiquei horrorizado quando ele falou sobre o sangue, a matança inevitável, as vidas que eu teria de tomar durante toda eternidade. Dydime estava lá quando me contaram. Ela me olhava de um jeito... Como se eu fosse uma jóia preciosa, uma relíquia de valor inestimável. Eu via nos olhos dela todos os planos que ela tinha para mim. Queria que eu fosse o sucessor de meu pai, queria que eu conquistasse minhas próprias terras. Queria fazer de mim um monstro soberano de poder inigualável. E assim os anos passaram, e me foi ensinado tudo a respeito do destino que me esperava. Eu já entendia as diferenças que me separavam de meus pais e dos outros membros da corte. Eles eram imortais, e eu, apenas humano. Mas havia uma coisa, uma única coisa que eu ainda não entendia: como poderia eu ser filho daquela mulher? Como um ventre morto poderia gerar uma criança humana? Perguntei-lhe essas coisas milhares de vezes, e em todas elas Dydime me respondera a mesma coisa. “Você não nasceu de mim, mas nasceu para ser meu.” Pode imaginar como estava minha mente? Eu estava confuso, com medo e sentia uma raiva tão profunda dentro de mim que ás vezes assustava a mim mesmo. Sentia ódio o tempo inteiro. Eu queria apenas ser como todas as outras crianças, sem um destino terrível me espreitando no horizonte de minha curta vida. Eu queria ser mortal, sentir o frio do inverno e as brisas perfumadas da primavera. Queria andar pelas ruas de pedra de Volterra com o vento cálido do verão esquentando minha pele. Queria provar o vinho e o pão, queria ter filhos com uma mulher bonita e entregar a ela meu coração. Queria envelhecer vendo minha família prosperar. Mas tudo isso foi roubado de mim no momento em que Dydime me tirou dos braços de minha mãe mortal. – Willian cerrou os punhos, estremecendo. Olhei para ele, retribuindo seu olhar turvo. Ele suavizou seu rosto, respirando lentamente, desviando o olhar para as sombras na parede de pedra. – Mas eu não soube disso até muito tempo depois. A verdade é que nunca deixei de procurar as respostas para minhas infinitas perguntas, mas meus primeiros anos como imortal tomaram-me bastante tempo. Na noite do meu décimo oitavo aniversário, Dydime cumpriu sua promessa e me transformou. Apenas dois anos depois, quando já conseguia controlar razoavelmente minha sede, é que eu pude sair do castelo e caminhar pela minha cidade natal pela primeira vez. Aprendi a caçar, a me alimentar de humanos infratores, assassinos, ladrões... Mas para isso nós íamos caçar fora de Volterra, a quilômetros dos muros que protegiam a cidade de São Marcus. Não era permitido tirar nenhuma vida humana dentro desses portões, nem mesmo de meliantes, meu pai era bastante rigoroso com isso. Era uma grande ironia na verdade, o próprio chacal zelando pelo rebanho de ovelhas... – Escarneceu ele, seus olhos vermelhos enegrecidos pela penumbra se perderam por um momento, vendo coisas além do tempo e daquele quarto medieval. Estava absorto em suas próprias lembranças, preso por seus próprios fantasmas.
- Willian? – Sussurrei, tentando trazê-lo de volta para o presente. Ele olhou para mim envergonhado.
- Perdoe-me. O passado ainda tem o poder de me capturar ás vezes. Feridas profundas como as nossas não cicatrizam facilmente, talvez nem a eternidade seja o bastante para elas. – Ele suspirou, retomando sua expressão vazia. – Bem, onde eu estava? Ah sim, nos meus primeiros anos como imortal... Pois bem, o importante nessa parte da história é que você entenda os motivos que me levaram a matar minha própria mãe. – Estremeci, tentei dissipar de minha mente a imagem de minha mãe, obriguei-me a ouví-lo com atenção, ignorando a dor que lambia meu peito como chamas de um incêndio.
- Dydime me enojava, eu nunca fui capaz de amá-la como um filho. Era como se, cada vez que olhava para ela, eu visse a morte de minha mãe mortal, a mãe que eu jamais conheceria. E eu nem mesmo tinha provas de que fora ela quem matara minha mãe, mas sabia, de alguma forma, que a humana que me dera a vida já não vivia mais. Mesmo assim começei a procurar, as escondidas é claro. Perambulei pelas ruas da cidade perguntando e observando discretamente, até o dia em que ouvi um comerciante comentando sobre a cigana que lhe vendera um amuleto que não surtia efeito algum. Me aproximei dele no dia seguinte e ofereci bastante dinheiro por aquele amuleto, com a esperança de que ele me contasse algo mais. Comprei o amuleto e o homem disse que a tal cigana vivia perambulando pela cidade, vendendo amuletos e talismãs para os turistas, disse que ela era uma excelente tecelã também, mas que já havia morrido há muito tempo de tristeza pelo desaparecimento de seu bebê. Apontou-me a direção da velha cabana fora da cidade onde a jovem mulher vivia sozinha com seu filho sem pai. Fui até a tal cabana. Estava entregue as traças, um amontoado de destroços e ruínas. Revirei os restos dos indícios de sua existência, em cada pedaço de roupa, em cada tapeçaria inacabada, a cada grampo de cabelo que encontrei soterrados naqueles destroços, eu sentia que estava encontrando partes minhas, pedaços de mim que se perderam no tempo. De alguma forma eu soube que aquela tinha sido minha casa um dia. – Ele silenciou apenas por um momento, e antes que seu rosto oscilasse novamente ele continuou:
- Voltei para o castelo aquela noite e exigi a verdade de meus pais. Estava louco de ódio, inconformado por ter sido tomado dos braços de minha mãe para me transformar nessa coisa morta e imperecível. Marcus gritou comigo, tentava fazer-me ser razoável com Dydime, mas eu só conseguia gritar e gritar cada vez mais alto com ela. Dydime nem ao menos olhou-me nos olhos. Chamou-me de insolente, de filho ingrato... Lembro-me dos olhares de toda a corte. Estavam todos assustados com minha reação, acho que nunca imaginaram que eu reagiria tão mal à verdade que todos esconderam de mim desde o princípio. O único que parecia profundamente satisfeito com toda aquela confusão era Aro. Para ele qualquer discórdia dentro da casa de meu pai era vista como uma oportunidade a mais para seus planos. Naquele tempo Jane e Alec já estavam conosco, recém transformados, as mais novas armas de Aro infiltradas no exército de meu pai, a melhor chance que Aro já tivera de tomar o poder. Se eu não tivesse feito aquilo... Certamente seria uma questão de tempo até que Aro desse o primeiro golpe. Mas eu fiz isso por ele. – Willian levantou-se, fiquei encarando suas costas durante algum tempo, as sombras oscilando entre nós. Ele caminhou até a cômoda de madeira maciça, a luz das velas nos candelabros iluminou seu rosto delicado. Quando falou, sua voz estava sem vida.
- Havia conflitos entre nossa espécie em vários lugares próximos a Volterra. Era questão de tempo até que a guerrilha chegasse a nossos portões. Meu pai colocou o exército em movimento, ele não ficava muito tempo fora de casa, mas lembro-me que naquela noite ele fez questão de aplicar a punição nos líderes da ofensiva. Foi a primeira vez que Aro levou Jane e Alec para um combate. Era o teste que ele precisava para dar o primeiro passo contra meu pai. Os gêmeos bruxos exterminaram mais de cem vampiros recém criados e seus líderes, Aro estava em êxtase. Lembro-me de ter ficado no castelo, trancado neste mesmo quarto em que estamos agora, ouvindo o estalar das fogueiras que queimavam os restos dos inimigos de meu pai. Ouvi os gritos, trazidos pelo vento como uma serenata e tudo que conseguia pensar era no horror em que fui mergulhado. Aquela criatura que tinha tudo, ainda assim foi capaz de tirar a única coisa que eu tinha, minha humanidade. – Willian virou-se, encarando-me com um olhar impenetrável. – Não sei dizer-lhe o que exatamente me fez caminhar, cômodo após cômodo deste castelo, procurando por ela. Encontrei-a em seus aposentos, a esplendorosa raínha Dydime escovava seus cabelos negros como a noite quando adentrei silenciosamente pela porta. “Veio me acusar novamente filho ingrato?” Disse-me ela. Aproximei-me dela, sentindo todo meu ser sucumbir a uma espécie de letargia irreparável, não sentia mais nada naquele momento, estava verdadeiramente morto e a única coisa que queria, ela levá-la para a morte comigo. Abracei-a. Senti seu corpo pequeno em meus braços, o frio que emanava dela como um sopro de morte. Estreitei meus braços em vonta dela, envolvendo-a como uma mortalha. Ela não pronunciou nem uma palavra enquanto eu esmagava seu corpo, enquanto sentia seus membros de pedra quebrarem-se em minhas mãos e braços. Ela não disse adeus, nem disse que me amava ou odiava, apenas permaneceu em silêncio enquanto eu a matava, enquanto matava a mim mesmo junto com ela. Se eu pudesse chorar, creio que teria chorado aquela noite. – Ele suspirou, circundando os pilares de pedra que sustentavam a laje enegrecida. Parou alí, cruzando os braços no peito rígido e encarando-me com uma expressão profundamente vazia.
- Quando meu pai voltou, encontrou o castelo em chamas. Bem, pelo menos boa parte dele. Eu queimei os restos dela e permanecia alí, ao lado da pira que queimava como palha. A fumaça enchia meus pulmões, estava zonzo. Me tiraram de lá rapidamente, creio que se estivesse em condições de resistir, eu teria lutado para ficar alí com os restos dela, até que o fogo me consumisse também e lavasse meus pecados. Dydime já era apenas cinzas na tapeçaria italiana. Naquela noite, eu matei minha mãe e meu pai, poi Marcus morreu alí, olhando para as cinzas dela, o fogo que a queimou também o consumiu por inteiro. Ele nunca mais foi o mesmo. Quando saiu daquele quarto em chamas, Marcus era apenas uma casca oca. Foi o golpe fatal que entregou a liderança dos Volturi nas mãos de Aro. Marcus não queria mais nada sem ela, não tinha forças nem mesmo para querer a morte.
Mais tarde naquela mesma noite, perguntaram-me sobre o ocorrido. Meu pai agarrou-me pelos colarinhos exigindo saber quem fora o responsável por aquilo. Eu ví o ódio que senti nascer nos olhos dele e morrer no mesmo instante em que falei: “Fui eu, pai”. Ele me largou, cambaleando para tráz, desnorteado com a minha traição. Foi o tiro de misericórdia direto no coração de meu pai. – Eu podia sentir toda a dor do passado dele, tantas perdas, tantos erros, tanto sofrimento. Fiquei alí encarando-o na escuridão, tentando encontrar em seu rosto a força na qual ele se apoiou para se manter inteiro durante todos esses anos. Era um peso tão absurdamente grande... Um fardo impossível de ser carregado por um único homem.
- Me atacaram. – Olhei-o atônita. – Aro acusou-me de traição, disse que eu precisava ser punido. Mandou Alec e Jane para cima de mim e a única coisa que fiz, foi encará-los, esperando minha morte. Foi quando todos estacaram diante de meu poder. O poder que nem eu mesmo sabia que tinha. – Meu coração martelava, a história de Willian parecia nunca ter um fim e sempre me surpreendia. Que poder era esse?
- Todos os poderes são neutralizados pelo meu, eu simplesmente faço desaparecer qualquer dom que um imortal possa ter. Quando descobri o que podia fazer, não esperei Aro encontrar uma outra maneira de me destruir. Fugi de Volterra, deixei tudo para tráz. Meu pai e minha história amaldiçoada, levei comigo apenas a promessa de nunca voltar e o amuleto de minha mãe, aquele que comprei do velho comerciante. Em trezentos anos nunca ninguém foi capaz de me achar. Aro tentou por muito tempo, principalmente depois que trouxe Demetri para a guarda. Estive andando pelo mundo durante todos esses anos, procurando uma forma de me redimir. Acho que você deve estar pensando que caçar sua família a mando de Aro não é lá uma maneira muito honesta de me redimir. Mas acredite, eu não tive escolha. Aro encontrou um jeito de me punir afinal de contas, após trezentos anos ele encontrou um meio de me obrigar a ficar e usar meus poderes.
- Willian. – Intervi, minha voz reverberando pelos cantos do quarto escuro. Ele me olhou, confusão toldando sua face semivisível na penumbra. – Conte-me o que houve com minha família. Por favor, eu preciso saber. Sei que você esteve lá no dia em que me trouxeram para cá. Era o único jeito de Alice não ver vocês chegando, a única forma de meu pai não ver a mente de vocês. Você fez os poderes dele sumirem, não fez? Que outra forma haveria? Conte-me o que foi feito deles, por favor, por favor... – Eu estava chorando, e sentia que as lágrimas formavam uma força maciça dentro de mim, empurrando meu controle para fora, liquefazendo minhas defesas. Willian olhava-me envergonhado mas ao mesmo tempo emocionado por minhas palavras. Eu sentia que de alguma forma ele me ajudaria, mas tinha medo de estar me iludindo, afinal, havia ainda o bom motivo que Aro usou para trazê-lo até aqui, para obrigá-lo a serví-lo.
- Nós vamos te ajudar Nessie. – A voz suave emergiu da escuridão, fazendo as portas de carvalho estalarem. Alec adentrou o aposento como uma aparição, eu nem ao menos ouvi seus passos. Willian encarou-o com raiva e desprezo, mas Alec apenas retribuía meu olhar turvo. – Willian e eu vamos ajudá-la a sair daqui e encontrar sua família. – Alec olhou para Willian, que sorriu amargamente em resposta.
- E por quê devemos confiar em você, o pupilo prodígio de Aro? – Ameaçou Willian.
- Por quê eu sou o único que pode ajudá-los e por quê você não tem escolha. – Retorquiu Alec. Willian encarou-o contrariado, depois olhou para mim e perguntou:
- Você confia nele? – A pergunta ecoou dentro de minha mente como um sino, de novo e de novo e mais uma vez. Pensei em todas as coisas que vira Alec fazer por mim e em todas as coisas que sentia emanar dele, coisas que de alguma forma me alcançavam como laços e cercavam-me com uma confiança e segurança que eu só sentia com Jacob. Respirei fundo, sentindo o gosto das lágrimas em minha língua. Levantei, firmei meus pés no chão e disse para mim mesma que estava pronta para revidar.
- Sim.
Capítulo 26 – Pacto
- Vocês dois podem parar de discutir como um casal de velhas? – Retorqui. Aqueles dois discordavam em tudo e nem Willian nem Alec era suficientemente razoável para admitir seus erros. Os dois olharam para mim, Willian contrariado, Alec envergonhado. Era difícil de acreditar, mas eu sentia um carinho desproporcional ao tempo que os conhecia, especialmente Willian. Ele era um rapaz encantador, e não só por sua beleza inumana. Havia nele alguma coisa... Alguma força invizível que atraía as pessoas, despertando nelas sentimentos variados. Em boa parte delas, Willian só conseguia despertar raiva, mas eu sentia por ele um amor fraternal, algum tipo de ligação que se estabelece quase que imediatamente, eu agora queria tê-lo sempre comigo, como um irmão mais velho. Já Alec, bem... Alec era um assunto mais delicado. Diferente de Willian, ele não me olhava com olhos amigáveis ou de simpatia. Alec, em todo seu mistério e seriedade, conseguia me fazer temer diante do que via emanar dos olhos dele. Aqueles olhos ao mesmo tempo poderosos e frágeis. E também havia a inegável atração que eu sentia por ele, um sentimento um tanto turvo e confuso para mim, mas que me fazia desejar estar perto dele e me preocupar de uma forma quase impensável por sua vida e segurança. Se um dia tudo aquilo terminasse, eu sabia, como sabia que as estrelas estavam agora brilhando no céu, que Alec sempre estaria em meu coração e pensamento.
Suspirei, sentindo o peso de tantas coisas pairando sobre minha cabeça, sentindo inúmeras coisas emergirem em mim, sentimentos, medos, paixões, coisas que eu definitivamente teria que suportar e lidar sozinha. E aquela sombra densa, que ameaçava me engolir a qualquer momento, ainda estava alí, ao meu lado o tempo todo. O abismo gelado que se abriu em meu peito, permanecia silencioso dentro de mim, esperando o momento certo para me fazer sucumbir. E isso certamente aconteceria se eu jamais os visse de novo, se perdesse todos os motivos pelo qual vivi e me forçei a sobreviver até este momento. Tanto pelo que lutar, e quase nenhuma força restando em mim...
- Ei, você está bem? – Perguntou Willian naquele seu tom habitual, tentando disfarçar a preocupação de sua voz. Olhei para ele, e depois para Alec. Algo precisava ser feito antes que eles começassem a discutir de novo, e eu não tinha tempo para me lamentar. Não agora que a sorte estava um centímetro mais a meu lado.
- Estou bem, mas sabe de uma coisa? Vou ficar melhor ainda se pararem de brigar. Agora Willian, conte-me o que esteve fazendo desde que Aro o trouxe aqui, qualquer detalhe é importante. E Alec, conte-nos o que sabe sobre os planos de Aro e sobre Alice, onde ele está mantendo ela. – Os dois me encararam mudos por um momento. – Como é, desembuchem. – Willian bufou, mas sentou-se a minha frente, cruzando os braços sobre o peito.
- Aro me encontrou na Rússia, onde eu estava morando atualmente. Eu não esperava que ele estivesse na minha cola ainda, não depois de tanto tempo. Ele mandou, Félix, Heidi e Jane atrás de mim. Eu estava de guarda baixa, não esperava que ele ainda estivesse tão obstinado assim por meus poderes, e em geral sempre cubri bem meus rastros. Bem, resumindo, fui trazido até aqui sem saber nada a respeito do que tinha acontecido em Forks e nem que Aro estava tão desprestigiado com nossa espécie. Se tivesse ficado ciente do motim que vocês armaram, eu certamente teia aparecido. – Willian riu, mas algo em sua voz soou nervoza. Olhei bem para ele, o que o deixou constrangido. Eu tinha a sensação de que ele não estava contando tudo.
- Ok, vejamos se entendi. Aro demorou trezentos anos para te achar, para sequer achar uma pista sua, e de repente você relaxa sua guarda e é facilmente trazido até Volterra para cumprir ordens dele? – Willian desviou o olhar, seu rosto torceu-se numa expressão indecifrável.
- Conte a ela Willian, não há nada demais nisso. – Resmungou Alec, seu rosto perfeito completamente absorto nos detalhes da parede a sua frente. Willian o encarou.
- Não se meta na conversa seu almofadinha. – Falou Willian entredentes. Ele olhou para mim, meio constrangido e disse, suspirando:
- O nome dela é Lavínia. Nos conhecemos há dez anos na França, ela era só uma menina de dezessete anos na época, hoje é uma mulher linda.
- O-oquê? – Gaguejei.
- Sim, ela é humana. – Encarei-o perplexa. Willian se apaixonou por uma humana. Deus do céu, eu sabia melhor do que ninguém o sofrimento que isso causava em criaturas como nós.
- Mas você... Você não... O sangue, sabe...
- É difícil sim, admito, mas com o tempo eu me acostumei. E ela é tão linda, tão delicada... – Senti a adoração fluir na voz rouca dele, eu entendia perfeitamente como ele se sentia.
- E ela sabe sobre você? – perguntei.
- Sim, ela sabe de tudo. – Respondeu ele encarando o chão. Ficamos em silêncio por algum tempo e em minha mente as coisas se encaixaram de uma forma perturbadora. Aro estava usando Lavínia para obrigar Willian a ficar e usar seus poderes para acabar com cada um de nós. Esse era o estilo de Aro, o faro para pressionar o ponto fraco de cada um.
- Ele ameaçou matá-la? – Perguntei.
- Sim, e pelas regras tolas dele, isso não seria nada além que uma punição, afinal, ela é uma humana que conhece nosso segredo. – Disse ele taciturno. Eu vi o ódio brilhando em seus olhos vermelhos e isso fez algo vir a minha mente.
- Ela não se importa? Você sabe, do sangue. Pelos seus olhos dá pra perceber que a dieta vegetariana não faz seu tipo. – Não disse isso a ele como uma acusação, e ele compreendeu bem o que quis dizer, olhou-me tranquilamente e disse:
- Eu ainda sou a criatura que se odeia por ter que tirar vidas, mas eu também permaneci o homem que não fere inocentes. Lavínia sabe disso e me acha algum tipo de herói. – Ele sorriu sem nenhuma alegria em seus olhos. – Eu sei que me alimentar de assassinos, estupradores, traficantes e todo tipo de escória não faz de mim um ser melhor, mas faz eu me sentir menos culpado, livrando o mundo desse tipo de gente. Quem sabe um dia eu não resolva adotar o vegetarianismo também hein. – Brincou, dando uma piscadela. Sorri para ele, encorajando-o, embora eu mesma não fosse um modelo de fidelidade a causa.
- Eu só não entendo como conseguiram localizar você. – Perguntei mais para mim mesma do que para ele. Willian surpreendeu-me com uma resposta imediata.
- Ah mas eu sei exatamente. Aro nunca deixou de me procurar, mesmo sendo frustradas todas as suas tentativas de me localizar, ele nunca parou. Eu nunca fiquei num mesmo lugar mais que uma semana, e bem, quando conheci Lavinia na França, eu me demorei por lá uns bons três anos. Depois disso fomos juntos para Russía e Lavinia adorou o lugar. Comprei uma casa grande, do jeito que ela queria, e vivemos lá sete anos, e foi lá... O maldito rastreador de Aro me encontrou lá. Quando eu sentia alguma presença de nossa espécie eu tratava de inibir seus poderes logo, mas a Russía... Você não acreditaria na quantidade de vampiros que vivem por lá. Eu encontrei dezenas deles nos anos que passei em Moscou. Alguns de passagem, alguns poucos estabelecendo-se nas periferias da cidade. Durante os primeiros anos eu ficava alerta vinte e quatro horas, “desarmando” todos que se aproximavam demais. Mas depois de alguns anos eu relaxei, droga, eu realmente pensei que Aro tivesse me esquecido. Quando Félix, Heidi e Jane se aproximaram de mim, eu só pude sentí-los no último momento. Mas Aro foi esperto, eu conhecia muito bem o cheiro de Demetri, por isso ele não o mandou. Se Demetri tivesse se aproximado eu teria sido capaz de pegar Lavinia e me mandar de lá. Mas ele mandou Félix, por quê infelizmente meus poderes só funcionam com os dons, não surtem efeito algum com a força bruta. Neutralizei Jane na mesma hora, mas não pude fazer nada contra Félix, por quê a única coisa que aquele alí sabe fazer é desmembrar, morder, socar... Jane a pegou enquanto eu lutava com Félix, e bem, o resto você já sabe. Transmitiram-me a “oferta” de Aro e a única coisa que pude fazer foi me render, não suportaria vê-la morrer. – Willian me olhou, seus olhos grandes e infantis me encararam com um pedido de desculpa pelo que ele teve que fazer. Eu acenei para ele, tentando confortá-lo, tentando dizer que eu entendia. A cada nova parte que se encaixava em minha mente, eu sentia o ódio transbordando um pouco mais dentro de mim, e curiosamente esse ódio apenas me deixava mais fria. Sentia meu corpo fraco pela falta de sangue, mas meus músculos estavam retesados, eu não conseguia relaxar minha mandíbula. Meus nervos estavam no limite, não sabia o quanto mais poderia suportar antes de enlouquecer de vez. Se não fosse pela voz calma e ponderada que sussurrava para mim no fundo de minha mente, eu certamente teria surtado. Ela ficava me dizendo para ser forte, para não desistir de lutar, e eu dizia a ela: “eu não posso mais, não consigo mais...” Mas de alguma forma eu estava aqui, ainda de pé, ainda resistindo. Se todos caíssem, se tudo fosse exterminado, eu ainda estaria de pé. Até que meu coração pare de bater, era o que ele dizia.
O silêncio nos tomou mais uma vez, eu ouvia o leve farfalhar da respiração de Alec, sentado a meu lado, enquanto meu próprio coração trabalhava num ritmo cadenciado, enchendo o quarto com um som ritmado e constante. As velas eram apenas tocos diformes, pendendo nos castiçais de prata. Obriguei-me a quebrar aquele silêncio que nos cobria como um véu.
- O que Aro te pediu quando você chegou aqui Will? – Willian me encarou surpreso. Eu não sabia se era pela súbita quebra do silêncio ou se era pelo apelido informal que eu o chamara.
- Bem, eu estava muito louco de ódio. Foi tudo terrivelmente repentino para mim, ver esse lugar, andar novamente por esses corredores... A cada minuto que passo aqui eu ouço a voz dela me chamando, ouço as chamas consumirem o quarto dela, e o cheiro acre de seus restos queimando. Foi terrível voltar. Foi terrível encarar meu pai depois de tanto tempo, e ver que ele ainda é a casca oca vivendo na sombra de minha mãe, lamentando a ausência dela e minha traição por toda eternidade. Mas eu não tive escolha, tive que fazer um acordo com Aro pela segurança de Lavinia. Fiz ele trazê-la até aqui, onde eu podia ficar de olho nela, para certificar-me de que nada aconteceria a ela. E em troca eu faria o serviço. – Ele parou.
- Que serviço Will? – Perguntei impaciente. Ele suspirou e disse:
- Aro me entregou uma lista com dezesseis nomes. Eu teria que sair em busca daqueles imortais com Demetri e Félix e bem, fazer o meu truque mágico, se é que me entende. Mas além disso eu teria que ficar de olho em sua família, especialmente na vidente. Ela era a prioridade. Teria que bloqueá-la noite e dia. Imagina o quão difícil foi isso? Eu nem ao menos tinha a visto uma vez sequer, por isso precisamos nos aproximar, para que eu a sentisse... Como posso explicar? Olhe, entenda, é como se eu pegasse o “teor” dos dons de um imortal e o suprimisse. Mais ou menos como sentir o gosto dos poderes de alguém e simplesmente diluí-los. E foi isso que fiz com a vidente, depois com seu pai e sua mãe, e por último com o loiro das cicatrizes. – Explicou Willian. Busquei em minha mente as memórias que comprovavam aquilo.
- Lembro-me de uma certa inquietação de Alice há alguns anos. Lembro-me dela falando das visões que tinha com Aro, mas que pareciam fora de ordem, como se fossem repetições que voltaram para ela borradas e desconexas. Alguns dias depois ela disse que as visões tinham parado, simplesmente sumido. Ela só via coisas banais do dia a dia, como por exemplo o dia em que minha mãe e meu pai resolveram sair em uma segunda lua de mel. Alice estragou a surpresa deles, estava anciosa demais com a falta de novidades em suas visões. – Aquelas lembranças me machucavam mais do que eu deixava aparentar. Willian acenou, ponderando.
- Bem, a “interferência” inicial foi apenas minha presença. É uma coisa irritante, mas eu funciono como uma estação pirata ambulante. Mesmo quando não estou direcionando meus poderes a alguém, eu ainda interfiro um pouco, enfraquecendo ou falhando os poderes dos que estão a minha volta. Alec poderia tentar te cegar agora, e tudo que conseguiria fazer é embaçar sua visão, deixá-la turva. Quando consegui me aproximar e sentir o poder da vidente, eu cortei todas as visões dela e aos poucos fui liberando apenas uma parcela de seu poder. Seu pai não poderia ler minha mente tampouco, eu fico invisível a esse tipo de poder, por isso Aro me odeia tanto, telepatas ficam impotentes em minha presença. – Explicou ele. Eu escutava tudo com atenção total, até me esqueci por um momento de Alec ao meu lado. Ele estava silêncioso, era difícil saber se nos ouvia e se estava vagando, absorto em seus próprios pensamentos.
- Entendo. – Murmurei, sentindo as coisas se encaixarem em minha mente. Sem desanimar, continuei:
- E Zafrina? Por quê ela está aqui? – Olhei de Willian para Alec, os dois se entreolharam durante um momento, então Willian falou:
- Depois que neutralizei os poderes da vidente, a primeira coisa que Aro fez foi me mandar com Demetri atráz da amazona. – Willian parou, lançando um olhar taciturno para Alec.
- Mas por quê ela é tão importante para Aro? – Perguntei, seguindo o olhar de Willian para o rosto desconfortável de Alec. Ele olhou para mim, demorando-se um pouco em meus olhos e disse:
- Ela a quer Nessie – Suspirou. – Ele a quer como quer Alice. E ele as têm agora. – Porquê eu sentia que aquilo não me surpreendia? Alec continuou: - Aro é um colecionador, primeiro foi Jane e eu, depois Demetri. Alguns anos depois Renata. Exceto Willian, todos que Aro desejou ter, ele teve. Até que encontrou Alice e percebeu que ele a queria como não quis ninguém desde Jane e eu. Então ele viu você, uma criança imortal, metade humana, metade vampira. – Os olhos de Alec faíscaram em mim, como se ele próprio entendesse o desejo que ele mesmo tentava explicar. – Aro nunca viu nada tão surpreendente. Em todos os séculos que viveu, jamais pensou que encontraria alguém como você. A idéia o inebriava. E mesmo assim, você estava além do alcance dele. Longe dos planos que ele mesmo compôs sozinho enquanto meditava em seu trono, noite após noite. Ele precisava tê-la, precisava ter Alice, mas nada jamais foi tão intocável para ele. Vocês estavam tão além dos poderes dele. Quando saímos de Forks aquela manhã, nem a neve que cobria o solo era mais fria que o olhar de Aro. Ele fora derrotado, e não aprovou o gosto. Toda corte assistiu sua derrota, a batalha que ele travou sozinho apenas para conseguir uma pequena peça para compôr sua coleção. Mas Aro saiu de lá sem Alice, e com seus desejos multiplicados. Ele queria você também, seu pai viu isso na mente dele, por quê eu mesmo pude ver nos olhos dele. Durante todo o caminho me perguntei se minha vida valia a pena ser vivida daquela forma. Uma peça no grande tabuleiro de Aro. Matando por ele, tirando vidas e destruindo existências. Desmembrando clãs inteiros apenas para que ele tivesse mais uma iguaria em seu poder. E depois veio os anos seguintes, e toda caça as bruxas que Aro iniciou. Um por um eles os caçou, todos que se atreveram a testemunhar a seu favor, contra ele e seus desejos irrefreáveis, servindo-se do pretexto de que vocês espalhariam a discórdia em nosso mundo. Nesses sete anos, foram poucas as vezes que voltei para casa. Eu fui da América do Sul ao Egito, depois para o norte, para a Irlanda e de lá para Romênia. Cruzamos toda Europa atráz de nômades e seguimos para América, indo até as terras geladas do norte do Canadá. Minhas últimas ordens foram sua captura e escolta até aqui. – Alec parou, encarando novamente o vazio. Eu me sobressaltei com o discúrso dele. Havia dor naquelas palavras, havia descontentamento com ele mesmo, como se ele sofresse queimaduras internas. Lembrei-me das palavras dele no esconderijo no qual nos conhecemos. Ele disse que estava cansado da falta de propósito na qual ele tinha vivido toda sua vida. Usado por Aro desde que era apenas uma criança. Uma arma desde sempre. Apesar dele ter me tirado de minha família, eu não conseguia me obrigar a odiá-lo, não conseguia culpá-lo pelo que estava me acontecendo. Ele fora criado para cumprir ordens, para ser o que era, o que mais eu poderia dizer? Não era culpa dele...
- Bem, agora eu entendo muito melhor as coisas que aconteceram. Principalmente como os poderes de Alice e de meu pai não foram capazes de nos alertar sobre o perigo. – Falei, sentindo uma grande lacuna se preencher dentro de mim. Eu tinha que reconhecer que o plano de Aro era praticamente sem falhas, contudo...
Willian me observava silencioso, assim que surpreendi seu olhar me perguntei o que ele pretendia me ajudando.
- Por quê está fazendo isso? – Ele parecia já esperar a pergunta, pois sorriu levemente sem nenhum humor e disse:
- Acha mesmo que vou deixar Aro me usar? Acha que não fiz nada além de seguir as ordens dele durante todo esse tempo? – Perguntou, suas sobrancelhas arqueando em sua testa perfeitamente lisa. – Eu começei a agir assim que cheguei aqui. Eu cresci nesse castelo, conheço tudo aqui, tratei logo que traçar uma rota de fuga e assim que conseguir uma brecha eu vou pegar Lavínia e me mandar. Mas para isso eu precisava esperar você Ness. – ele sorriu-me. Estudei-o por um momento e disse:
- Até você me chamando assim? – Resmunguei. Willian deu de ombros
- Eu ouvi aquele transmorfo te chamando assim, você parecia gostar. – Desviei meu olhar rapidamente, tentado conter minha cara de nada e consequêntemente ví a expressão perturbada de Alec. Forçei a conversa a continuar para me salvar daquele desconforto.
- O que quer dizer com “precisava esperar por mim”? – Perguntei.
- Eu sabia que Aro ia te trazer pra cá e fazer todo o joguinho do “julgamento” pra ver se você cedia e ficava por aqui mesmo. E eu, bem, eu sabia que você ia mandar ele tomar naquele lugar. De início você não estava nos meus planos, mas depois do que aconteceu com Félix e Heidi...
- Você viu aquilo? – Perguntei perplexa.
- Eu estava com eles, fiquei esperando eles voltarem no nosso ponto de encontro, mas quando vi que eles estavam demorando demais, eu fui dar uma olhada no terreno. Encontrei as piras ainda acessas e você cuidando do cara todo arrebentado. Aí eu pensei que nós poderíamos unir forças, simpatizei com você. Você se parece muito comigo, fala o que quer e peita todo mundo, e o principal. Não tem medo de Aro. – Willian sorriu, e eu senti uma coisa estranha emanando dele. Nós imortais nossos muito sensitivos, muito abertos para esse tipo de coisa, e o que senti em Willian naquele momento era genuíno. Era um tipo de carinho fraternal mesmo, como se ele realmente se importasse comigo.
- Não seja idiota, ela não é nem de longe tão irritante quanto você, e também não é tão convencida ao ponto de se achar o máximo. – Resmungou Alec mau humorado.
- Olha quem fala, o principesinho de Aro. – Rebateu Willian.
- Eu não sou nada de Aro, e até onde eu me lembro, o príncipe aqui é você Willian – Provocou Alec. Eu me vi novamente no meio da discussão. Aqueles dois se pareciam muito com dois irmãos, implicando um com o outro em qualquer oportunidade.
- Ei, já chega gente. – Falei, sendo completamente ignorada. – EU DISSE QUE CHEGA! – Gritei. Os dois me encararam assustados, meus grito ainda ecoando pelo quarto amplo e praticamente vazio.
- E depois Willian? – Perguntei após me acalmar do último surto. – O que aconteceu depois?
- Bem, eu fiquei pensando num modo de me aproximar de você, de propor um trato, mas você não acreditaria em mim e eu ainda corria o risco de levar uma dentada. Então eu esperei e observei vocês, sempre escondendo minha presença. Quando você ligou para sua família eu fui obrigado a avizar Aro senão ele pensaria que eu estava traindo ele. Contei a ele o que houve e Ness, ele ficou muito louco. Ele gostava de Heidi sabe, ela distraía bem ele nas noites entediantes, e Félix, era o bulldog dele. Só sei que as ordens foram claras como cristal. Ele estava mandando Alec com um pequeno contingente da guarda para capturar você e sua família, e eu deveria auxiliá-los, é claro, por quê sem mim os capangas de Aro não chegariam nem três quilômetros perto de vocês. – Willian provocou, encarando Alec pelo canto do olho. – Contudo, quando Alec se encontrou comigo na floresta, ele me contou Aro queria que você e Alice fossem levadas para Volterra enquanto o restante seria executado alí mesmo. – Minha garganta se apertou, fazendo minha boca secar. Eu não consegui encontrar a coragem para prosseguir, para pedir que Willian terminasse. Tinha medo do que ouviria. Willian me observava, Alec não me olhava mas prestava atenção em cada respiração descompassada que elevava meu peito cada vez mais arfante. Observei o tempo passar em câmera lenta e as chamas das velas se extinguirem em meio as sombras do quarto. A noite estava silenciosa na superfície, nada se movia naquele quarto. Apenas as chamas fracas das velas dançando e criando sombras vivas em nossos rostos de pedra. Três seres imóveis conspirando no silêncio da noite, e nada mais chegava aos meus ouvidos.
Pisquei, encarando minhas mãos inertes sobre minhas pernas. Podia ver a palidez que se tornava cada vez mais pronunciada, a falta de sangue esfriando minhas veias, deixando meus coração mais lento, apesar de bater tão ruidosamente. As palavras dançavam em minha boca, embolando-se num nó incapaz de ser desatado. Eu não conseguia falar.
Os dois vampiros a meu lado permaneciam mudos, imóveis. Estariam eles lamentando minha perda? Respeitando o silêncio do meu luto? Era isso que estavam querendo dizer com aquele silêncio gelado? Que eles estavam mortos?
- Eles fugiram Ness. Eu deixei que fugissem antes de Alec e os outros chegar. Foi um pandemônio dos infernos, mas eu tive que liberar os poderes deles. Deixei que o grandão me derrubasse de propósito só para ter um pretexto para dar a Aro. Ele sabe que não sou vulnerável a pancada. Alec fez o que pode também. – Ele suspirou, contrariado por ter que admitir a ajuda de Alec. – Não sei por quê, mas ele me ajudou. Cegou todo mundo, até seus próprios guardas. Pegou você e a vidente e caiu fora. Tive que correr atráz dele para não ser massacrado junto com os outros guardas. Aquele lobo rasgou todo mundo, demoliu a casa inteira atrás de você. Mesmo cego e surto o danado ainda arrancava cabeças – Willian olhava-me aturdido, não sabia se o que dizia incitava ainda mais minhas lágrimas, que brotavam de meus olhos como uma vertente de água e sal. Eu não sei explicar o que sentia. Minha ampla educação não seria capaz de me dar palavras para explicar a sensação de alívio que senti. Era mais e mais correntes que se desprendiam de minhas pernas e braços, mãos e pés.
- Infelizmente eu não sei dizer o que aconteceu depois que saímos de lá. Ouvi mais tarde Aro ordenando aos guardas que sobreviveram que não deixassem de seguir o rastro deles por nada, e em seguida mandou Demetri para auxiliar nas buscas. Eles estão fugindo Ness, estão tentando arrumar um jeito de vir atrás de você. É o que eu faria. – Willian pegou minha mão, tentando conter meu choro desesperado. Alec apenas observava-me apreensivo.
- E o que vamos fazer agora? – Perguntou Alec, a voz suave que nunca se alterava. – Ela já sabe tudo que sabemos. – Ele trocou um olhar rápido com Willian, em seguida voltaram-se os dois para mim, esperando que eu decidisse o próximo passo. Pensei por um momento, tentando suprimir dentro de mim a euforia que tomava-me como uma onda de águas mornas e acolhedoras.
- Vocês precisam saber de algo também. – Disse, sentindo minha voz embargada pelo choro. – Precisam saber a falha no plano de Aro, a brecha pela qual nos vamos escapar. – Os dois olharam-me atentos. Eu enxuguei meus olhos na manga da blusa de tecido fino que usava e senti a quimação em minha garganta quando falei:
- Zafrina. Ela é a falha no plano de Aro. Foi por causa dela que eu fugi de casa, pelas visões que ela me enviou, me avizando do perigo.
- O quê? – Perguntou Willian descrente.
- O importante é que ela já nos mostrou a falha no plano de Aro. – Falei, ignorando a incredulidade de Willian. – Agora nos precisamos encontrar nossa brecha. E nós vamos começar agora.
Capítulo 27 – a droga do relógio não corre...
Jacob - Lago Manoucane, Québec, Canadá. 3:29 AM
O vento frio passava por mim como um chicote, a nevasca já durava cinco horas. Eu era o único corpo quente naquela imensidão de neve e silêncio, um coração barulhento que desafiava os cinco graus negativos daquela madrugada. Eu observava em silêncio a quietude do lago de águas negras a minha frente, um espelho refletindo o céu e meu próprio rosto inexpressivo. Eu encarava o silêncio e ele me respondia.
Lá atrás, a loira psicopata murmurava desaforos para Emmet e Jasper. Como se já não fosse suficientemente incômodo ter tido que cuidar dela todo esse tempo.
Quanto mais eu pensava naquela noite, mais minha cabeça ameaçava explodir. Mesmo agora, quase um mês depois, eu ainda não compreendia muito bem o que houve. Em minha mente as coisas se embaralhavam até o ponto de não restar nada além do rosto dela. Lembro-me de estar olhando para ela, observando-a de longe explicar à eles tudo que aconteceu, e os olhinhos dela buscavam constantemente os meus, como num pedido mudo de socorro. E eu me lembro do silêncio que notei do lado de fora, um silêncio completo e maciço. Nada de insetos, de vento, nada de carros nem de pessoas. Nada de nada. E o silêncio cresceu, como uma bola invisível ele engoliu todos, um por um, e trouxe com ele uma escuridão desoladora. A última coisa que ví foi o rosto dela, perdendo o foco, se apagando, distanciando-se de mim como aquelas paisagens do deserto que somem quando a gente menos espera. Então eu explodi, deixei o fogo dominar meu corpo e expulsar de dentro de mim aquele medo que sentia de perdê-la. Eu não ouvia nem enxergava nada, mas meu faro encontrou o que minha mandíbula tanto desejava. Eu rasguei, destrocei, quebrei tudo que estava a meu alcance. Em meio ao caos, eu senti os cheiros já familiares para mim em movimento. Eles estavam lutando por suas vidas também. Lutávamos contra um inimigo invisível, mas de novo, estávamos do mesmo lado. E tão de repente quanto veio, a escuridão se foi, e levou com ela minha Nessie. Corri pela floresta a noite inteira, atrás do cheiro dela, atrás de qualquer rastro dos malditos que a levaram de mim, mas não encontrei nada que me indicasse uma direção. Nada.
Quando voltei, eu ví o doutor tentando acalmar Jasper. Alice havia sumido também. Nem tivemos tempo de pensar direito sobre aquilo tudo. Edward os ouviu chegando, e em meio aos pedaços desmembrados dos malditos que abatemos mesmo cegos e surdos, nós tentamos resistir. Lutamos mais. Eu grunhi e avancei, lutei até cada músculo do meu corpo arder em brasas. Mas eles eram muitos e a única coisa que pudemos fazer, foi justamente o que eu jurei a mim mesmo que jamais faria. Nós fugimos.
Eles nos caçaram, muitas vezes nos encurralaram e eu tive que abrir caminho a dentadas. Não sei bem como ou quando aconteceu, mas em certa parte da confusão, eu estava sozinho com a loira maluca, destroçando os últimos sanguessugas que avançavam para nós como bestas sem consciência. Nos perdemos uns dos outros, se ficássemos juntos, morreríamos todos. Cada um de nós foi para um lado, levando atrás de si um contingente de vampiros ensandecidos. Nos espalhamos, separamos o inimigo para ter uma chance de viver, mas depois disso foi difícil nos reencontrar. Não passava uma só noite na qual podíamos relaxar, nem lembro a última vez que durmi. E para piorar minha situação, a única que lutou ao meu lado foi a loira. Tivémos que ficar juntos, mesmo eu desejando correr para o lado oposto daquela louca. Corremos juntos pelas florestas geladas desse país estranho e silencioso por semanas, sempre retornando ao ponto onde nos vimos pela última vez, tentando encontrar qualquer rastro conhecido. Novamente nada.
Eu entendia o por quê os outros não podiam facilitar, afinal, não era apenas eu e Rose que estávamos atrás deles. Dessa forma, não tivémos escolha. Esconder nosso rastro se tornou cada vez mais difícil, e cada vez mais necessário para nossa sobrevivência.
Depois de semanas correndo por aquelas terras, a única coisa que eu queria era ir a La Push, mas ir até lá significava levar o perigo até meu povo. Mesmo assim, contactei o Sam. Deixei-o em alerta máximo, pronto para luta. Sam me prometeu procurar por ela, mas eu fui obrigado a pedir a ele que não fosse muito além com sua busca. Proteger a tribo era o trabalho dele. Protegê-la era o meu, e eu tinha falhado.
Durante aqueles dias em que estive constantemente em movimento, as vezes fugindo, as vezes lutando, eu pensava nela. E se não fosse unicamente por ela, bem, eu sei que teria desistido. Eu odiava admitir, mas a loira estava sofrendo tanto quanto eu. Nenhum de nós conseguia explicar o que havia acontecido, mas ambos concordamos em uma coisa: aquele ataque, aquela investida invisível que sofremos, foi unicamente para levar Alice e Nessie, e se meu faro não estava gozando com minha cara, eu podia jurar que, um dos cheiros que senti em meio a zona de sanguessugas aquela noite, era daquele Volturi metidinho. O irmão daquela anã que parecia ter um limão atravessado na garganta o tempo todo, sempre torcendo o nariz pra tudo. Se tem uma coisa em que confio nessa minha merda de vida, é no meu faro. Rose concordou comigo sobre isso, disse que fazia sentido, já que o talzinho podia acabar com todos os nossos sentidos, e que estava impressionada que meu cérebro ainda servisse para alguma coisa. Aquela ingrata ainda tinha moral de tirar com minha cara, depois de tantas vezes que salvei o traseiro belo e imortal dela. Foi um alívio quando, duas semanas depois, nós encontramos Jasper e Emmet nos arredores de Québec. Finalmente eu estava a salvo da compania desagradável daquela reclamona. Como se algo mais pudesse piorar meu estado...
Jasper trouxe notícias do doutor, pelo que eu pude entender da conversa, eles se encontraram alguns dias depois da luta que separou todos nós. Jasper e eu conversamos durante horas sobre estratégias e planos, mas tudo que podíamos fazer naquele momento era continuar fugindo. Isso me enlouquecia tanto, que as vezes eu me sentia totalmente fora dos eixos. Não conseguia pensar numa maneira de ir atrás dela sem ser morto pelo caminho. Eu não me importava em morrer, nunca me importei com a droga da minha vida, mas eu não poderia, não aceitaria morrer antes de vê-la novamente, a salvo. Depois disso eu não me importava com o que acontecesse comigo. Mas por hora, ela era minha prioridade, e foi apenas isso que me manteve longe dela até agora. Contrariando cada fibra do meu corpo, eu tive que esperar, ser paciente, tive que continuar brincando de cão e gato. Uma puta ironia, já que o cachorro nessa história era eu. Mas o cachorro agora precisava ficar na defensiva, se esquivando dos passos ardilosos que nos seguiam de perto aonde quer que fôssemos. Até o momento que eu pudesse dar o bote e arrancar algumas cabeças. Droga, essa espera... Essa expectativa enfadonha... Eu nunca fui de me esconder, e a ausência dela só deixava tudo mais insuportável. A idéia dela tão perto do perigo, tão longe de mim, sozinha... Deus, isso era como um punhal envenenado cravado bem fundo no meu peito. Eu tentava preencher esse poço de angústia com planos, estratégias, qualquer coisa que me desse a ilusão de que eu não estava parado enquanto ela estava lá fora, longe da família e de tudo que ela conhece. Jasper nessas horas era a única pessoa com quem eu conseguia conversar. Nossa angústia era a mesma, nossa agonia tinha o mesmo gosto amargo. Mas mesmo com todo desespero que eu e ele compartilhavamos, Jasper ainda assim conseguia se manter mais frio perante ao perigo iminente, e isso foi algo que eu começei a admirar nele. Uma força estranha que brotava nele e que me contagiava estranhamente. Mas quem pode confiar num sanguessuga que controla os sentimentos? Bem, era ele ou a Rosalie, não preciso mencionar minha escolha.
Minhas mãos formigavam em meus bolsos. Ignorei a dormencia. O capuz que cobria minha cabeça deixava meus olhos ocultos, imersos nas sombras de onde já não havia luz alguma. O silêncio parecia gritar em meus ouvidos, acordando lembranças e pensamentos doloridos dentro de mim. Tudo a minha volta estava congelado, mas meu coração estava estranhamente quente, como se estivesse envolto numa bola de fogo que me queimava aos poucos, sem pressa de terminar com meu sofrimento. A fera dentro de mim arranhou minha garganta, pedindo para sair, pedindo para que eu a libertasse e a deixasse cravar as patas naquela neve intocada e correr. Correr até que todas aquelas imagens tivessem desaparecido e levado com elas aquele fogo que me consumia em partes pequenas. Eu queria fugir como havia fugido antes. Eu era um covarde que não suportava a idéia de perdê-la, que não era capaz de resistir diante do pensamento de jamais voltar a vê-la. Mas para onde eu poderia correr? Em que lugar desse planeta eu encontraria uma forma de me esconder de mim mesmo? Em que droga de mundo eu poderia existir sem ela?
Percebi, estranhamente nítido e palpável, um rastro quente percorrer meu rosto para então cair sem som na neve branca e imaculada. O quê é isso Jacob Black? Uma lágrima? Está chorando? Está chorando seu imbecil inútil?
Engoli com força a bola que se formava em minha garganta e cerrei meus olhos, na esperança de que aqueles pensamentos se apagassem dentro de mim. Tentei repetir a mim mesmo as palavras do doutor, repassando em minha mente a conversa que tivémos por telefone dois dias atrás. “Você precisa ter calma Jacob, se dermos um passo errado agora podemos deixá-la numa situação ainda pior. Nós já sabemos com quem estamos lidando, e Aro também sabe que não vamos perdoar o que ele teve a ousadia de fazer. Edward e Bella concordam com meu plano, é a única maneira de nos aproximar, com calma e um passo de cada vez.” Era fácil para ele falar, ficar sentado, escondido no meio do nada era uma idéia realmente brilhante. Até Seth pensaria em algo melhor. A única coisa que me manteve aqui, seguindo esse plano ridículo, foi uma coisa que Jasper me disse uma certa noite. “Aro pretendia nos eliminar aquela noite, por quê do contrário, ele não enviaria tantos membros da guarda, e ainda mais na liderança de Alec. Pelo que eu pude observar, Alec nunca lidera, é sempre Félix ou Demetri. Há algo que não se encaixa nessa história, quero dizer, eu entendo os motivos de Aro. Ele queria Alice desde aquele maldito encontro deles em Volterra, e bem, a vontade dele por nossa destruição não é nenhuma novidade, ainda mais depois do vexame que ele passou da última vez.” Eu entendia o que Jasper queria dizer com aquilo. Significava que Aro tinha uma arma secreta, uma carta na manga que nós desconhecíamos. Ou isso os poderes de Alice simplesmente foram pro beleléu, do contrário ela teria visto, eu sei que teria... Droga, parecia que tudo estava conspirando contra nós ultimamente. Mas amanhã, quando nos encontrássemos com Edward e Bella em Port-Cartier as coisas finalmente entrariam em movimento, e eu veria se aquele plano idiota resultaria em alguma coisa. Bem, eu já tinha meu próprio plano caso aquele não funcionasse e de qualquer forma, eu teria que esperar por eles, afinal, eu não fazia idéia de onde ficava o tal “castelo” subterrâneo dos sanguessugas italianos. Eu esperava sinceramente que o plano do doutor funcionasse, eu até tinha que admitir que fazia uma certo sentido as coisas que ele dissera, mas esse entendimento não ajudava em nada a amainar meu desespero.
Ouvi passos lentos na neve, não precisei me virar para saber que era Jasper. A figura branca sentou-se a meu lado no tronco velho as margens do lago. Não olhei para ele, nem ele tão pouco olhou para mim. Durante alguns minutos não trocamos palavra, mas o silêncio entre nós sempre dizia muito mais do que aparentava. Nunca imaginei sentir esse tipo de empatia por um sanguessuga, mas Jasper era diferente, até mesmo entre os esquisitões ele conseguia ser uma aberração em destaque. O fato é que a droga da presença dele me acalmava e mesmo que eu quisesse acertar o nariz dele algumas vezes por manipular meus sentimentos daquele jeito, eu sentia-me bem demais para fazê-lo.
- Já vai amanhecer, você devia dormir um pouco. – Resmungou ele, encarando a imensidão de gelo e neve a nossa frente. Como se eu conseguisse pregar os olhos apenas um segundo sem que a voz dela soprasse em meus ouvidos pedindo ajuda. Nem me dei o trabalho de responder, o que de qualquer forma era algo significativo se tratando de mim. Minha garganta parecia ter fechado, minha língua não se movia. Eu tinha medo de forçar uma palavra e acabar desmoronando a barreira na qual eu estava trabalhando noite e dia, uma barreira que tentava conter todo desespero dentro de mim, uma barreira que de alguma forma me mantinha de pé. As vezes eu sentia que o peso era tão grande, que eu não poderia mais carregá-lo. Minha vida já não era mais a mesma a muito tempo, mas quando ela me tocou, eu senti que pertencia a alguém nessa merda de vida, senti que havia um lugar no mundo para mim. Eu sempre fui acostumado a ter pouco, a ser o segundo, a me conformar com as sobras. Nunca fui o mais importante pra alguém, nem mesmo para minha matílha, na qual eu era visto como um alfa ligítimo, nem assim eu conseguia sentir que era necessário para eles, Sam fazia esse trabalho muito melhor que eu. Mas ela... Ela trouxe naquele sorriso um lugar em que eu poderia estabelecer um lugar, meu lugar.
Jasper levantou-se, vendo que aquela noite eu passaria na compania de minhas lembranças. Deu alguns passos até as árvores, e já imerso na escuridão ele disse:
- Se eu fosse capaz de chorar, eu estaria chorando por ela. – Jasper, seu maldito, não fale assim comigo! Ele desapareceu entre as árvores e me deixou a sós com minhas lamentações, e eu me senti ainda mais acabado. Pensei nas palavras dele, será que eram verdadeiras? Eu não conseguia imaginar Jasper chorando, nem em meus mais extraordinários surtos de imaginação. Aquele rosto marcado e muitas vezes inexpressivo era um escudo intransponível, do qual eu imaginava que apenas Alice tivesse acesso. Relutantemente agradeci ele em minha mente, afinal de contas, se nada mais me restasse, eu ainda seria capaz de chorar. Jasper não poderia nem ao menos chorar por ela... Pedras não choram. Mas no que minhas lágrimas poderiam ser úteis? Isso só me deixava mais puto. Eu não precisava chorar agora, eu precisava dela. Precisava mais que o próprio ar, mais que qualquer coisa da qual eu já tenha necessitado nessa vida. Era estranho, esses sentimentos dentro da gente, principalmente em gente como nós. Vampiros, lobos ou seja lá do que chamem minha espécie. No fim das contas por dentro nós éramos os mesmos humanos frágeis, distorcidos por uma idéia de imortalidade. Isso era uma droga, por que apesar dessas bizarrices em nosso sangue, nós éramos tão humanos quanto eles, com sua fome de amor, de aceitação, com medo, com sua ganância e mediocridade. Nada mais, nada menos que isso.
A única coisa que talvez seja diferente em nós é a intensidade das coisas. Assim como esses olhos podem enxergar praticamente tudo num raio de duzentos metros, assim como esse nariz capta qualquer traço de qualquer cheiro... Esse coração também pode sofrer com a intensidade sobrenatural que tudo mais em nós partilha. E nessas horas, quando a dor nos toma assim tão violentamente, nós ainda temos que lidar com a perfeição cruel de nossas memórias. A todo momento eu me lembrava dela, com uma claridade perturbadora o rosto dela se desenhava em minha mente. O cheiro, o toque, a voz dela sussurrando em meu ouvido... Tudo isso chegava a mim com uma perfeição surreal, as vezes eu a sentia me tocando e minha pele no mesmo instante queimava, como se a lembrança dela fosse feita de brasa pura. E eu quase sempre me via preso a lembrança dela, torturado pela saudade, mas impotente à imagem dela formigando em minha mente. Eu apenas me entregava, como agora, e deixava que ela me tragasse o último fio de sanidade que ainda pudesse haver em mim. Era como uma droga, consumindo meu corpo e minha mente, e em troca dando-me um torpor sem o qual eu sentia que não poderia suportar sua ausência. Lembrar dela era a única coisa que me acalmava, mas era também um veneno cruel que me castigava cada vez que eu recorria a ele. Mas que escolha eu tinha? Enquanto estava aqui, obrigado a ficar longe dela, o que mais eu poderia fazer? Desde que ela se fora, não sobrara nada além que um buraco vazio e a ausência dela fazendo silêncio em todo lugar, não importava aonde eu colocasse meus pés. Obriguei meu corpo a se mover, e com um movimento cadenciado eu deitei sobre o tronco, que era um pouco menor que eu. Me aninhei alí, com um dos braços dando suporte a minha cabeça e o outro sobre meu peito, fiquei olhando para aquele céu enegrecido, pontilhado por estrelas distantes que brilhavam intensamente sobre mim. O barulho do vento fazia as árvores cantarem, a nevasca tinha diminuído, apenas alguns flocos de neve se despendiam da escuridão e eram levadas pelo vento para longe. Fechei os olhos e quase que imediatamente eu a vi. Os cabelos acobreados caindo pelos ombros delicados, os cachos brincando na brisa da floresta em que caminhávamos. O sorriso se abrindo como o céu após uma tempestade, alcançando delicadamente os olhos grandes, aqueles olhos marrons que me esquentavam sempre que me fitavam. “Jake não me olhe assim” ela ria, cobrindo o rosto com as mãos pequenas. As imagens se alternavam depressa, minhas memórias sendo tragadas por um turbilhão de ventos que atendiam pelo nome dela, até que uma nova cena ganhou espaço em minha mente. E com uma dor aguda atravessando meu peito, eu lembrei da nossa última noite juntos, a última noite em que a tive em meus braços. Parecia um sonho. Eu precisava me esforçar para convencer a mim mesmo de que tinha sido real...
“Me avise se eu te machucar” ela disse, resfolegando eu meu ouvido. Eu sentia os dentes dela afundando-se em minha pele, arrancando de mim sensações estranhas, muito mais fortes do que eu julgava ser capaz de sentir. Todo meu corpo pedia por ela, meu sangue fervia em minhas veias. Ela passeava por meu pescoço, por meu peito desnudo e traçava uma linha quente pela minha barriga. Trouxe o corpo dela junto ao meu, nossa pele grudada uma na outra. Eu suava frio com ela sobre mim, meus músculos retesavam-se até o ponto de tremerem sob os toques dela. Ela pressionava os lábios contra os meus, e eu a beijava intensamente, dando tudo de mim. Nunca senti nada como aquilo, nunca senti nada como ela. E quando nos unimos, quando nos tornamos um só corpo, os braços dela me envolveram, a pele clara suavemente iluminada pelas luzes que entravam pela janela. A boca dela entreaberta, roçando levemente minha orelha. O cheiro dela entrava por minha narinas e incendiava-me por dentro. Eu não podia acreditar que algo tão bom um dia foi real em minha vida. Na escuridão gelada dessa noite, qualquer pensamento que envolvia ela e seu calor junto a mim, parecia ser uma invenção de outro mundo, uma peça pregada pela minha mente. Era estranho como não havia espaço para mais nada em mim.
A madrugada já estava empalidecendo quando Jasper retornou, eu não fazia idéia que horas eram, mas o céu estava prateado. Eu estava tão longe com meus pensamentos que não percebi a escuridão cedendo a minha volta. Jasper parou na beira do lago, de costas para mim. Levantei-me da posição em que estava, e percebi minhas costas rígidas e dormentes pela falta de movimento. Coloquei-me de pé, estiquei um pouco as pernas e parei ao lado dele. O lago Manoucane nessa parte mais ao sul de Québec não estava congelado, mas bastaria mais uma noite de nevasca como aquela para congelar aquelas águas escuras e imóveis. Na margem oposta, as árvores altas balançavam com o vento, e as montanhas lá longe desenhavam uma névoa branca no horizonte. Todo esse lugar parecia uma gaiola, não se via o céu durante o dia, apenas uma massa perolada pairando sobre nossas cabeças. Jasper olhava para além das montanhas, percebi pelo rosto enrusbecido que ele andou caçando.
- Quanto tempo até Port-Cartier? – Perguntei, minha voz soando rouca e áspera. Pigarreei de leve para ocultar as provas de que eu andara chorando escondido.
- Se corrermos estaremos lá antes do anoitecer. – Respondeu ele. Concordei silenciosamente e me coloquei em movimento em direção ao lugar onde estávamos escondidos.
- Então vamos correr.
Uma hora depois nós estávamos cruzando as florestas geladas de Québec, eu estava nas quatro patas, dando passadas rápidas e firmes no solo fofo, me esgueirando entre as árvores estreitas. Jasper estava bem atrás de mim, seguido por Emmet e a loira reclamona. A única coisa ruim de estar na forma de lobo é não poder falar, e se não fosse pelo cheiro intenso bem nas fuças de Rosalie, ela também me preferiria assim, incapacitado de falar. Em outras ocasiões eu rosnaria, faria algum barulho irritante, mas hoje... Hoje eu estava imerso em silêncio. Dentro de mim havia uma gritaria desordenada, acho que isso fez eu me calar e prestar atenção em tudo que me cercava, inclusive o caminho tortuoso que atravessávamos para encontrar Bella e Edward. Eu estava focado demais no plano, sabendo que qualquer passo em falso que qualquer um de nós déssemos seria o bastante pra tudo ir pro saco. Eu ainda tinha minhas dúvidas sobre o que íamos fazer, mas eu confiava em Edward para me esclarecer algumas coisas. Ele sempre teve mais paciência comigo nesses casos, sem contar que eu nem precisaria pronunciar minhas perguntas.
Olhei de esguelha para Jasper, ele estava tão longe quanto eu. A expressão que vi no rosto dele gelou minha espinha. Forcei minhas patas contra o solo, impulsionando meu corpo para frente, mais rápido, mais rápido... Jasper me seguiu na mesma hora, e lá atrás eu ouvi a loira reclamar. Eu via nos olhos dele exatamente o mesmo desejo que pulsava dentro de mim como um hematoma dolorido, eu quis acelerar, por ele e por mim. Corremos em silêncio e velozes até as primeiras horas do entardecer. Em algumas partes da floresta nós captamos um rastro fraco dos sanguessugas que nos seguiam desde Surrey. Era uma rastro de três ou quatro dias, eles provavelmente já estavam longe. Quando o céu já recebia as primeiras estrelas pequenas e opacas, nós alcançamos os arredores de Port- Cartier. O combinado era nos encontrar na baía, para que pudéssemos fugir pela água caso algum sanguessuga inimigo nos alcançasse. Quem se ferrava nesse plano era eu, que era o único que precisava respirar, mas nem me dei o trabalho de reclamar, o que novamente surpreendeu a todos. Quando chegamos ao local que Edward expecificou, eu procurei um local em que eu pudesse mudar de forma e assim que saí das árvores em direção ao píer, vestindo o mesmo jeans e a jaqueta do dia anterior, eu logo pude ver a cabeleira desgrenhada de Bella e a cara de zumbi de Edward. Aquelas últimas semanas não tinham sido fáceis pra nenhum de nós.
Abraçei minha amiga apertado e senti o desespero dela escapando por aqueles olhos que me lembravam os de Ness, só que não eram mais os olhos marrons que eu tanto gostava.
- Como está Jake? – Ela perguntou baixinho, longe da conversa dos outros. Ela me olhou, analizando-me como ela costumava fazer sempre. – Você está péssimo. – A voz dela estava apagada, assim como os olhos. Engoli em seco ao presenciar o quanto ela estava sofrendo também. Isso era algo que não morreu com a Bella humana que conheci, eu sempre pude ler os sentimentos dela e isso ainda era possível, mesmo agora.
- Não vou mentir e dizer que estou bem, você me conhece bem demais para isso. Então, acho que a resposta é, estou resistindo. – Ela baixou a cabeça, encarou o chão em silêncio por um minuto. Eu fiquei alí, quieto, respeitando a dor dela e tentando controlar a minha. Edward falava rápido e baixinho com Rose e Emmet, Jasper apenas ouvia.
- Por quê fizeram isso Jake? Por quê tinham que levá-la de mim? – Era extremamente desconcertante o modo como aquelas palavras soavam. Eram frias e duras, os olhos de Bella estavam vazios como eu jamais os vira antes. Eu sabia que aquela era uma pergunta retórica, e mesmo se não fosse, eu não seria capaz de dar a ela uma resposta. Edward se aproximou de nós. Ele olhou para mim com o mesmo desespero contido que eu vi nos olhos de Bella e pareceu encontrar o mesmo traço dolorido em mim. Contudo, Edward estava mais firme quando falou:
- Nós vamos partir hoje para a Itália, já fiz meus preparativos. Nos encontraremos com os outros em Roma e de lá seguiremos para Volterra seguindo o esquema que combinamos com Carlisle. Conto com você para executar a sua parte quando a hora chegar Jacob. – Assenti. Em minha cabeça meu dever desenhava-se como um mapa imaginário. Eu sabia exatamente o que devia fazer e não falharia. A única coisa realmente difícil nesse plano era a espera infinita.
Deixei Edward e Bella sozinhos e fui me juntar a Jasper na beira do píer, olhando a escuridão monótona e fria da baía de Port-Cartier.
- Finalmente chegou a hora hein. – Tentei puxar conversa, minha voz tão sem vida quando aquelas águas escuras. Jasper balançou a cabeça, concordando discretamente com meu comentário carregado de tensão.
- Você acha que os outros vão dar conta? – Perguntei, começando a me sentir apreensivo com a efetividade daquele plano.
- Nós pensamos bastante sobre isso, foi tudo planejado para que saiamos todos vivos. Mas na guerra existem coisas que não se podem prever. – Disse ele em seu tom usualmente sério. Apesar do medo que anuviava meu coração, eu tive que concordar com ele. Eu tinha medo pelos outros, tinha medo de falhar, mas nenhum medo se quer comparava-se ao medo que eu tinha de perdê-la, e por mais destemido que Jasper seja nessa história de guerra, eu sabia que o medo que ele sentia de perder Alice era tão grande quanto o meu. Eu entendia também essa frustração dele, pude perceber o quão disconcertado ele ficava com isso, como se não soubesse lidar com esse sentimento opressivo dentro dele. Eu entendia, pois também sentia-me fraco e confuso diante do medo. Homens como nós não aprenderam o significado da palavra medo. Não antes de conhecer o motivo pelo qual nós arriscaríamos nossas vidas, para sempre.
Capítulo 28 – Antes que você vá embora - Parte 1
Eu não dormia há dias. Depois da longa conversa com Willian e Alec – conversa essa que me revelou coisas que eu jamais deduziria sozinha – Aro ainda quis me ver, queria conversar comigo, convencido de que eu havia herdado os poderes de minha mãe. Mal sabia ele que o esplêndido “poder” era na verdade de Willian. Ele celou os poderes de Aro bem na hora em que o velho decrépito estava prestes a me tocar. Willian riu disso praticamente a noite toda, até mesmo Alec nos surpreendeu aos risinhos. Eu estava cansada, e Aro decididamente não estava cooperando. Eu dividia minhas energias entre as conversas furtivas com Willian e Alec, traçando estratégias possíveis com as quais nós poderíamos fugir, e com a sessões intermináveis de interrogatório com Aro. Para ele eu tinha apenas uma resposta: Não. E curiosamente, Aro mostrava-se cada vez mais simpático e disposto a conquistar minha confiança com uma postura que me causava asco. Ele estava inebriado com a idéia de que eu era uma “Bella” mestiça, com os poderes de minha mãe desenvolvendo-se latentemente em mim. Aro dava-me tudo, menos a chance de falar com Alice ou Zafrina. Ele me cercou de roupas finas e caras, jóias medievais de valor incalculavel. Mandava servir em meu quarto todas as refeições que uma pessoa desejaria ter e constantemente tentava-me com humanos fortes e quentes, servidos à mim como uma refeição qualquer de restaurante. Parecia mais uma tortura. A comida não me interessava na maioria das vezes, mas o sangue... Eu sentia minha garganta queimar constantemente. Willian tentava me fazer ceder a sede, me fortificar com o líquido quente e viscoso, mas eu me negava. Alec apenas assistia meu sofrimento em silêncio, compartilhando em seu modo discreto de minha agonia. Três dias passaram-se sem que nós pudéssemos nos reunir para continuar nossos planos. Aro estava constantemente comigo, ou mandava Alec ou Willian em alguma tarefa trivial fora do castelo. Eu raramente ficava sozinha, e minhas horas de sono se tornaram cada vez mais escassas.
Eu sentia-me fraca, debilitada mentalmente e fisicamente, mas dentro de mim, uma força secreta fortalecia-se em segredo. Agora eu sabia que eles estavam lá fora, fugindo, tentando me alcançar de alguma forma. E era exatamente isso que eu tentava fazer noite e dia. Fugir para encontrá-los. Isso me mantia de pé, de alguma forma eu ainda sentia-me forte o bastante para lutar.
Zafrina algumas vezes visitou-me em sonhos, mas como eu raramente dormia, nossas conexões tornaram-se difíceis. As vizões ficavam cada vez mais borradas e ininteligíveis. Ela tentava me mostrar algo que eu não fazia idéia do que era. Uma torre, um relógio. Uma fonte de pedra. Nove badaladas soando ao longe. Túneis escuros e intermináveis que serpenteavam diante de mim, nunca levando a lugar algum... Eu tentava juntar tudo isso, mas nenhuma conclusão foi certa. E Alice... não passava-se uma só hora em que eu não pensasse nela. Alec estava realmente focado nisso, mas Aro não deixava passar nenhuma informação sobre o paradeiro dela. Apenas Demetri conhecia o local, e isso reduzia nossas chances a menos de zero. Willian também não tinha muito acesso á Lavínia, mas permitiam-no vê-la de longe, enquanto os guardas de Aro acompanhavam-na nos banhos de sol toda manhã. Tentei pedir a Aro que me deixasse falar com ela, conhecê-la, mas Willian desencorajou-me. Disse que enquanto eu não me alimentasse devidamente, ele não confiaria em me deixar tão perto dela. Choquei-me com o comentário, mas percebi que ele estava certo, e que eu teria feito o mesmo se estivesse no lugar dele.
Com as tarefas diárias que Willian recebia de Aro, eu ficava cada vez mais sozinha com Alec. Eu apreciava a compania dele, geralmente tão discreta e silênciosa que eu simplesmente adormecia subtamente. Depois acordava tão envergonhada, que não tinha coragem de olhá-lo nos olhos. E ele apenas observava-me incansavelmente, absorto nos pensamentos que ele raramente expressava. Era Alec quem levava-me roupas e comida, oferecendo-me discretamente, todas a manhãs, um jarro de sangue fresco, ainda quente que eu prontamente recusava. Ele desculpava-se dizendo que nas florestas que rodeavam Volterra, não haviam animais grandes, apenas avez e roedores de pequeno porte. Nada que pudesse matar minha sede ou sustentar meu corpo imortal que definhava dia após dia.
Essa noite, particularmente, estava sendo difícil. A queimação lambia minha garganta, pulsando por minhas veias como fogo líquido. A noite estava fria, tão fria que minha pele, invariavelmente quente, estava tão gelada quanto mármore. O vento frio passeava pelos corredores do castelo subterrâneo dos Volturi, e o silêncio era a única coisa que se ouvia na escuridão gelada daqueles cômodos de pedra. Alec acendeu uma tímida lareira em meu quarto, e enquanto alimentava o fogo com gravetos secos, eu o observava em silêncio de minha cama, no canto oposto do quarto. Willian estava fora cumprindo mais uma ordem de Aro, não voltaria até o dia seguinte. Éramos só nos dois naquele quarto agourento.
- O que pretende fazer quando saírmos daqui? – Perguntei à ele, encolhendo-me contra as almofadas de penas. Alec olhou-me sereno e caminhou sorrateiro até os pés da cama, onde enganchou as mãos finas entre os ferros torcidos que adornavam o grande dossel daquela cama velha. Recostou sua cabeça alí e colocou-se a meditar em silêncio por um minuto.
- Talvez viajar durante um tempo. Talvez uma pausa para repensar em certas coisas. – Um leve sorriso desenhou-se em seus lábios finos. – Mas tudo depende... – Completou ele, encarando-me de tráz do ferro retorcido, os olhos vermelhos brilhando à luz do fogo brando. Retribuí seu olhar.
- Depende do que? – Perguntei.
- Do que você disser quando eu te fizer a pergunta que está martelando dentro de mim há dias. – Ele contornou o dossel torneado e aproximou-se de mim aos poucos, testando-me pacientemente como só ele sabia fazer. Hesitei um instante, temendo o que viria a seguir.
- Então faça a pergunta de um milhão de dólares. – Debochei, sentindo o peso do arrependimento me alcançar instantâneamente. Ele sorriu e encarou-me confiante.
- Por quê me beijou? – A voz dele acariciou as palavras, tornando-as quase como versos de uma canção sem nome. Senti meu rosto formigar e imaginei se eu ainda era capaz de corar, contudo, não demonstrei meu súbito desconcerto. Balancei a cabeça e refugiando meu olhar num ponto mais seguro que os olhos dele, eu falei:
- É disso que depende seu caminho de agora em diante? De um beijo? – Perguntei, endurecendo propositalmente as palavras. Não olhei para ele, esperei paciente o silencio entre nós crescer. Não queria arriscar perder o peso de minhas palavras, não queria derretê-las no magma dos olhos dele.
- Sinceramente? – Perguntou ele, exigindo meu olhar de volta para si. – Sim. Mas não depende apenas de um beijo. Depende do seu beijo. – Ele sentou-se a meu lado, extreitando o espaço seguro que coloquei entre nós. Eu não queria ouvir aquelas palavras, não queria sentir aquele amor crescendo dentro dele, do qual eu me via responsável. Sentia-me egoísta por ser aquela que o magoaria, por quê eu sabia desde o início que o magoaria, isso sempre foi um fato iminente dentro de mim. Virei meu rosto para o fogo, crepidando soberbamente entre nossos corpos temerosos. Ele ficou alí, esperando de mim a resposta que eu jamais poderia dar a ele, esperando que eu fosse para ele o que eu nunca poderia ser. Pedindo em silêncio um amor que eu já dera a outro. Engoli em seco a bola que se formou em minha garganta, e ela desceu pelo meu peito apertando meu coração como um punho de aço.
- Eu não vou fazer você escolher, e não por quê sou nobre demais para isso, mas por quê sei que você já fez sua escolha. – Começou ele, roubando o tempo que meu coração tanto implorava. Senti meus olhos arderem, engoli o choro que subia em minha garganta como uma cobra traiçoeira. Esperei que ele continuasse a afundar ainda mais a estaca em meu peito, mas ele se calou, dando-me as costas e fitando a porta de carvalho que se escondia na penumbra. Eu o olhei de esguelha, arriscando, testando o terreno em que eu relutantemente estava colocando meus pés. Senti o frio que emanava dele, um frio que nada tinha haver com sua pele ou com seu corpo, mas um frio latente, que pulsava tão forte quanto as batidas de um coração. Um coração que já não batia há trezentos anos. Minhas mãos estavam trêmulas, em meu peito meu coração meio imortal dava seus primeiros sinais de fraqueza diante da complexidade das emoções tão demasiadamente humanas que configuravam a outra metade de mim. O quê eu estava pensando? O quê eu estava fazendo?
Sinceramente, eu não sabia. Não tinha idéia do que passava-se em minha cabeça quanto ajoelhei-me na cama, diante das costas ausentes que ele me dava, diante da frieza na qual ele tentava se refugiar para escapar do calor do sofrimento que eu inflingia a ele. Passei meus braços por seu pescoço, enlaçando-o num abraço que gritava desculpas e arrependimentos. Ele inrijeceu, tornando-se ainda mais parecido com uma estátua. Meu rosto encostou-se no dele, meus cachos caíram por seus ombros e eu senti que ele não estava respirando. Meu calor ardeu de encontro ao corpo frio dele, mas nossas peles eram mais parecidas que qualquer outra coisa que já toquei.
- Você não pode me amar. – Sussurrei no ouvido dele, estreitando mais meus braços em seu pescoço, enlaçando-o numa corda invizível que só tirava-lhe o ar, sem dar nada além de calor em troca.
- É tarde demais pra mim. Eu já te amo e já te perdi antes mesmo de tê-la. – A voz rouca e suave acariciou meus ouvidos como uma luva de veludo cortante. Meu peito apertou-se mais. Fechei meus olhos, tentando com todas as forças não permitir que eles se inundassem de água e sal, trazendo para a superfície o único sentimento que eu poderia dar á ele: minha dor. Senti a mão suave subir por meus braços e segurar minha mão levemente, como se tivesse medo de me tocar, como se não pudesse se permitir isso.
- O pior de tudo, é saber que eu não posso nem mesmo lutar por isso. E de novo não se trata de nobreza da minha parte, trata-se de covardia, por quê eu sei que eu sou apenas uma pedra no meio do seu caminho, um obstáculo colocado por Aro para separar você das pessoas que você realmente ama. Acha que com isso posso me dar ao luxo de te desejar? Acha que tenho se quer uma chance de tentar me tornar algo bom pra você? O que começa errado, termina errado, e eu começei essa luta perdendo vergonhosamente. Não há nada que eu possa fazer. Está feito, está acabado.
- Alec...
- Não. – Interrompeu-me ele. – Não diga nada, eu não quero ouvir como você se sente mal por saber que desperta algo tão bom em mim. O que eu sinto não merece ser visto com pena, por quê para mim é a coisa mais valiosa que possuo. – Ele se desvencilhou de meus braços e andou até a lareira, novamente me dando as costas. O fogo estava mais forte, de modo que o desenho escuro de sua silhueta dançou diante de meus olhos como uma sombra do sofrimento que eu sentia por ouvir aquelas palavras saírem dele e me atingirem em cheio como uma adaga venenosa. Eu não podia desviar, não podia evitar que aquela dor me atingisse. Não sei por quanto tempo esperei que minha mente me desse uma resposta, talvez eu já estivesse procurando-a a mais tempo do que me dei conta, mas quando a resposta veio, eu percebi que ela já estava se formando dentro de mim a muito tempo.
- Venha comigo. Minha família receberá você de braços abertos quando souberem tudo que fez por mim. Você pode ter uma nova vida, longe desse lugar, longe dessas lembranças... Venha comigo, por favor. Eu não vou suportar deixá-lo aqui. – Eu estava choramingando como uma criança desesperada por um pônei reluzente, soava embaraçoso mas eu não me importava. Eu realmente queria isso. Queria levá-lo comigo e mostrar a ele um outro lado da vida, o meu lado. Mesmo eu não sabendo quais as consequencias desse meu pedido, eu desejava poder mantê-lo. Nem olhei no rosto dele enquanto despejava minhas lamúrias, mas senti que ele estava torturado dentro do silêncio contido dele, aquele silêncio que transcendia o corpo dele e enchia o ar de um vazio gelado, do qual eu tinha um medo constante.
- Levante-se. – Pediu ele gentilmente. Olhei para cima e encontrei os olhos vermelhos reluzindo na escuridão, encarando-me de uma forma que eu não sabia descrever.
- Onde vamos? – Perguntei, enquanto colocava-me de pé, apoiando-me nas mãos brancas que ele estendia para mim.
- Quero lhe mostrar algumas coisas, quero que me conheça melhor. – Um leve sorriso esboçou-se no canto dos lábios dele. Ele era indecifrável, pelo menos para mim.
Ele segurou minha mão e me conduziu até a porta de carvalho, antes de abri-la ele volteou-se para mim e disse:
- Estou fazendo algo completamente injusto, algo que jurei a mim mesmo jamais fazer. Mas eu não posso me conter, não consigo me convencer a desistir. Preciso fazer uma última tentativa, preciso... – Ele parou, desviando o olhar para além de mim, além daquele quarto. Eu estava apreensiva, meu estômago se contorcia, eu tinha medo do que viria a seguir. Medo de ter que vê-lo lutando sozinho, e no final, ter de dizer a ele que nada mudou.
- Preciso que saiba quem sou eu, quero que saiba tudo sobre mim, quero que me conheça. Só assim eu vou saber que você estava ciente de quem sou eu e do que eu sinto por você, e se mesmo assim você não me quiser, bem, pelo menos eu vou saber. – Concordei com um aceno breve de cabeça, evitando mostrar a ele o pesar implícito em meus olhos.
Então ele pegou minha mão, me levou pela escuridão fria até o lugar em que ele imaginava poder mudar meu coração, o lugar em que ele guardou todas as partes dele que se perderam ao longo dos séculos. E ele desejava dar todas aquelas partes para mim, mas eu sabia... Sabia com uma claridade dolorosa que aquela noite nos machucaria de uma forma irremediável.
Mesmo assim eu deixei que ele fizesse do jeito dele e me deixasse ainda mais perdida dentro de mim mesma.
“Jake, me desculpe...”
Capítulo 28 – Antes que você vá embora - Parte 2
Alec
Será que eu conseguiria dizer à ela? Será que eu seria capaz de lhe explicar todas as partes podres de minha vida de uma forma que ela não sentisse nojo de mim?
As coisas que vi, as coisas que fiz... Tudo em que acreditei, tudo pelo que lutei ao lado de minha irmã... Mentiras.
Toda minha vida, humana e imortal foi apenas um conto de horror. Sangue, morte, ódio, ganância, e o imenso vazio impreenchível que me acompanhou por todos os momentos, desde o menino fraco e miserável daquele vilarejo longínquo até o vampiro letal, a máquina de morte e destruição imperecível que Aro criou.
Eu não poderia culpá-la por não entender, por não acreditar, era difícil até mesmo para mim crer em tudo que eu estava sentindo, em tudo que eu estava disposto a fazer por ela, para ela. Mas eu queria tanto que ela acreditasse...
O gosto dela ainda estava em minha boca, como se nunca mais fosse se dissipar. O cheiro dela grudou em mim com garras que me rasgavam ao meio toda vez que eu era obrigado a ficar longe dela, e todos esses sentimentos confusos e intensos se misturavam em mim de uma forma que eu jamais julguei poder sentir um dia, não depois de tanto tempo. A pele dela junto a minha, os braços delicados e macios rodeando meus ombros como um manto de calor intenso e surreal, eu não conhecia nada daquilo. Nunca conheci nada como essa sensação, sentia-me embriagado por ela. E quando aqueles olhos grandes e tão perturbadoramente humanos me encaravam, eu sentia que ela podia alcançar minha alma. Ela mexera em algo há muito esquecido dentro de mim, algo que nunca sequer foi acordado, e agora eu me sentia com essa ansiedade constante, essa vontade insaciável de estar com ela, de vê-la, de observá-la enquanto ela trançava os cabelos acobreados, o rosto perdido num mistério que me apavorada e me tragava como o olho de um furacão. Eu estava no centro, perdido na órbita, flutuando em meio ao caos, e eu só pensava nela, só nela...
O que era isso meu bom Deus? Que coisa era essa que não me foi explicada em três séculos de imortalidade? E eu que pensava já ter visto e conhecido todas as coisas... Tampouco havia uma língua existente nesse planeta que fosse capaz de explicar esse desespero por alguém que até então me era indiferente. E então o que eu faria? O que eu faria com tudo isso que se revirava dentro de mim como cobras vivas?
Em todas as opções que cogitei, apenas uma me foi insuportável, apenas uma foi rejeitada quase que imediatamente; perdê-la.
Já abri mão de inúmeras coisas em minha vida, coisas das quais nem me lembro, coisas que não pesaram em minha mente nem torturaram meu coração morto. Mas ela... Por quê eu não conseguia abrir mão dela? Por quê eu não conseguia deixá-la ir? Eu estava agindo pior que Aro, aprisionando-a em meu coração com toda força e desespero que eu jamais experimentara nem em vida nem em morte. E a cada vez que eu olhava para ela, cada vez que a via chorando daquele modo furtivo e ultrajado dela, cada vez que a via tentando conter aquele sofrimento mudo dentro dela, eu sentia que ficava mais longe, cada vez mais distante do coração dela, por quê ele estava no lado oposto ao meu. O coração dela pertencia a um lugar que não me incluía, onde não havia espaço para mim, onde eu e as lembranças soturnas dos dias em que ela esteve ao meu lado seriam apenas pesadelos que ela esqueceria. Por quê essa sempre foi minha condição, um pesadelo.
E mesmo assim eu estava aqui, lutando como um condenado, arrastando-a comigo até o fundo do poço ao qual pertenço. Mesmo derrotado eu ainda lutava, mesmo no chão eu ainda me arrastava na direção dela como uma cobra com a cabeça esmagada, rastejando sofregamente em direção ao calor. Se eu fosse um homem digno, eu não teria nem ao menos cogitado a idéia de tê-la, não teria permitido que ela me tocasse como me tocou, não teria permitido meu coração ressuscitar, enlouquecido por um par de olhos que nunca encontrara antes. Se eu fosse um homem digno...
Mas tudo que eu era se resumia em uma criatura egoísta e fria, e agora eu a queria como jamais quis nada em tantos anos inutilmente vividos e desperdiçados. Agora eu a conduzia pela escuridão gelada desse labirinto que têm sido meu lar por três séculos, tentando encontrar as palavras certas para dizer à ela: fique comigo, por favor. Me ame como eu a amo, me escolha como eu a escolhi. Mas tais palavras simplesmente não existem em mim. Há apenas a idéia delas, o sentido, o significado, mas eu jamais seria capaz de retirá-las desse coração imóvel e empoeirado, essa é uma língua que não domino. Mas o quê então? O quê eu pretendia fazer? Mostrar à ela as quinquilharias materiais e sentimentais que amontoei durante todos esses anos e esperar que ela se compadeça de mim? Afinal, que idéia estúpida era essa?
Por um momento eu quase parei, quase desisti, mas uma força estranha conduziu meus pés quando a covardia ameaçou tomar meu coração, e eu compreendi algo que até então estava encoberto dentro de mim por uma grossa camada de medo que neguei por toda minha vida. Pela primeira vez desde sempre, eu desejei que alguém me conhecesse, que alguém de carne e osso conhecesse minha história, minha vida, minhas batalhas, minhas tragédias e até mesmo minhas vergonhas. Eu senti no cerne de meus ossos um desejo irreprimível de ser tocado, de ser amado e conhecido, de romper o lacre que selava dentro de mim todas as coisas das quais eu era feito. As coisas feias e as bonitas, meus defeitos, meus quase extintos valores, minhas poucas virtudes. Eu queria tanto que doía. Talvez por quê, lá no fundo eu já soubesse que essa minha última batalha estava perdida, assim como eu havia me perdido desde aquela maldita noite em que a tirei daquela casa. Agora, na minha mente, eu via um relógio acelerado, marcando os últimos momentos que eu teria com ela antes de vê-la partir para o mais longe de mim que ela pudesse chegar. E eu a ajudaria, por quê nada era mais importante pra mim do que ela, mesmo custando o último quinhão de algo bom que eu ainda mantinha dentro de mim.
E o quê eu faria quando ela me rejeitasse mais uma vez? A última vez? O que eu faria com os cacos aos quais eu estaria reduzido? Voltaria para Aro? Voltaria a matar por ele, pela lei?
Não. Disso nem Jane poderia me persuadir. Eu seria morto se não houvesse outra escolha, mas eu levaria o maior número de Volturis que minhas mãos rígidas conseguissem alcançar, era uma promessa, não para Nessie nem para o prepotente do Willian e nosso pequeno bando anarquista, era uma promessa para mim, Alec. E eu cumpriria essa promessa, eu precisava provar para mim mesmo que eu ainda era um homem em alguma parte remota dessa mente imortal.
- Alec. – A voz dela me arrancou de meus pensamentos com a suavidade de uma brisa, a voz clara e firme soou temerosa na escuridão dos corredores de pedra que eu já conhecia tão bem. Olhei para ela, temendo ver aqueles olhos apreensivos que me fitavam com uma piedade que me cortava mais fundo que um machado cego.
- Já estamos chegando. – Me apressei em dizer, apertando o passo na extensão monótona do corredor que levava diretamente a meus aposentos, no último patamar da ala sul. Observei-a pelo canto dos olhos, temeroso de que ela desistisse, que me deixasse plantado ali no meio da escuridão com minhas esperanças vãs.
Ela parou, e por um segundo eu senti que meu coração voltou a vida apenas para pausar novamente, deixando um silêncio agourento pairar entre eu e ela, entre eu e meu desespero mudo.
- Alec. – Ela sussurrou, e mesmo de costas eu pude sentir o peso das palavras dela, o enorme peso que dizia sempre a mesma coisa quando ela dizia meu nome, quando me chamava daquele jeito, como se se desculpasse em cada olhar, em cada gesto cadenciado.
Eu esperei de costas, reunindo forças e coragem para encarar aqueles olhos suplicantes, me torturando com todo aquele pesar, toda aquela culpa.
- Eu... eu não posso... – Ela suspirou, a voz grave alertando meus ouvidos para o que viria. Percebi que ela tinha se firmado em alguma concessão silenciosa enquanto eu lutava contra o tempo e contra os fatos. Temi por aquela convicção que tingia as poucas palavras que ela me dirigiu de uma cor tão negra quanto as paredes que nos cercavam do chão ao teto.
- Não posso ficar com você, não do jeito que você quer. Nada do que me mostrar ou me dizer vai mudar isso. Desculpe. – Eu deixei aquelas palavras penetrarem em mim, e elas logo alcançaram uma profundidade até então desconhecida por mim. Era como um eco de palavras que já habitavam minha mente há muito tempo, desde o dia em que a levei em meus braços até o avião, cega e surda pelo meu dom das trevas. Aquelas horas com ela, mergulhada no mais profundo e pacífico torpor que eu já me dei o trabalho de proporcionar a alguma alma, mudaram permanentemente algumas pedras soltas que existiam em mim, enfraquecendo de vez os pilares que sustentavam meus frágeis ideais. Desde então ela esteve me sustentando, tomando o lugar de inúmeras coisas que subitamente pareceram meros cacos a meus olhos. Mesmo que em forma de pensamento, de sonho platônico, ela ocupou minha mente, cada vez mais, acelerando em uma freqüência que em poucos dias me deixou fraco diante de um único ideal. Ela entrou sem pedir licença e devastou tudo que já era destroços dentro de mim. Mas agora ela não poderia ficar, não poderia tomar o lugar no grande buraco que ela mesma abriu. Agora ela se desculpava e me deixava aqui, no escuro, num espaço e tempo que não poderiam mais me abrigar como outrora fizera. E de que palavras eu me serviria diante de uma mudez de alma? De que lugar vazio eu tiraria uma resposta suficientemente altruísta para lhe fazer se sentir melhor?
Com um desespero gelado eu ouvi os passos dela se afastando de mim. Com uma consciência incrédula e inerte, percebi que eu a estava perdendo mais cedo do que esperava.
Um medo agonizante se solidificou em minha frente como uma muralha de pedra, e uma voz gritou de dentro daquela entidade evanescente diretamente em minha face imóvel. O grito soou apenas em meus ouvidos, mas era como se o castelo todo o tivesse escutado. Virei-me depressa, movido por um desespero completamente novo em minha gama tão pobre de emoções.
- Eu não tenho muitas coisas para lhe dizer. Tenho ainda menos coisas boas das quais eu me orgulhe o suficiente para dividir com você. Trezentos anos não me deram experiências suficientemente proveitáveis, algo de que eu realmente precise ou utilize na vida que levo. Na verdade as coisas mais importantes que aprendi em minha vida, foram aprendidas enquanto estive ao seu lado. Coisas que não me foram ditas, coisas que nem ao menos tive tempo de pôr em prática, de provar ou sequer entender de fato. Eu vi você um belo dia e de repende eu sabia de muitas coisas, muitas delas inconscientemente. Mas eu sei que sei, sei por quê sinto, e sei que isso é novo por que nunca esteve aqui. – Meu peito arfava como de um humano que percorreu grande distância. Minhas palavras ecoavam nas paredes e eram levadas para todos os lados, reverberando os sons por todo canto inócuo. Ela me ouvia a meio passo, as costas rígidas, os ombros trêmulos. Deixei o restante daquela dor fluir para fora de mim, incapacitado até o último membro de refrear aquele jorro de fel, jogado para fora de meu corpo como o sangue que verte da ferida aberta.
- Eu sei como vai terminar para mim, e eu estou bem com isso. Eu só queria que você soubesse, que quando eu me imagino feliz... É com você. – Eu sabia, quando terminei de dizer aquelas palavras, que jamais, em nenhum dia remoto esquecido nos confins dos meus longos anos, jamais eu dissera nada mais verdadeiro.
Ela virou-se lentamente, e quando meus olhos alcançaram o perfil delicado, desenhado contra escuridão intransponível, eu pude ver nos olhos dela uma centelha de algo em que tentei rapidamente não me agarrar, mas era inútil dizer a meus novos sentimentos essas coisas sensatas. Era inútil fazê-los entender a complexidade das coisas que estávamos vivendo agora. Minha razão não enxergava nada além dela.
Quando os olhos dela me fitaram, um brilho delicioso me atingiu, e por mais dolorido que eu estivesse naquele momento, eu ainda assim teria desejado iludir-me um pouco mais naquele olhar. As coisas a minha volta ficaram turvas, e dentro de mim misturou-se os sentidos e a percepção das coisas, diluíram-se em minha dor e em minha enorme vontade de tê-la. Minha mente fazia planos, nos imaginava juntos, pregava-me peças, iludia-me traiçoeiramente com imagens claras demais de momentos que jamais tornariam-se reais. Eu estava perdido e só conseguia me importar com ela.
Lentamente, eu observei o rosto dela se transformar, os olhos apagaram-se, o sorriso enrijeceu. Um desespero mudo torceu sua face, era como assistir uma pintura derretendo-se em água, até que apenas o cinza restou e a lividez no rosto dela me arrancou com um solavanco de dentro do meu mundinho de dor e lamentação. As pedras tremiam, o chão ecoava as batidas retumbantes de algo que vinha diretamente para nós. Agucei meus ouvidos para todas as direções, expandi meus sentidos, expeli minha fumaça cinzenta de torpor para além do nosso alcance. Aproximem-se covardes, pois morrerão em minhas mãos, cegos e surdos, e antes que percebam suas cabeças estarão rolando pelo chão desse castelo.
Esperei que viessem, pois lá no fundo eu já sabia do que se tratava, eu esperava por isso ansiosamente. Renesmee encostou-se em mim, costas a costas, eu sentia o calor emanando dela em ondas de ódio, o instinto de sobrevivência que todo imortal possuía tomando o lugar da parte humana e delicada que ela possuía de modo tão harmonioso. Vida e morte em um só corpo de mulher.
Agora, mais sóbreo e atento, eu ouvia vozes em todos os lugares. Falavam juntas, de forma rápida e desordenada, mas eu podia ouvi-los com a clareza com que eu ouvia os sinos da catedral soarem durante cada hora do dia.
“Eu quero ela aqui... Tragam-me a maldita mestiça aqui” Aro, Aro, eu poderia distinguir sua voz a quilômetros de distancia, eu poderia reconhecê-la dentre mil vozes distintas, ainda mais quando estava gritando tão descontroladamente. As ordens dele reverberavam pelas paredes como se estas fossem veias pulsantes, pertencentes ao próprio corpo de Aro. Ele trovejava pelos quatro cantos, enfurecido, ensandecido, amedrontado... O que esse maldito queria agora? Bem, eu não ia esperar para descobrir...
Adendo: Só quero dizer que acabei de ver o trailer final de Eclipse, e que eu estou "morrida"! Foi bom conhecer todos vocês.
Capítulo 30 – O Desaparecimento de Alice
Não posso ficar com você, não do jeito que você quer. Nada do que me mostrar ou me dizer vai mudar isso. Desculpe.
Eu jamais imaginaria que dizer essas palavras fosse me custar isso, essa rachadura dolorida, essa auto decepção, como se alguma coisa em meu peito esperasse mais de mim. Eu os decepcionei, e agora ambos emudeciam diante das palavras duras que eu obrigava minha voz sustentar, fingindo acreditar realmente nelas, fingindo ser forte o suficiente para suportar a dor dele e a minha própria. Com medo de me atolar ainda mais nesse lamaceiro profundo que era ele, com medo de conhecer as coisas que ele queria me mostrar, com medo de saber a verdade sobre ele e acabar descobrindo a verdade sobre mim. Como isso foi acontecer? Em que momento eu deixei de vê-lo como um inimigo e passei a enxergá-lo dessa forma que o vejo agora, no momento mais louco e inoportuno da minha vida, nas condições em que eu estava; prisioneira, com a corda no pescoço, poderia eu ter pedido algo mais insano?
Bem, havia algo bem insano na verdade, o motivo pelo qual eu sentia-me cada vez mais tensa quando pensava em Alec, o maior dos meus motivos, um motivo que eu já não via há meses...Jacob Black.
Eu deveria dizer a Alec, eu precisava, mas a idéia de magoá-lo...
Talvez eu fosse covarde o bastante para não querer cravar a estaca até o fim, sabendo que dessa forma eu abriria mão dele para sempre. Mas não era essa a coisa certa a se fazer? Eu não deveria dizer à Alec de uma vez o por quê eu não poderia dar a ele o benefício da dúvida? A razão por traz desse medo de chegar mais perto, o mesmo medo que me dizia que, na melhor das hipóteses, eu iria embora, voltaria para casa, para minha família, voltaria para Jake. Na pior das hipóteses, eu morreria aqui, e não veria o final dessa história, da minha curta e estranha história. Em ambas as opções, Alec não estava incluído, e ele merecia saber disso, só que eu não tinha coragem de dizer. Talvez por quê, lá no fundo, eu estivesse reservando um lugar para ele, um lugar que, inevitavelmente abriria um novo buraco em mim. Eu ainda não sabia em que parte Alec se encaixava em minha vida, ele era para mim uma peça em contraste contínuo com tudo que acredito, com a vida que levo. As diferenças gritavam, mas alguma coisa nele conseguia me tocar, alguma coisa muito além daqueles olhos vermelhos e daquela expressão rígida.
Agora, olhando para o perfil rígido e ligeiramente desconcertado dele, eu não conseguia encontrar minhas forças para dizer o meu adeus definitivo, não conseguia obrigar minhas pernas a se moverem na escuridão e deixá-lo bem ali, no ponto onde eu também deixaria uma parte minha. De qualquer forma, sentindo-me um lixo desprezível ou não, eu percebi meu corpo se afastando dele, como um ratinho covarde se esgueirando para longe do perigo.
Eu disse adeus, e eu não estava só brincando. Na verdade havia algo em minha cabeça há algum tempo, algo que veio como uma centelha e logo se espalhou pela palha seca de minha mente. Eram idéias meio caóticas, algo que eu queria ter dividido com Willian, mas o tempo estava correndo de uma forma traiçoeira para mim, e eu não podia mais ficar aqui esperando que os “adultos” decidissem meu futuro. Eu iria até Aro hoje e diria a ele que eu estava partindo. Se ele queria me matar, teria que fazer isso logo, eu estava cansada de jogos, eu precisava arriscar um tiro no escuro. Talvez ele acertasse Alice, talvez algo bom acontecesse afinal de contas. Bem, eu duvidava...
- Eu não tenho muitas coisas para lhe dizer. Tenho ainda menos coisas boas das quais eu me orgulhe o suficiente para dividir com você. Trezentos anos não me deram experiências suficientemente proveitáveis, algo de que eu realmente precise ou utilize na vida que levo. Na verdade as coisas mais importantes que aprendi em minha vida, foram aprendidas enquanto estive ao seu lado. Coisas que não me foram ditas, coisas que nem ao menos tive tempo de pôr em prática, de provar ou sequer entender de fato. Eu vi você um belo dia e de repende eu sabia de muitas coisas, muitas delas inconscientemente. Mas eu sei que sei, sei por quê sinto, e sei que isso é novo por que nunca esteve aqui. – Por quê ele continuava? Por quê eu ainda estava ali, hesitando em deixá-lo para traz? Na minha mente tudo se misturava até o ponto de virar uma coisa só, uma coisa grande e sem forma que paralisava meu discernimento e me fazia mergulhar num vazio completo. Eu o ouvia de costas, a meio passo de uma escolha sem volta. Eu temia encará-lo, eu temia encarar meu medo nos olhos. - Eu sei como vai terminar para mim, e eu estou bem com isso. Eu só queria que você soubesse, que quando eu me imagino feliz... É com você.
Terminar. Como iria terminar para nós? Após tantas voltas e contornos envolta de um ponto único e invisível, aonde nós iríamos parar? Me virei para ele, fazendo mais uma volta ao redor das coisas que eu julgava importantes para mim, e eu sabia agora, Alec era uma delas.
Mas eu não sabia ao certo o que isso significava agora, não sabia o que fazer com esse sentimento novo e desconhecido, por quê ele não anulava o sentimento mais antigo que eu cultivava dentro de mim, aquele que me chamava pelo nome e me despertava memórias nítidas de um tempo em que tudo era mais simples. Jake estava lá, e sempre estará olhando por mim, esperando por mim, mas Alec estava aqui, agora, e para onde quer que meus passos me guiassem desse momento em diante, ele estaria também em alguma parte de mim.
Poderia um coração ser dividido em partes? Poderia ele suportar essa separação? Eu não sabia o que esperar dessa nova conclusão, sabia apenas que não poderia mais evitá-la, que tempo em que eu talvez pudesse ter feito algo para impedir essa tormenta, havia ficado para trás há muito. Alec via isso em meus olhos, eu mesma podia senti-los faiscando como lanternas em brasa, e ele devolvia esse brilho com uma força que me alcançava mesmo longe, uma força que me buscava aonde quer que eu fosse ou pretendesse ir.
Formou-se um casulo entre nós, uma delicada membrana invisível que nos envolveu dentro de nossos próprios sentimentos confusos. Formou-se e se rompeu logo, tão rápido que perdi o momento certo do fim. Meus ouvidos aguçaram-se, pressentindo o que minha mente ainda custava a entender e assimilar. Haviam passos ecoando nos corredores acima de nós e além, nas paredes de pedra. Vinham sutis e silenciosos de todos os lados, um zumbido cadenciado que somente nossa espécie era capaz de produzir quando se movia rapidamente. Uma movimentação atípica para a quietude cerimonial do castelo Volturi. Alec ainda não percebera, e por um momento eu pensei estar ouvindo coisas. Parei. Ouvi melhor, estendendo meus sentidos para além da escuridão que nos envolvia. Os ecos chegavam cada vez mais nítidos, mas só quando as paredes começaram a vibrar com a massa que se deslocava por todo castelo, eu percebi o que estava acontecendo. Prendi a respiração e sem deslocar meus olhos do rosto imóvel de Alec, eu ouvi o eco longínquo reverberando pelas paredes de pedra. Aro estava falando com a guarda. Estava enlouquecido, o tom de seus gritos arrepiaram os cabelos de minha nuca. “Eu quero ela aqui... Tragam-me a maldita mestiça aqui”
Ele repetia trovejando, e em cada pulsar barulhento do meu coração, eu podia sentir sua ordem sendo cumprida. Retesei meu corpo, por um reflexo involuntário minha mandíbula se trancou, minha postura alterou-se quase imperceptivelmente, quando dei por mim, eu já os esperava ansiosamente.
Foi bem rápido, e para dizer a verdade, lutar foi apenas uma questão de honra, de não ser levada tão facilmente aos caprichos de Aro. Eles eram muitos e vieram de toda parte, brotavam das sombras como ratos, eram rápidos e silenciosos. Alec não me deixou fazer muito, mas mesmo com os poderes dele, desviar e deter era quase tão difícil quando numa luta normal. Alec sabia tão bem quanto eu do que se tratava tudo aquilo, e acho que ele estava mais ansioso por uma briga que o próprio Willian. É claro que nós estávamos apreensivos com a exaltação exagerada de Aro, ele era bem teatral na maior parte das vezes e quase nunca abria mão daquela imagem ponderada e complacente.
Algo muito grave deveria ter acontecido para tê-lo deixado naquele estado, e tudo indicava que ele me julgava a culpada por seja lá o que houvesse o aborrecido. Quando finalmente nos rendemos, concordando num uníssono silencioso que já era hora de ceder, Alec e eu fomos levados até a sala do trono, escoltados por nada mais nada menos que vinte Volturis muito zangados. Os que não tiveram seus braços e pernas arrancados, foram ao encontro de Aro para anunciar nossa “captura”.
- Senhor, eles estavam escapando pelo corredor da ala sul, nos atacaram quando nós
os cercamos. – Explicou um dos guardas. Os outros se dispersaram pelo salão, postando-se em cada acesso direto e indireto do saguão principal com o resto do castelo.
- Nós não estávamos fugindo coisa nenhuma, estávamos...
- Eu quis levá-la até meus aposentos Aro, queria mostrar a ela as coisas de minha
família. – Disse Alec, me interrompendo num tom tão educado que me fez desistir de repreendê-lo. À nossa frente, tão carrancudo quanto jamais o vira, estava Aro. As mãos unidas sobre o queixo, os olhos leitosos fixos em mim. Numa raiva efervescente, Jane me fitava por sobre o ombro esquerdo de Aro, Marcus observava com seu olhar lânguido e distante a cena, enquanto Caius esticava-se de excitação em seu trono. Num plano de menos destaque, eu pude observar a figura discreta de Demetri pairando ao lado direito de Aro, o lugar que Alec ocupava até então. O silêncio preencheu o espaço por um momento, tornando a atmosfera pesada, a tensão emanava de todos. Eu esperei, sustentando firmemente o olhar perscrutador de Aro. Eu podia ver, ele ponderava, ruminava sozinho em sua mente. Olhar nos olhos dele era como olhar um poço sem fundo, ás vezes podia-se ver alguma sujeira boiando. Uma cobra peçonhenta apreciando a presa, armando o bote, articulando...
- Onde está ela? – Disse Aro. As palavras saíram tão pesadas quanto lanças de ferro fundido, ele queria que elas me atravessassem. Eu sabia que não era uma pergunta retórica, apesar do tom brando que ele usou, eu podia entender a ameaça intrínseca nas palavras.
- Eu não sei do que você está falando.
- Onde está ela? – Ele insistiu, ignorando minha resposta, a voz inalterada.
- Eu não...
- Pela última vez, onde está ela? - O tom metálico da voz de Aro subiu uma oitava, seus olhos ardiam. Eu respirei mais fundo, mais rápido, confusa e apreensiva.
- Eu. Não. Sei. Do quê. Você está falando! - Falei, pausando minhas palavras para que elas fossem ouvidas. Aro estreitou os olhos, a face macilenta se moldando sobre seu crânio ossudo.
- Vai me dizer o que eu quero. Por bem ou por mal. - Ele ameaçou. - Agora, novamente. Onde está ela?
- EU NÃO SEI DO QUE VOCÊ ESTÁ FALANDO! – Gritei
- Jane... – Trovejou Aro, uma expressão ensandecida tomando seu rosto.
Foi rápido o bastante para me deixar zonza. Foi rápido o bastante para me desorientar, mas mesmo assim eu pude perceber várias coisas.
- Não, não, pare com isso, ela não sabe de nada. Pare! – Eu ouvia Alec gritando, eu via os guardas tentando contê-lo. Eu via Aro balbuciando a mesma pergunta ininteligível, e via Jane fixando seu olhar excruciante em mim. Caius observava com prazer eu me debruçar no chão, em espasmos violentos. Aro gritava, embora eu não pudesse ouvi-lo, eu li em seus lábios um nome se formando e se repetindo de novo e de novo, como uma maldição jogada diretamente a mim. Alice, gritava ele, emudecendo logo após num sussurro distante do fogo que me consumia.
Meu corpo queimava, e aos poucos, gradualmente, fosse pela dor ou pela inconsciência que se aproximava, eu senti meus ouvidos emudecerem por completo, minha visão tornar-se turva, e um leve torpor tomar conta do meu corpo. Eu conhecia essa sensação, esse torpor envolvente e frio, e o recebi com prazer. Eu sabia que era Alec, me envolvendo em sua inércia, o antídoto de Jane, o único em todo mundo, mortal e imortal, capaz de conter a fúria torturante que ela exalava dos olhos. De costas no chão frio, eu senti meu corpo se aquietando nas ondas entorpecentes de Alec, e quanto mais fundo eu mergulhava no breu, mais eu me distanciava da realidade, do caos que se instalava a minha volta. Meus olhos fecharam-se sem que minhas pálpebras se movessem, e em meu último relance, eu vi caindo como uma gota em um oceano negro e imóvel, um objeto solitário que escorregou de meu dedo indicador. Retorcido e embaçado, o anel que sempre fora grande demais para meus dedos pequenos rolou pelo chão de mármore.
Uma jóia sem nenhum valor financeiro, tosca e de aparência humilde, mas que significava para mim algo muito maior e mais valioso do que a pequena pedra irregular daquela jóia.
Significava lar. Tentei, as pressas, me lembrar de como era meu lar, mas a escuridão me engoliu completamente e eu perdi o fio daquele pensamento quente e acolhedor.
Naquela hora, eu imaginava o que estaria acontecendo fora da escuridão que me aprisionava em minha própria mente. Imaginava quanto tempo já havia decorrido, mas a desorientação de não sentir absolutamente nada era maior que minha imaginação, e eu, mesmo tentando, já não sabia se estava inconsciente ou desperta. Tentei encontrar minha voz, tentei formular um nome, uma palavra qualquer, mas pronunciar três sílabas simples - A-le-c - parecia-me impossível. Eu esperei então, como uma criança sentada no escuro, eu esperei que tudo terminasse, sempre procurando a centelha por onde entraria o primeiro sinal de vida dentro do espaço oco em que eu estava. Mas a centelha que eu esperava simplesmente explodiu de uma só vez, e quando dei por mim, eu estava sentada no chão, as costas contra a parede, o peito arfante e os olhos ardentes.
- O quê...? - Comecei a balbuciar, mas uma mão fria e grande tapou minha boca. Olhei para cima, onde encontrei um Willian tenso e ansioso.
- Shhh, fique quieta agora. - Ele olhou para traz, e a princípio eu não percebi que ele falava com alguém. Prestei atenção, olhando por sobre o ombro dele. - Tem certeza que é seguro?
- Não! Talvez... - Respondeu Alec, a voz tensa e concentrada.
- Que merda Alec. Sim ou não? - Retorquiu Willian impaciente.
- Eu não sei, está um caos lá embaixo. - Alec olhou para traz, encontrando meus olhos presos nele. Willian percebeu que ainda tapava minha boca, e com um movimento rápido ele colocou-se em pé, analisando-me com uma cautela exagerada. Percebi então que Alec o imitava, e após um minuto sendo encarada daquela forma constrangedora, eu perguntei:
- Mas que diabos está acontecendo? - Me coloquei em pé num pulo, agradecendo silenciosamente o retorno de meus sentidos aguçados e de minha agilidade que foi momentaneamente comprometida por Alec. Olhei em volta, percebendo aos poucos a mudança de cenário que me fugiu aos olhos no primeiro momento. O salão amplo e bem iluminado havia sumido, os tronos, os guardas, Aro, Jane, tudo... Estávamos agora numa ante sala semicircular mal iluminada e completamente vazia. A tapeçaria estendia-se sob nós desenhando círculos irregulares, havia apenas uma porta.
- Você está bem? – Perguntou Alec, apreensivo. Olhei para ele, depois apurei o olhar quando vi o estado de suas roupas. Ele não estava tão descomposto assim da última vez que o vi.
- Estou bem sim. Mas... onde nós estamos? – Falei, enquanto encarava a camisa de linho preto parcialmente rasgada nas mangas e com vários botões arrancados. – O que houve enquanto eu estive apagada? A propósito, muito obrigada por aquilo! – Ele balançou levemente a cabeça, num gesto humilde e discreto de agradecimento.
- Sem problemas. Estamos a salvo agora, mas não por muito tempo. Ainda estamos no castelo, a guarda provavelmente já sabe onde estamos, mas eles não vão entrar. Não sozinhos. Qualquer um que se aproximar vai ficar no escuro. – Alec olhou em direção da porta, além das paredes podia-se ouvir a movimentação do lado de fora.
- Aro enlouqueceu Ness. – Interveio Willian. Olhei para ele e percebi os mesmos sinais de luta que arruinaram as vestes de Alec. – Ele estava te torturando por causa da vidente. Ela sumiu essa madrugada! – Arfei, um calor momentâneo me subiu a garganta. – Ele acha que nós temos algo a ver com isso. Mas eu lhe digo Ness, se não fomos nós, quem poderia ter feito algo assim? – A pergunta permaneceu no ar como uma nuvem de poeira. Minha cabeça ia e voltava mil vezes, dava voltas e mais voltas e mesmo assim não conseguia manter um pensamento sequer. Voltei ao chão, na posição em que estava. Encostei-me na parede fria e segurei minha cabeça entre as mãos, tentando de alguma forma organizar meus pensamentos.
- Eu estava fora quando aconteceu, e se eu bem me lembro da última vez que nos encontramos, nós não combinamos nenhum resgate surpresa. Alec me disse que vocês estavam juntos desde a noite passada. – Observei pelo canto do olho o rosto de Alec se inclinar levemente para baixo. Se ele pudesse corar, creio que teria feito. – Que diabos! – Bufou Willian.
- Isso é uma coisa boa não é? Quero dizer, Alice está livre agora. – Tentei dizer algo convincente ou ao menos proveitoso para aquela situação, mas nada do que eu pensava fazia muito sentido. Minha mente só repetia a mesma coisa: Eles vieram, eles estão aqui!
- Não acho que isso melhore muito as coisas para nós. Não mesmo. – Disse Willian taciturno. – Quem tirou a vidente daqui pode ser um aliado certo? Então por que esse aliado te deixou para traz? Qualquer idiota deduziria que a culpa do sumiço da vidente cairia sobre você, isso significa que quem a tirou daqui não está dando a mínima pra você Ness.
Willian estava certo, mas nós sabíamos muito pouco para deduzir qualquer coisa.
- Ela pode ter escapado sozinha. – Argumentei. Willian e Alec trocaram olhares céticos.
- Talvez, se ela conhecesse o castelo bem o bastante. Mas ela não vai chegar muito longe, não com Demetri na cola dela. – Willian andava de um lado para outro, e a inquietação dele só me deixava mais tensa.
- Por que vocês estão assim? Rasgados, mal trapilhos... – Comentei, tentando desanuviar minha cabeça.
- Por quê tivemos que abrir caminho a dentadas para te tirar das mãos de Aro. A boa notícia é que Jane não teve mais que dois segundos pra te torturar antes de Alec te anestesiar. A má notícia é que eu cheguei um pouco tarde demais. Aro tocou em você, ele conhece sua mente agora. – Suspirei. O que mais poderia acontecer de ruim para tornar essa noite uma das top dez das piores noites de minha vida? Eu sabia que estava tudo arruinado agora. Tudo que conversamos sobre planos e estratégias, todos os meus sentimentos controversos, todos os meus pensamentos expostos. Me senti quente de raiva e mesmo assim eu me sentia mais impotente do que nunca.
- Temos que tirá-la daqui Willian. Ele vai matá-la assim que conseguir nos pegar, e ele vai! – Disse Alec, a voz calma e grave tingindo as palavras de um tom tão urgente quanto um grito desesperado. Willian olhou para mim, e depois para Alec, e eu percebi no rosto dele a indecisão e o pesar duelando arduamente.
- Vamos pegar Lavínia e então partiremos. Se Aro nos quer mortos, vai ter que sujar um pouco as mãos. Ele não pode nos tocar, nós dois juntos anulamos noventa por cento da força ofensiva dele.
- Não vai ser assim tão fácil Willian. – Murmurou Alec.
- É, eu sei. Mas nós não temos escolha..
Capítulo 32 – O Destino dos Gêmeos
Jane
Alec me beijou na testa, delicado como sempre fora. Aquele beijo me fez lembrar do garotinho magricela que gostava de brincar com soldadinhos de madeira, enterrando-os em montinhos de terra feitos no chão de nossa casa. Sempre nos beijávamos na testa quando víamos o outro sofrer, era a maneira secreta que escolhemos para dizer um ao outro: está tudo bem, eu sempre estarei aqui por você. Mas isso não era mais verdade, ele me abandonou, de todas as pessoas nesse mundo de humanos idiotas, Alec sempre foi a única pessoa que eu jamais pensei que me deixaria. Desde sempre fomos apenas nós. O mundo nos abandonou. Felizmente, dos dias obscuros em que eu ainda era um ser fraco e inútil, eu pouco me lembro.
Lembro-me da pobreza, da miséria que nos rodeava e na qual nascemos e fomos criados. Lembro-me da pobre mulher que nos deu a luz. Ela vendia chás e remédios caseiros para as mulheres do vilarejo, ás vezes trocava seus serviços de vidente por comida, qualquer coisa que pudesse empurrar goela abaixo de seus gêmeos sem pai. Mas não há muito de que eu me lembre sobre ela, nem mesmo seu nome ou seu rosto sobreviveram ao tempo e aos séculos que já vivi. Mas há uma coisa que eu jamais esquecerei, algo que regeu minha vida desde o primeiro momento de minha imortalidade, o dia em que Aro me deu forças para vencer todo o sofrimento pelo qual eu e meu irmão fomos obrigados a passar.
Essa lembrança, essa única e derradeira lembrança, sobreviveu em mim como uma chama, consumindo constantemente partes infindáveis de mim. Um ódio maciço por tudo que é fraco e inferior, como a raça humana. Baratas nojentas que se proliferam na ignorância, chafurdando em prazeres fúteis e mentalidades retardadas. Eles não entendem nada, nunca entenderam… Nem quase duzentos mil anos foram suficientes para que essa espécie evoluísse, e nesses três séculos que tenho vivido, eles apenas deram voltas ao redor de seus próprios pés. Eu me lembrarei por todos os anos que eu viver do quão podre a raça humana é, e das coisas hediondas que são capazes de fazer, como queimar mulheres e crianças na fogueira, acusando-as de bruxaria e pactos com demônios imaginados por suas mentes pequenas. Pois bem, eu sobrevivi à fogueira, e me tornei o verdadeiro demônio que eles tanto temem. Hoje eu me alimento do sangue deles, a única coisa valiosa dentro de seus corpos frágeis. De qualquer forma, de uma coisa eles tinham razão. Deviam ter me queimado naquela fogueira maldita, por que hoje, quem os queima sou eu.
Aro sempre disse que eu era única, uma jóia preciosa em meio a pedras falsamente brilhantes. Ele ensinou à mim e a meu irmão tudo que precisávamos saber para sobreviver nesse mundo de feras, onde as ovelhas governam e onde seres como nós, têm que viver nas sombras de suas superstições e mitos. E eu aprendi tudo. Eu bebia as palavras de Aro como hoje bebo o sangue quente e viscoso de algum pobre mortal. Sentia-me profundamente feliz com o encantamento que via jorrar dos olhos dele toda vez que olhava para mim e para Alec, um júbilo de pai, de tutor, de mestre...
Não tínhamos nem bem feito dezessete anos quando Aro nos mudou. Foi preciso adiantar nossa transformação, os tempos eram difíceis naquela época, e Aro precisava de nós para triunfar sobre o governo ineficaz de Marcus e as atrocidades de seu filho bastardo, Willian. Quando Dídime foi assassinada pelo bastardinho, eu e Alec tínhamos pouco menos de um ano de imortalidade e mesmo tão inexperientes, fomos decisivos para a tomada do poder das mãos fracas de Marcus. Aro ficou extasiado com nosso poder, ainda mais satisfeito do que ficara na primeira vez que nos viu, ainda frágeis crianças órfãs, em nosso vilarejo longínquo, onde castigávamos as crianças que não nos deixavam brincar de pique - esconde e onde, ás vezes, fazíamos truques para impressionar turistas em troca de alguma guloseima. Foi assim que Aro nos conheceu...
Ele passava com a comitiva Volturi por um caminho tortuoso, quando eu e Alec atravessamos na frente dos cavalos, correndo desesperados dos garotos que queriam nos apedrejar. Uma das pedras acertou minha testa de raspão, abrindo um corte dolorido em minha pele. Alec ficou furioso. Ele se voltou contra os meninos e os encarou com os olhinhos azuis fulminantes de ódio. Um a um os garotos caíam na grama, rolavam e gritavam com as mãos nos olhos, inertes e desesperados. Os poderes de Alec nunca tinham se manifestado daquela forma tão maciça e raivosa. Em geral eram truques bobos e na maioria das vezes era preciso que ele tocasse as pessoas para fazê-las ter rápidos lapsos de visão ou uma surdez momentânea, mas naquele dia, tomado de raiva e desejo de vingança, Alec manifestou um poder grandioso.
E Aro assistiu a tudo, e quando Alec liberou os garotos que correram desesperados de volta a vila, Aro veio até nós, e o interesse súbito de um nobre por duas crianças órfãs e sujas como nós, nos conquistou de imediato, nós que sempre fomos visto como lixo.
Naquela tarde, Aro dispensou a guarda, não queria que ninguém soubesse sobre nós. Ele nos levou em seu cavalo até uma bela clareira próxima ao rio, onde havia uma cabana grande e aconchegante, a mais luxuosa que já tínhamos colocado nossos pés descalços. Ele nos alimentou com todo tipo de frutas e pães que mandou trazer da vila, nos vestiu com roupas quentes e disse-nos que ele cuidaria de nós daquele dia em diante. Eu estava tão contente, jamais em minha vida eu me senti tão importante para alguém, tão bem cuidada. Alec fez várias perguntas à Aro, perguntas insolentes e desconfiadas que não alteraram em nada o humor ou a paciência infindável de Aro conosco. Ele perguntava: “por que está fazendo isso? Por quê está nos ajudando?” E Aro respondia pacientemente: “eu apenas desejo que tenham uma infância melhor que a minha, que cresçam saudáveis e se tornem fortes para lutar ao lado da justiça”. Alec adorou aquelas palavras, tomou-as como um mantra, achou-as sinceras e corretas e após aquele dia, seguiu os passos de Aro, tornando-se cada dia mais aplicado em seus ensinamentos.
Duas vezes por semana, Aro ia nos ver, levava-nos presentes, livros, doces que nunca havíamos experimentado, roupas e calçados de fidalgos. Eu esperava a semana toda por ele, contando os dias secretamente.
Tínhamos aulas com professores de diversas matérias nos dias em que ele não vinha, Alec aprendeu muitas lutas, história e política, eu aprendi várias línguas, filosofia, artes... Havia ainda um professor bem peculiar, vindo especialmente do castelo Volturi para nos ensinar a usar e expandir nossos poderes. Ficávamos entretidos em todas essas atividades a maior parte do tempo, e nas horas restantes, quando Alec perdia-se nos livros que Aro trazia para ele, eu ficava só, com meus vestidos dos mais caros tecidos italianos, meus sapatos brilhantes, minhas jóias e fitas de cetim.
Os anos passaram-se depressa, e Alec continuava com suas perguntas intermináveis que sempre tinham um tom de desconfiança. Eu tinha tanto medo que Aro se aborrecesse conosco, que se fatigasse de nós... Mas ele apenas sorria para Alec e respondia qualquer pergunta com naturalidade e atenção. Lembro-me do dia em que Alec o questionou sobre seus olhos, aquilo era um tabu para nós dois, algo que eu não ousava verbalizar, mas Alec certa vez o fez: "Por que tens olhos vermelhos senhor?" Perguntou ele, encarando Aro como se procurasse por um segredo sombrio. Aro então respondeu: “Meus olhos são a marca da minha força, do meu propósito nessa terra. Quando cresceres jovem Alec, também terás olhos como os meus, tu e a adorável Jane.” E sorria, derramando-se em júbilo sobre nós. Eu o sorria de volta e Alec insistia: “E por que nunca ceia conosco senhor?” Eu envergonhava-me com as perguntas dele, Aro dizia: “Já lhe disse, sou diferente de vocês. Mas um dia seremos todos iguais, e viveremos muitos e muitos anos em meu castelo.” Eu sempre quis conhecer o castelo, mas Aro nunca nos levava até lá. Alec o questionou sobre isso também, muitas vezes, mas Aro nos manteve longe do castelo e dos Volturi até os quinze anos. Foi na noite do nosso décimo sétimo aniversário, quando Alec já era um homenzinho feito, e eu, uma jovem esguia e bem educada, que soubemos a verdade sobre nosso tutor. Aro mandou preparar uma ceia farta, nos mandou vestir nossos melhores trajes, e então chegou após o pôr do sol, com sua capa preta esvoaçando na brisa daquela noite de primavera. Quando ele terminou seu discurso, Alec e eu estávamos imóveis, estupefatos.
Bem, naquela noite eu soube para quê havia nascido, eu descobri minha verdadeira vocação e meu inevitável destino nas palavras complexas de Aro. Mas Alec... Meu irmão sempre teve dúvidas sobre nossa natureza. Ele não entendia por que tínhamos poderes, não entendia seu próprio dom, desprezava nosso potencial, não queria explorá-lo. No fundo, Alec sempre quis ser apenas humano, e eu nunca fui capaz de entender isso, por que como humanos nós só tínhamos a miséria e a rejeição por onde quer que passássemos.
Naquela mesma época, os rumores sobre nossa localização já espalhava-se pelo vilarejo. Todos falavam sobre os gêmeos da bruxa, que sobreviviam aos cuidados de um nobre italiano que fez pacto com o demônio. Não demorou muito para quê alguns camponeses supersticiosos encontrassem nossa cabana na floresta, e, algumas noites após a revelação de Aro, nossa casa foi invadida pelos aldeões.
Eu fui arrastada pelos cabelos, minhas roupas finas rasgaram-se na relva alta da floresta. Eu gritava por Alec, mas em meio ao tumulto eu não conseguia encontrá-lo. Acima dos ombros e braços que me carregavam, eu vi nossa cabana queimando. Eu iria morrer antes de receber a imortalidade do meu bondoso senhor, eu iria para fogueira como minha mãe fora anos antes, eu seria queimada viva por causa da ignorância daquele povo miserável. Eu ardia por dentro de medo e ódio, e a minha volta, dezenas de aldeões eram lançados ao chão em convulsões febris. Eles gritavam: “É a bruxa, ela está nos enfeitiçando, queimem-na!” Eu os teria liquidado se fosse capaz de fazer o que faço hoje, mas em minha forma humana, eu não podia fazer muito com meus poderes.
Na praça central havia dois mastros, rodeados por palhas secas e galhos retorcidos. Quando olhei em volta, Alec já estava sendo amarrado na pira, gritei com todas as minhas forças. Alec chutava e esmurrava, mas eram tantos... Fui amarrada também, meus pulsos delicados foram presos bruscamente ao redor do mastro, meus cabelos dourados grudavam-se nas lágrimas amargas que rolavam por meu rosto. Eles gritavam: “Queimem, queimem! Façam os bruxos arder no fogo da justiça divina.” O vilarejo inteiro esperava, os aldeões, ansiosos com o evento especial, gritavam ensandecidos, sorriam satisfeitos diante da nossa morte. Eu não conseguia mais raciocinar, virei meu rosto para Alec, a única família que eu tinha, e ele me olhou também. Naquele momento eu vi nos olhos dele tantas coisas... Eu vi a dor, inúmeras lacunas que jamais foram ou seriam preenchidas, um vazio profundo e desesperado, eu vi que ele não temia a morte, não tanto quanto eu.
Havia paz e quietude nos olhos de meu irmão aquela noite, uma esperança ingênua em algo desconhecido, algo que eu não conseguia compreender de dentro de meu ódio e desprezo por aquelas pessoas. Alec perdoava aqueles vermes que estavam prestes a nos queimar vivos! E isso foi algo que eu nunca esqueci, algo que eu nunca aceitei em meu irmão.
Mesmo depois de Aro nos salvar da fogueira, mesmo anos após nossa transformação, eu nunca fui capaz de digerir essa indolência de Alec com os humanos. Aquele respeito por existências inferiores era incompreensível para mim, como ainda hoje é.
Capítulo 33 – A Torre
A escuridão avançava conosco como um tapete negro cobrindo nossos passos. Eu sentia o ar cada vez mais frio passar por nós, como se espíritos flutuantes estivessem nos dando boas vindas. O cheiro de terra fresca e musgo ficava cada vez mais forte à medida que entrávamos dentro da terra. Eu estava me sentindo algum tipo de roedor, escavando a terra para encontrar o ar.
À minha frente, Willian e Alec mantinham um ritmo apressado, ignorando totalmente minha necessidade de respirar. Ninguém falava, ninguém movia-se além do necessário. Mãos e pés trabalhavam enquanto a mente permanecia imersa em vozes que não podiam ser ouvidas. A todo minuto alguém farejava, alguém pendia a cabeça em direções diversas, buscando os sons que nunca chegavam, os ecos que silenciavam cada vez mais.
Enquanto os seguia, eu pensava em Zafrina, nas coisas que ela havia me mostrado, nas poucas coisas que eu havia entendido. Se a imagem dele não me voltasse toda hora à mente, talvez eu pudesse me concentrar melhor nas entrelinhas daquelas visões incoerentes, se eu não pensasse tanto nele, talvez eu conseguisse me concentrar nas coisas que Alec estava fazendo por mim. Na verdade, isso estava me matando, e eu não fazia idéia de como dizer a Alec para desistir, por que eu mesma não queria desistir dele.
- E agora? Para onde Ness? - Perguntou Willian. Olhei sobressaltada para ele, e vi que ambos esperavam uma resposta minha. Diante de nós, uma bifurcação estreita apresentava-se com todos os mistérios que uma escolha pode trazer. Direita ou esquerda? Para onde agora Zafrina? Para onde agora Renesmee?
Alec e Willian encaravam-me impacientes, enquanto eu via crescer dentro de mim um desespero mudo. Pensei em quais eram minhas opções...
- Eu não sei, não conheço essa passagem, não conheço nada desse castelo, nunca estive em Volterra antes... Eu não... Faço idéia de onde estamos. - Confessei, sentindo minhas bochechas corarem.
- Pensei que tivesse um plano. Você parecia bem decidida quando socou a parede e nos mandou segui-la. - Disse Willian, uma decepção implícita escapando de suas palavras. Alec permanecia calado, mas a expressão no rosto dele alarmava-se cada vez mais. Eu não sabia o que dizer, eu simplesmente contava com as visões de Zafrina, mas nelas não haviam nenhuma indicação do caminho que eu deveria seguir. Algo estava faltando, nada fazia sentido...
- Eu só... - Tentei verbalizar alguma explicação, mas nada me vinha à mente. Suspirei, sentindo-me terrivelmente cansada.
- Precisamos nos apressar. - Disse Alec. Ele encarava a escuridão atrás de nós como se algo fosse sair dalí a qualquer momento. Levei as mãos até minhas têmporas e apertei-as, eu esperava conseguir lembrar de algo que deixara escapar, algum detalhe, algum relance... Mas nada me veio à mente, nada além do usual.
- Eu não sei por que você achava que devíamos vir por aqui, eu só concordei por que pensei que você tivesse algum plano de última hora. - Argumentou Willian, segurando-me pelos ombros. - Mas Ness, não há nada além de Volterra no fim desse túnel. Nós não vamos estar a salvo bem no meio da cidade deles. - Willian acariciou meus ombros, consolando-me e afastou-se, perdido em seus próprios pensamentos.
Nessa hora, duas coisas aconteceram simultaneamente.
As palavras de Willian acenderam uma luz ofuscante em minha mente. Volterra. O meio da cidade deles. O centro. O ponto zero. O lugar que orgulhosamente recebe todos os anos visitantes de todos os lugares para celebração do dia de São Marcus. O santo homem que livrou a cidade da praga de vampiros, e que também emprestava o nome à catedral da cidade, uma torre construída no século dezoito cujo topo abriga o relógio que marca cada minuto da eternidade na cidade dos Volturi.
O relógio que Zafrina queria que eu visse. O relógio que dizia onde e quando eu deveria estar.
Naquele mesmo instante, enquanto minha mente mantinha suspenso no ar aquela concessão repentina, o barulho de passos emergiu da escuridão atrás de nós. Mais próximo do que esperávamos, mais próximo do que podíamos permitir, eles vinham diretamente para nós como o sopro gelado de uma nevasca.
- É Demetri. - Sibilou Alec para Willian enquanto puxava-me pelo pulso em direção a bifurcação, tomando o caminho à esquerda, Alec assumiu a dianteira com Willian em seus calcanhares. Eu não tive tempo de pensar sobre o que tinha acabado de concluir, e nem sabia como eu explicaria a eles o por que deveríamos ir para a igreja de Volterra, só sabia que Zafrina me queria lá, e sendo excesso de confiança ou não, eu estava inclinada a obedecer.
- Alec, espere. - Tentei fazê-lo ouvir. Ele olhou para mim de esguelha, afrouxou o aperto em meu pulso, mas não diminuiu o ritmo. - Eu preciso dizer uma coisa. - Resmunguei, enquanto era puxada para frente.
- Depois conversamos Ness, primeiro precisamos sair daqui. - Respondeu ele soturnamente, sem tirar os olhos do caminho obscuro que se estendia a nossa frente.
- Vocês não estão entendendo... - Insisti.
- Merda! Devem ser uns vinte pelo barulho que estão fazendo. - Resmungou Willian atrás de mim. De fato, o barulho tumultuoso que vinha dos túneis não era nada animador.
- Alec, me escute. Só me diga para que lado fica a igreja de Volterra. - Eu pressionei, olhando o rosto compenetrado dele e esperando que ele me desse ouvidos antes de tomar o caminho errado.
- É, talvez essa seja uma boa hora para rezar Ness, por que nós estamos muito ferrados. - Ironizou Willian. Alec me encarava com os olhos confusos de quem não está entendendo mais nada. Devolvi o olhar dele com toda sinceridade que havia em mim.
- Por favor. - Sussurrei. Alec voltou-se para frente.
- O caminho que tomamos sai num beco em frente à fonte da praça central. Do outro lado fica a torre da igreja. - Explicou ele enquanto corríamos pelos túneis.
Atrás de nós, o eco de passos tornava-se cada vez mais nítido. Eu podia sentir o cheiro de Demetri entre os vários cheiros que nos chegavam, e era quase como se eu pudesse ver o rosto dele, os olhos atentos rastreando cada pegada que deixávamos para trás.
- Não vamos conseguir Alec. - Disse Willian nervoso.
- Nós vamos. - Respondeu Alec, acelerando ainda mais a corrida. Ele deslizou a mão de meu pulso e entrelaçou os dedos frios nos meus, eu segurei firme a palma lisa e gelada e minha pele ardeu contra a dele com o calor que emanava de meu sangue em movimento. Meu coração martelava e eu ofegava, meus olhos vislumbravam apenas um borrão cinzento passar por nós. Se Demetri e os outros nos alcançassem, a coisa ficaria bem feia.
- Por que diabos estamos indo para a igreja Ness? O que tem lá para nos salvar além da piedade do bom Deus? - Retrucou Willian. Eu não podia vê-lo, mas eu sabia que o desespero estava estampado em suas feições finas e delicadas, no entanto lá estava ele, zombando do perigo.
- Eu não sei muito bem... Zafrina tem me mostrando a tal igreja há dias. Eu vejo a fonte da praça central e o relógio da torre marcando nove horas, mas eu nunca sei se é dia ou noite. Zafrina está ficando cada vez mais confusa em suas visões, eu já não sei o que pensar das coisas que ela tem me mostrado. Às vezes eu chego a pensar que ela está enlouquecendo naquela cela. – Lembrei-me da cela onde fiquei trancada por dois dias inteiros, o cubículo minúsculo e deprimente que cheirava a mofo, enterrado nos porões do palácio mais bem vigiado do mundo, e Zafrina já estava há tanto tempo lá...
- Mas então você sabia desse caminho por causa das visões que a amazona está te enviando? Quando isso aconteceu? Você sempre nos contava quando recebia essas visões... - Continuávamos correndo o mais rápido que aquele caminho estreito e tortuoso nos permitia, lá atrás os passos apressavam-se em nossa direção.
- Foi enquanto Jane e eu... conversávamos. - Lancei um olhar tímido à Alec. Ele nem percebeu, e se o fez, manteve-se inabalável. - Eu vi o túnel nas visões, e não era nada como os corredores do castelo, só não sabia que estávamos tão próximos dele.
- Isso significa que estamos no caminho certo. - Interrompeu Alec, sinalizando o chão a nossa frente, por onde filetes de água corriam livremente. - Está chovendo na superfície. - Disse ele.
- Quanto falta? - Perguntou Willian olhando para trás a cada meio segundo.
- Pouco. - Respondeu Alec. Um relâmpago ensurdecedor rasgou o céu na superfície, fazendo a terra estremecer ao nosso redor. Algumas pedras soltaram-se e logo uma nuvem de poeira tomou o ar a nossa volta.
- Se não sairmos daqui logo, vamos ficar soterrados. - Gritei, desviando das pedras que caíam cada vez mais freqüentemente. A terra tremia inteira, era como estar dentro de um liquidificador. A água vertia das fendas da terra, encharcando nossas roupas de barro.
- Não vamos conseguir sair a tempo se tivermos que lutar. - Disse Willian. Alec o encarou, voltando depois os olhos preocupados para mim, e por um momento eu vi a confiança dele oscilar. Ele sabia que Willian estava certo, e no fundo talvez eu soubesse também, embora eu não quisesse admitir ou pensar nas nossas péssimas possibilidades de sobrevivência.
Demetri e os outros nos alcançariam logo, e nós teríamos que lutar novamente. Num lugar como este, de um metro de diâmetro por um e noventa de altura, os poderes desorientadores de Alec eram quase inúteis. Nós não tínhamos para onde fugir, e mesmo cegos, surdos e o que quer que fosse, eles conseguiriam nos atacar.
Willian estacou de súbito.
- Will, vamos. O que diabos está fazendo parado aí? - Gritei para ele. Willian estava de costas para nós, respirava fundo e encarava o vácuo de onde vinham nossos inimigos. - Will. - Chamei, desesperada.
- Vão - Gritou ele de volta sem nos olhar. - Saiam logo daqui. Eu vou encontrar vocês lá fora. - Eu olhei para Willian aterrorizada, sem entender o que ele estava pensando, sem querer entender o que estava acontecendo.
- Você está louco. Não vou te deixar aqui para morrer, eles vão te matar Will. - A água jorrava e escorria pelas paredes de pedra lamacenta, meus pés atolavam no barro e eu tentava enxergar alguma coisa no meio daquele caos. Larguei a mão de Alec e comecei a me aproximar de Willian. Eu iria arrastá-lo para fora comigo se fosse preciso.
- Ness... - Chamou Alec, tentando pegar minha mão novamente.
- Me solte Alec, eu não vou deixá-lo aqui. - Avancei.
- Vá agora Ness! - Repreendeu-me Willian, dessa vez olhando diretamente para mim. O rosto dele trazia uma convicção indestrutível, uma coragem que me deixava desesperada. Estaquei a meio passo, sentindo as lágrimas transbordarem por meus olhos e misturarem-se com a água fria da chuva.
- Will, por favor, não faça isso. Nós vamos conseguir, venha. - Eu estava implorando, tentando desesperadamente fazê-lo se mover. - Alec diga a ele para vir conosco. - Olhei para Alec, recorrendo à minha última tentativa desesperada. Alec me encarou, torturado.
- Ness, ele tem razão. Não vamos conseguir sair a tempo. Alguém terá que ficar e segurá-los. - Eu não queria ouvir aquelas palavras. Queria que elas nunca tivessem saído da boca de Alec, e queria mais do que tudo que elas não fossem verdades.
- Alec, você e Ness continuam e não parem até encontrarem a igreja. Já viu que horas são? - Ele apontou o relógio de prata escondido sob a manga da camisa de Alec. Segui o olhar dele e vi os ponteiros prateados marcarem oito e cinqüenta e três da noite. - Eu tenho um bom pressentimento sobre esse plano. A amazona pode estar certa, ela pode saber de algo que não sabemos. - Willian desviou os olhos de nós por um minuto, perdendo-se em um pensamento distante. Em seguida nos encarou novamente e disse: - Eu não vou morrer antes de ver minha Lavínia de novo. Ela está em algum lugar do castelo, eu sei disso. Aro a manterá viva e segura, ela é a única garantia que ele tem contra mim. - O que eu poderia dizer à ele? Que desistisse de seu amor? Que a deixasse para trás e fugisse conosco? Eu não podia dizer isso, era egoísmo, era mesquinharia, eu não podia fazer nada, nem nada do que eu dissesse o faria virar as costas para a única mulher que já amou.
- Agora vão! - Gritou Willian. - Vão! - A voz dele soou distante em meus ouvidos, e eu já não sabia se aquilo era um pesadelo ou se era real. Senti as mãos de Alec rodear minha cintura e me puxar para traz, e meu corpo resistia sem que eu pudesse fazê-lo entender as razões morais do que estávamos fazendo. Enquanto Alec me levava para superfície, eu via a imagem de Willian ficar cada vez mais distante, até que meus olhos turvos de lágrimas só conseguiam vislumbrar a silhueta indiscernível dele. Quando o perdemos de vista o silêncio caiu sobre nós como uma mortalha, e eu pude ouvir a voz rouca de Willian reverberar pelo espaço vazio:
- Venham seus malditos, venham... - Ele gritava, e eu, agarrada nos braços de Alec continuava a subida tortuosa até a superfície, tentando não imaginar o resultado daquela luta. Vinte contra um. Jake costumava dizer que esses eram bons números para se começar um aquecimento.
***
A chuva caía sem piedade sobre a cidade dos Volturi. A praça central estava deserta, não havia luzes nas casas ou nas ruas. Um forasteiro como eu pensaria que se tratar de uma cidade - fantasma. Nenhum som, nenhuma presença, nenhum traço do cheiro quente de sangue humano.
- É sempre movimentado assim por aqui? - Perguntei, olhando a minha volta e não encontrando nada além de vazio. Alec também não estava gostando daquela quietude agourenta.
- Há algo errado. – Disse ele taciturno.
- Você acha? - Perguntei, rabugenta. - Está tudo errado Alec. Para começar não devíamos ter deixado Willian para trás. - Eu não estava realmente brava com ele, mas eu precisava exteriorizar aquela raiva de algum modo, contudo, eu não o culpava pela escolha que Willian fez, por que eu sabia que eu teria feito o mesmo por eles.
- Você tem razão. Aquilo era meu dever. Eu deveria ter ficado. – Disse ele. Encarei-o atônita.
- Eu não... quis dizer isso. - Nós caminhávamos com passos largos, cruzando a praça totalmente vazia. A chuva jorrava do céu, empoçando as pedras do pavimento, a nossa volta apenas o barulho da água que caía do céu misturando-se ao tilintar suave da fonte. Alec não disse nada, e eu não vi como poderia continuar aquele assunto.
Enquanto contornávamos a fonte, eu encarava a água escura que jorrava das estatuetas de pedra, e ás vezes, enquanto eu piscava tentando me livrar da água que invadia meus olhos, eu vislumbrava a cascata avermelhada que Zafrina me mostrara, mas então eu apertava minhas pálpebras e tudo voltava ao normal. A chuva prejudicava meu olfato, encobrindo quase completamente os odores da cidade que dormia tranqüila., eu mal podia sentir o cheiro doce e suave de Alec a meu lado.
As portas escuras da igreja se camuflavam na escuridão, e apenas quando os relâmpagos prateados cortavam o céu, era possível enxergar as faces dos anjos esculpidos na fachada de pedra. Estávamos à dez metros da entrada quando a grade de ferro fundido que selava a entrada dos túneis que levavam ao castelo arrebentaram-se contra a parede do beco atrás de nós. O barulho metálico cortou a noite repentinamente, e os ecos pareciam se prolongar para além dos muros da cidade. Nos viramos no mesmo segundo que eles emergiam do subsolo.
- Corra. - Gritou Alec, puxando-me pela mão igreja adentro. Atrás de nós era possível enxergar apenas dois rostos pálidos, dois pares de olhos vermelhos nos caçando como miras de rifle, eles nos observavam imóveis, como se nada daquilo os importasse muito. Demetri foi quem vimos emergir primeiro, seguido de Jane, trazendo no rosto a expressão mais fria que já presenciei na vida. Eles pararam assim que nos viram, no lado oposto da praça circular e de lá nos seguiram com os olhos vidrados e os rostos imóveis. Na escuridão daquela noite, eles pareciam fazer parte da paisagem.
Alec e eu adentramos a igreja num rompante e trancamos as portas duplas de carvalho atrás de nós. Nos encostamos na madeira fria, eu ofegava, Alec escutava a movimentação do lado de fora sem se mover. A nave da igreja estava mergulhada num breu profundo, os vitrais se iluminavam contra o clarão pálido dos relâmpagos. Do altar, todos os santos assistiam nosso desespero como uma platéia invariavelmente muda.
- Como eles chegaram aqui tão rápido? - Ofeguei, tateando em meus bolsos o esqueiro que Willian havia me dado algumas noites antes.
- Eu não sei. Talvez Demetri tenha deixado os guardas cuidarem de Willian, talvez o alvo deles seja nós. - Murmurou Alec, concentrado nos sons que se misturavam com a chuva.
- E Jane? Ela parecia meio catatônica da última vez que a vimos. Pelo jeito ela se recupera rápido. - Falei, enquanto acendia as velas mais próximas a mim. Nós não precisávamos realmente de luz, nossos olhos eram tão bons na escuridão quanto na claridade, mas eu queria me certificar de que houvesse fogo se começássemos uma luta. Uma pequena apólice de seguro.
- Eu disse a você que ela ficaria bem sem mim. Ela está aqui por Aro, e não vai descansar até cumprir as ordens que ele a deu. - Disse Alec.
- Que seria...?
- Aro te quer morta Ness, é para isso que ela veio. - Disse Alec, olhando-me seriamente. Eu acendi a última vela e parei um minuto para escutar. Do lado de fora a chuva martelava sem cessar, eu podia ouvir a respiração fraca dos dois, misturando-se ao farfalhar do vendo passando pelas casas. O silêncio já começava a ficar opressivo quando ouvimos os primeiros ruídos de passos do lado de fora.
- Eles estão vindo. - Sussurrou Alec, prostrando-se diante da porta e me empurrando para trás num movimento sutil e inconsciente.
- Alec, o quê está fazendo? - Aquela preocupação toda estava começando a me incomodar. Primeiro Willian, agora Alec... Eu não deixaria mais ninguém se colocar entre mim e o perigo.
- Shhh... - Sussurrou ele, fitando a porta como se pudesse segurá-la com o olhar. Eu protestaria mais algumas vezes se tivesse tido tempo, mas antes que eu pudesse formular alguma palavra, a porta de madeira explodiu em cima de nós.
Fechei os olhos no calor do momento e quando os reabri eu vi o rosto de Alec colado ao meu. Ele me abraçara, cobrindo todo meu tronco e cabeça como um casulo. A nossa volta, pedaços de madeira e ferro espalhados por todos os lados. O impacto foi tão grande que rasgou as costas da camisa de Alec, e tenho certeza que teria feito bem mais se tivesse me acertado em cheio.
Olhei para Alec aterrorizada, eu me esquecia freqüentemente de que ele não sangrava como eu, nem era tão vulnerável assim. Mesmo assim olhei-o, checando os estragos. Nada.
Eu não tive muito tempo para checá-lo, e foram precisos ainda alguns segundos para que eu me desse conta do que estava acontecendo.
Demetri agarrou Alec por traz, puxando-o para longe de mim. Diante de meus olhos ele o ergueu do chão pelo pescoço, arremessando-o até a parede oposta. Eu gritei, mas em seguida eu senti o fogo lancinante de Jane tomar conta do meu corpo e meus ouvidos fecharam-se para todo o resto.
Durou dois segundos, talvez menos, talvez mais, é difícil dizer quando se está semi consciente. Eu vi o rosto de Jane entrar em foco, eu encarei os olhos dela enquanto ardia em convulsões, e tão rápido quanto veio, a dor de foi.
Eu estava no chão, caída entre os bancos da igreja e a mesa do altar, e de lá eu observei a expressão raivosa de Jane se transformar em um espanto paralisante. Em seguida, entre os barulhos de luta e o ronco distante da chuva, eu ouvi uma voz que não ouvia há muito tempo.
- Fique longe dela!
Capítulo 34 – Revanche
Esse era novamente um daqueles momentos em que eu não sabia se estava sonhando ou se era real - tão real quanto um pesadelo pode ser. Certamente esse era um daqueles terríveis momentos em que os segundos se arrastam infinitamente, deixando o tempo suspenso no ar como uma nuvem de poeira. Tudo desacelerou, tudo empalideceu, e mesmo assim, meu coração continuava martelando ruidosamente, desrespeitando a solenidade daquela cena que meus olhos custavam a acreditar.
- Você. - Sibilou Jane, fazendo com que a fina camada de torpor que cobria meus ouvidos se desfizesse no ar. Eu não conseguia me mover, embora o caos tivesse se instalado a minha volta, meus membros paralisaram-se e nada do que eu fizesse ou pensasse era capaz de fazer meu corpo se mover. Eu não conseguia reunir a coragem para virar-me, para encarar o rosto que poderia se desvanecer numa nuvem de vapor, tinha medo de perdê-lo, de quebrar aquele delírio fugaz, o melhor que já tivera em meses... Contudo, o cheiro era irrevogável, era mais nítido e real do que minha mente confusa poderia imaginar.
- Eu venho esperando por isso há muito tempo Jane. - Sim, sim. Não havia dúvidas. Era real, eu não estava sonhando, não estava enlouquecendo sob os poderes de Jane. Não havia mais dor em mim, nem sofrimento, por que a única pessoa que poderia afastá-los de mim estava aqui.
- M-mãe? - Gaguejei num sussurro, ainda incapaz de olhá-la. Meu maxilar tremia, travava se, as palavras não saíam...
- Está tudo bem Nessie. Nós estamos aqui, querida. - Disse-me ela. Era novamente como nas noites em que ela me colocava para dormir. Sua voz musical sussurrava em meus ouvidos que tudo estaria bem, promessas bonitas que nem sempre puderam ser cumpridas, as quais eu me lembrava perfeitamente. A ansiedade de vê-la inundou minhas veias, fazendo meu corpo recuperar os movimentos. Ademais, havia um outro cheiro que eu precisava checar...
Me levantei, tirando de cima de mim os cacos da porcelana do altar, as flores que caíram de seus vasos atrelaram-se em meus cabelos, meus joelhos vacilavam...
Pairando sobre as fileiras de bancos, estava ela. Pálida e delicada como sempre fora, exatamente como eu me lembrava. A porta lateral da igreja estava aberta, e no limiar do batente havia alguém, e eu sabia quem era, podia sentir o cheiro tão incrivelmente familiar. Eu ficaria olhando para eles por toda a eternidade, apenas memorizando seus rostos, tentando discernir a tonalidade exata de seus olhos, mas aquela cena se misturava em tantos aspectos, que eu já não sabia se estava contemplando um belo quadro ou uma terrível gravura. Havia destruição a minha volta, e ódio nos olhos de meus pais...
Os olhos claros de meu pai encontraram os meus por um momento, e em seguida vagaram pela nave destruída da igreja. Percebi que Demetri e Alec tinham interrompido sua luta, e o rastreador Volturi agora postava-se ao lado de Jane. Alec nos observava a alguns metros, entre Jane e eu, entre meu mundo e o mundo dele. Meu pai o observava profundamente, enquanto ouvia todas as mentes de uma só vez, escaneando diferentes pensamentos, diferentes versões da mesma história.
- Edward, tire ela daqui. - Sibilou minha mãe à figura imóvel de meu pai.
- Nem pensar. Não vai ficar sozinha com eles. - Gesticulou ele para Jane e Demetri.
Jane não desviava os olhos de minha mãe, e o ódio que emanava dela era quase tão mortal quanto seus poderes.
- Bella Swan - Disse Jane, maliciosa. As duas se encaravam profundamente, meu pai se colocou ao lado de minha mãe e eu fiquei observando a cena de longe, do altar semi destruído, de onde era possível ver toda a nave da igreja. - Pensei que fugiriam pelo resto da vida, já não era sem tempo. - Escarneceu ela.
- É Bella Cullen agora. – Retorquiu. – E quando eu terminar com você, vai desejar que tivéssemos demorado mais. - Sibilou minha mãe, sua expressão usualmente suave e gentil transformara-se numa máscara de ódio, era a primeira vez que via minha mãe com aqueles olhos.
- Calma Bella. - Sussurrou meu pai para ela. - Concentre-se.
Eu tinha milhões de perguntas para fazer, mas algo na expressão concentrada de meu pai me fez parar por um momento.
- Pegou o quê precisa Edward? - Perguntou minha mãe, os olhos âmbar fuzilando Jane.
- Não, ela está concentrada demais em matar você. - Disse meu pai, a expressão severa.
Eu os observei atentamente, buscando as respostas que minha mente sozinha não conseguia encontrar. Meus pais pareciam diferentes, e Jane estava notando isso também.
- Seja qual for o plano idiota que trouxe vocês aqui, é inútil. - Disse ela, um sorriso soturno brincando no canto de seus lábios. - Pra vocês acaba hoje.
- Você está muito segura de si Jane. Eu gostaria de saber o que vai fazer sem seus poderes. - Rosnou meu pai, a mandíbula apertada e as mãos em punho. Eu conhecia a expressão que
desenhava-se no rosto dele, aliás, eu o conhecia bem demais em todos os aspectos. Eu sempre fui capaz de prever as reações de meu pai melhor até mesmo que Alice.
- Pelo jeito não é só isso que você gostaria de saber, não é mesmo Edward Cullen? – Jane sorriu. - Eu sei o que você está procurando. - Ela lançou um olhar sarcástico a meu pai, e eu fiquei imaginando o que estava acontecendo ali. Meu pai olhou para mim.
- Ela sabe onde Alice está Ness. - Disse ele. - Mas está escondendo esse segredo muito bem. - Olhei para Jane e depois para Alec, e vi no rosto dele a mesma pergunta que surgiu em minha mente.
- Então não foram vocês que tiraram Alice do castelo? - Perguntei.
- Não. - Respondeu ele seriamente, sem desviar os olhos de Jane e Demetri. Por um momento eu fiquei absorvendo aquela nova informação, tentando descobrir o quê fazer com ela, ou ao menos tentar entender o que estava acontecendo. Eu e meu pai trocamos olhares preocupados, enquanto a tensão a nossa volta tornava-se cada vez mais densa.
- Mas Aro acusou a mim e a Alec. - Retruquei, lançando um olhar aturdido à Alec, que encontrava-se na mesma discussão interna. - Se ele sabia que não fomos nós, por quê fez toda aquela... - Parei, vendo em minhas próprias palavras o sentido de tudo. Aro precisava de um bom pretexto para me executar, e um ótimo pretexto para executar Alec e Willian. Meu pai assentiu levemente para mim, em seguida lançou um olhar ilegível à Alec. Eu gostaria de saber o que ele estava pensando, em que estado estava sua mente diante de tudo aquilo.
- Alec? - Minha mãe perguntou, encarando-me por um breve momento. Olhei-a aturdida.
- Eu te explico depois. - Murmurou meu pai para ela, focando novamente seu olhar perscrutador em Jane.
"Pai." - Chamei mentalmente. - "O quê está acontecendo? Onde está Alice então?" - Ele me olhou de esguelha.
- Vocês são tão patéticos... - Sibilou Jane. - Acham mesmo que viriam até aqui fazer um resgate digno de pena e sairiam inteiros? Acham mesmo que entrariam na nossa cidade e sairiam vivos? - A voz infantil de Jane alterava-se a cada palavra, e meu pai concentrava-se nela quase hipnoticamente.
- Quem a levou Jane? - Insistiu meu pai, enquanto minha mãe focalizava seu alvo obstinadamente. Jane escarneceu.
- Vá para o inferno Cullen. - Rosnou ela.
Se eu tivesse piscado meus olhos eu teria perdido quase tudo, e mesmo com meus sentidos afiados foi difícil entender o que houve.
Não sei ao certo quem atacou primeiro, Jane ou minha mãe. Elas se chocaram com um barulho metálico e avançaram como um turbilhão por sobre os bancos, destruindo tudo. Meu pai não pôde ajudá-la, na verdade ele não pôde fazer nada, e só foi capaz de interceptar o golpe de Demetri, por quê estava dentro da mente dele.
Eu fiquei pregada no chão, incapaz de fazer algo ou de pensar logicamente, eu talvez estivesse presenciando os últimos momentos de meus pais, e embora eu não quisesse pensar nessa possibilidade, o medo se espalhou por mim, amortecendo meus membros como morfina. Meus olhos acompanhavam os movimentos impossivelmente rápidos, fazendo meu coração se apertar cada vez mais em meu peito.
Eu estava atenta à tudo. Meus olhos e ouvidos pareciam ter aumentado de tamanho, eu via e ouvia tudo ao mesmo tempo. Os socos e chutes que pegavam de raspão, os sibilados raivosos, os baques metálicos, o zunido baixo dos corpos movimentando-se em velocidades improváveis... E mesmo com toda agitação entre aquelas frágeis paredes, sob aquele antigo teto sagrado, eu ainda conseguia ouvir o vento fustigando as árvores e os telhados do lado de fora, e a chuva que jorrava do céu carregado, e se eu não estava enlouquecendo, eu também ouvia passos circundando a igreja.
Eu tentei me concentrar naquele som, tentei decifrá-lo, mas o desespero me fazia ficar sem reação, perdida.
Eu vi meu pai desviar de uma série de violentos golpes, e Demetri avançar sobre ele como um elefante raivoso. Ele era excepcionalmente habilidoso, do contrário já estaria morto. Contudo, Demetri compensava os poderes de meu pai com uma força e velocidade surpreendentes.Jane era violencia pura.
Ela não pensava antes de agir, nem planejava seus movimentos, apenas deferia uma serie de socos e chutes, nunca se importando de fato em quê acertava. Ela avançava, colérica, destruindo tudo, e minha mãe esquivava-se sem dificuldade de seus golpes.
Jane abriu a guarda num momento oportuno e minha mãe a jogou contra a parede de pedra da igreja, fazendo a estrutura tremer. Meu pai virou-se por um segundo, incapaz de se concentrar em seu próprio adversário enquanto minha mãe lutava. Demetri se aproveitou da distração e, agarrando-o pelo pescoço, lançou-o ao chão num golpe violento que fez o ar fugir de meus pulmões.
- Edward! - Gritou minha mãe, correndo de encontro à ele. Demetri avançou sobre ela, e eu tive que fechar meus olhos. Ouvi outro estrondo ensurdecedor, e o tremor novamente sacudiu as paredes da igreja. Quando reabri meu olhos, sufocada de pânico, eu ví Alec segurando Demetri por trás, num abraço de ferro que o ergueu do chão. Demetri de debatia, enquanto Alec lutava para contê-lo.
- Vá. - Disse Alec à minha mãe. - Saia daqui. - Ela o olhou aturdida, e sem entender afastou-se, arrastando meu pai para longe da fúria de Demetri.
- Eu estou bem Bella. - Disse meu pai, olhando-a ternamente. Corri em direção à eles, sentindo meu coração subir na garganta a cada passo vacilante.
- Pai. - Ajoelhei-me ao lado dele, pegando sua mão.
- Está tudo bem querida, não se preocupe. - Ele se sentou, fingindo não sentir a dor do último golpe. Minha mãe encarava-o com os olhos assustados de quem se vê oscilando na beira de um precipício, em seguida, olhava completamente perplexa para Alec, lutando com todas as forças para manter Demetri longe de nós.
- Ele está do nosso lado agora. - Disse meu pai para ela. Eu ainda não conseguia me acostumar com meu pai tendo acesso a mente até então privativa de minha mãe, algo que ela veio praticando sem descanso nos últimos sete anos. Na verdade, nesse momento eu queria ser capaz de ler a mente dela também, pois eu certamente não conseguiria dizer a ela o quê houve entre mim e Alec durante os meses que estive aqui, nem para ela, nem para ninguém.
- Podemos confiar nele? - Perguntou minha mãe. Meu pai olhou para mim e nós trocamos um olhar cheio de significados, o mesmo olhar que sempre dizia muito mais que palavras e que dispensava qualquer explicação.
- Sim. - Disse ele. Eu o agradeci mentalmente, sentindo-me um pouco pesarosa por Alec, que certamente enfrentaria a desconfiança de todos.
Eu estava perdida nesses sentimentos pesados e sufocantes quando novamente eu ouvi passos do lado de fora. Percebi de imediato que não era a única a tê-los percebido.
- Devem ser os guardas. - Sussurrei para eles. - Eles estavam nos seguindo. - Falei, sentindo meu estômago se retorcer com a idéia do que nos esperava. Eles não deveriam ter vindo, agora todos nós iríamos morrer...
- Shhh, Ness... - Meu pai pegou meu rosto entre as mãos. - Nós não vamos morrer, ninguém vai morrer. - Disse-me ele, olhando em meus olhos. - Confie em mim.
Ele se levantou, trazendo para junto de si minha mãe em seu lado esquerdo e eu, em seu lado direito. Jane nos espreitava das sombras do altar, procurando uma brecha no escudo de minha mãe, por onde pudesse penetrar.
- Agora escutem. - Disse ele, enquanto fixava os olhos em Alec e Demetri. - Bella, eu quero que proteja suas costas o tempo todo, não baixe a guarda, não se precipite. - Ela assentiu, sem nada dizer, apenas olhando para a silhueta imóvel de Jane. - Eu vou cuidar de Demetri.
- Pai, eu posso ajudar. Por favor me deixe ajudar. Eu e Alec podemos...
- Vocês vão sair daqui. - Disse ele firmemente. Eu o olhei atônita.
- O quê? - Eu tinha milhões de motivos para dar a ele, razões que defendiam meu direito de ficar ao lado deles e lutar, mas eu não tive chance alguma.
- Escute. Eu quero que você e Alec saiam pela porta da frente, não precisa ter medo.
- Mas pai...
- Apenas faça isso. - Interrompeu ele. - E depois corra, vá para algum lugar seguro. Espere lá até que tenha terminado. - Eu o olhava incrédula. Era um absurdo o que ele estava me pedindo.
Minha mãe parou diante de mim, desvencilhando-se dos braços de meu pai. Ela me olhou por algum tempo, memorizando meu rosto, alisando meus cabelos. Eu a olhava suplicante, tentando fazê-la entender que meu lugar era ao lado deles, mas ela apenas acariciou meu rosto e disse:
- Não pare até estar longe o bastante. - E me beijou na testa.
Eles não me deram tempo de protestar, de mostrar-lhes do que eu era capaz. Avançaram juntos deixando-me com minhas perguntas, olhando-os pelas costas.
- Solte-o Alec. - Falou meu pai, a voz quase num grunhido. Alec hesitou por um momento. - Cuide dela. - Disse meu pai. - Se a ama de verdade cuide dela com sua própria vida. Prometa-me. - Alec o encarou.
- Eu prometo. - Disse, e soltou Demetri em cima de meu pai.
Alec correu até mim, passando por minha mãe como um vulto. Ela nos olhou, lado a lado, e sorriu para mim uma última vez.
Em seguida partiu, perseguindo Jane por entre os pilares de mármore e os bancos de madeira. Olhei pra Alec e ele retribuiu meu olhar.
- Estou dando uma pequena vantagem para seu pai. - Disse ele, gesticulando para a figura desorientada de Demetri. Eu assenti, virando as costas para aquela cena aterrorizante, implorando para qualquer Deus existente para que eu voltasse a ver meus pais.
- Alec. - Chamei. - Não se aborreça se eu torcer por minha mãe. - Ele olhou para Jane, esgueirando-se com dificuldade dos golpes precisos de minha mãe e disse, taciturno:
- Jane escolheu o destino dela.
Quando cruzamos as portas da igreja, totalmente destruídas, a chuva nos recebeu de frente.
O céu estava negro e a cidade inteira cheirava a morte. Uma fumaça densa espalhava-se pelo ar gelado de Volterra.
Eu não sabia para onde estava indo, nem onde deveria estar, apenas me coloquei em movimento, cruzando a praça sem pensar muito bem aonde iria. Alec estava silencioso, seguia-me de perto sem fazer um único ruído. A água lavava nossos rostos, e encharcava nossas roupas, fazendo-as ficar mais pesadas. Por toda cidade havia traços de cheiros estranhos. Cheiros que não conseguíamos identificar por causa da chuva e do vento. Estávamos no meio da praça quando Alec parou de súbito.
- O quê foi? – Perguntei, tentando vislumbrar seu rosto imerso na escuridão. Ele inspirou.
- Temos companhia. – Ele chegou mais próximo de mim, rodeando-me protetoramente, procurando por algo que eu ainda não detectara. Alec olhou para cima, para os telhados, e sem entender o que estava acontecendo, eu segui seu olhar. Um raio iluminou o céu por um segundo, mas foi o bastante para eu vê-los.
Eram vinte, talvez mais, eu não saberia dizer... Um rápido vislumbre me permitiu enxergar apenas alguns rostos, aqueles que eu já conhecia.
- Renesmee. – Disse uma voz grave e jovial. – Nós somos aliados, estamos do mesmo lado. – A escuridão e a distância não me permitiam ver o rosto daquele ser, embora a voz me parecesse familiar. Os outros, espalhados pelos telhados e becos de Volterra, espreitavam silenciosos, imersos nas sombras.
- Você pode prosseguir, haverá aliados em toda cidade, em qualquer lugar que ir. Você está em segurança agora. – Suspirei.
- Obrigado.
- Contudo, eu lhe aconselho a sair da cidade o quanto antes. – Continuou o desconhecido. – Nós vamos queimar Volterra.
***
Vinte minutos depois, Alec e eu corríamos para os portões da cidade. Em minha mente, eu ainda escutava os ecos da voz de Benjamin, o egípcio que foi nosso aliado à sete anos atrás, e que agora estava ao nosso lado novamente. Eu não o tinha reconhecido a princípio.
Tremi quando disseram que Alec não poderia passar dalí. Um Volturi em nosso meio. Era inadmissível. Na verdade nem eu sabia como fizera para convencê-los. Nas horas de desespero é que se faz as coisas mais improváveis.
Nosso dever agora era sair o mais rápido possível de Volterra, que seria queimada com os restos do castelo Volturi, que já estava em chamas quando o deixamos. Os aliados dos Cullen estavam espalhados pela cidade, certificando-se de não deixar pontas soltas. Pedi a Benjamin que encontrasse Willian e a humana que estava sob a proteção de Aro. Pedi que os trouxessem vivos. Ele me prometeu, e eu tinha que acreditar que ele cumpriria.
Benjamin, o controlador do tempo, um jovem que aparentava dezesseis anos, dono de tanto poder... Enquanto nós corríamos, eu pensava naqueles imortais que estavam aqui, hoje, lutando, e me perguntava pelo quê eles lutavam.
- Nós lutamos por liberdade - disse-me Benjamin. – Nosso mundo não pode mais permanecer sob o domínio de Aro.
Tantos imortais reunidos em uma só causa, em um só desejo. Mas quando os Volturi cair, quem governará nosso mundo?
Perguntei a ele sobre o resto de minha família. Ele me disse que estavam todos aqui, lutando também, disse-me que éramos um exército. Ele estava certo.
Por onde quer que passássemos era possível vislumbrar um vulto apressado, uma sombra se esgueirando, um par de olhos nos observando, e aonde quer que fôssemos, todos conheciam a filha de Edward e Bella, a herdeira mestiça dos Cullen.
Como prometi a meus pais, eu me apressei em sair da cidade. Disseram-me que estava quase terminado, que perdemos poucos, que o exército Volturi estava digno de pena. Me mandaram para os portões de Volterra, onde nossos aliados se encontrariam no final da luta, onde comemoraríamos a vitória... Benjamin estava otimista.
Alec me guiou por entre as casas e os becos até a entrada da cidade, ele estava mais confiante agora, seu rosto parecia mais leve. Estávamos quase lá, duas ou três quadras talvez... Entramos num beco estreito, estava bem escuro lá, adentramos sem medo, sem a usual cautela, estávamos relaxados. Alec ia na frente, eu o seguia de perto, a chuva formava poças no chão de pedra. Cortesia de Benjamin.
Alec parou, e por um momento eu pensei que fosse por capricho, estávamos perto demais, pra quê correr? Mas então eu o vi, estava parado na extremidade oposta do beco, obstruindo as luzes fracas dos postes. As patas imensas, o pêlo eriçado nas costas, um rosnado preso na garganta... Jacob avançou. Alec tentou recuar. Eu gritei, tentei pará-lo , mas eu estava longe demais.
Capítulo 35 – Perto do Fogo
A enorme mandíbula se fechou onde um segundo antes estivera o flanco direito de Alec.
Um leve deslocamento para esquerda. A pata dianteira alcançou o ombro direito, o guincho metálico ecoou em meus ouvidos como uma folha de aço sendo rasgada ao meio. Alec caiu junto às latas de lixo, a parede sólida a suas costas estremeceu. Um grito mudo escapou por meus lábios.
Não importava o quanto eu me apressasse, a distancia parecia crescer mais e mais. Trinta míseros metros, e mesmo assim a velocidade sobrenatural herdada de meu pai não foi suficiente para deter aquele impulso assassino que o impelia contra Alec. O ódio maciço que transbordava pelos olhos dele parecia queimar como fogo líquido, enchendo o espaço a nossa volta com uma fúria penetrante. Era lindo tanto quanto era nocivo e vê-lo naquele momento era ao mesmo tempo maravilhoso e terrível. Eu nunca o vira tomado por tanto ódio...
Passei pela pilha de latas e sacos plásticos na qual Alec estava estirado feito um boneco quebrado, e corri em direção a Jacob. Eu não sabia o que deveria fazer, como impedi-lo, como dizer a ele que aquele ali também me amava. Que eu também amava ele...
Não, eu não encontraria as palavras certas em tão pouco tempo.
Os olhos escuros pousaram em mim como dois faróis na escuridão, eu contava que apenas isso o parasse, que ele se detivesse por um momento ou apenas titubeasse. Era só o que eu precisava, um momento de hesitação. Mas ele não parou e meu plano improvisado falhou miseravelmente.
Mais rápido do que eu poderia ter previsto, ele saltou sobre mim, o corpo gigantesco moveu-se habilmente pelo espaço minúsculo, pousando bem em frente a Alec. Dei meia volta, correndo, sufocada...
- Jake, não! - Gritei, mas a chuva, os ventos e seja lá mais o que estivesse presente naquele beco conosco, emudeceu minhas palavras, tornando-as um chiado ininteligível. Alec se colocou de pé num átimo, segurando o ombro com a mão. Eu vi os olhos de Jake perderem o foco e rezei para que Alec tivesse tempo de usar seus poderes para escapar.
Inútil. Eu deveria ter previsto. Jake não se deteve. Ele nunca se deteria se pensasse estar me protegendo de um inimigo poderoso como Alec, ele continuaria lutando cego, surdo, aleijado, tanto fazia... Eu o conhecia bem demais para esperar dele um momento de hesitação. Jake sempre foi o melhor em exterminar nossa espécie, e ele ter se apaixonado por alguém como eu, não era nada além de ironia do destino.
Alec era rápido, e foi isso - apenas isso - que o salvou de Jacob. Mesmo assim, os dentes afiados alcançaram o tornozelo esquerdo de Alec. Jacob o arremessou à rua, chacoalhando-o como uma boneca de trapos. Alec caiu no meio-fio, erguendo uma nuvem de pedriscos e água de chuva. Jacob correu em direção a ele, meio desorientado, se debatendo e atacando tudo que havia a sua volta - vivo ou não.
Avancei sem pensar, implorando para os céus por uma chance de salvar ambos. Eu não podia deixar Jake matar Alec, e sabia que Alec estava apenas recuando nessa luta. Se ele decidisse lutar, eu estaria no meio de um furacão. Corri para a rua, desviando das dentadas aleatórias de Jacob, tentando alcançá-lo. Tentei pará-lo...
Jake não me deixava chegar perto. Alec ainda o mantinha no escuro e ele não podia me enxergar nem tampouco sentir meu cheiro. Por muito pouco quase tive minha cabeça arrancada por uma pata impossivelmente veloz, passando de raspão e levando alguns fios de meu cabelo consigo. Aproveitei uma brecha e agarrei-me às costas dele, cravando meus dedos entre os pelos castanho-avermelhados. Ele sentiu minha aproximação um segundo antes de eu alcançá-lo. Jake jogou o corpo para o lado, empurrando-me de encontro a parede. Rolei até o meio-fio, pousando com um estampido trovejante no asfalto molhado.
Quando tentei me mover, meio segundo após a queda, senti meu sangue empoçar minhas roupas. Ao bater conta a parede, uma farpa de ferro da grossura de um punho fechado atravessou minha perna, na altura da coxa esquerda. Eu não tinha percebido até cair no chão que o pedaço esfarrapado de metal ainda estava atravessado em mim. Eu normalmente não me machucava tão facilmente, mas julgando pela força do golpe de Jake, eu entendia como aquilo acontecera. Maldita linhagem humana. E agora eu estava sangrando... Ótimo.
Um rosnado engasgado chamou minha atenção para a luta, e quando eu consegui me mover o suficiente para vê-los, eu não pude acreditar que tinha perdido apenas meio segundo. O corpo enorme de Jacob estava estirado no chão, lutando para se levantar, e Alec pairava ameaçadoramente sobre ele. Jacob ainda tinha o olhar desfocado, perdido, e embora se debatesse ferozmente, ele estava vizivelmente mais lento. Senti a vertigem me tomar, mas o sangue se esvaindo de mim tinha pouco a ver com isso. Tentei me levantar, mas a fraqueza oriunda de tanto tempo sem me alimentar parecia travar meus ossos, deixando-os mais pesados, impossível de se sustentar.
- O quê você fez? - Gritei para Alec. A chuva lavava meu ferimento, espalhando pelo pavimento uma poça de sangue. Minhas roupas, mãos e braços estavam tingidos de carmim.
Alec olhou para mim. Havia ódio em seus olhos, um brilho prateado que gelou meus ossos. Ele respirava rapidamente, com lufadas pesadas e rígidas, seus ombros movimentavam-se no ritmo funesto de sua respiração. Ele caminhou lentamente até mim, sem pressa de libertar Jacob daquele entorpecimento que o impedia de se levantar.
Enquanto andava, Alec olhava-me de uma forma que me apavorava, como se por um momento ele não fosse o mesmo Alec que conheci, ou pior ainda, como se aquele fosse o "velho" Alec. Meu coração disparou em meu peito, e mais uma vez tentei me colocar de pé. Me arrastei até uma parede próxima, onde consegui apoiar minhas costas. Alec continuava avançando com aquele gelo no olhar.
Um rastro de sangue se estendeu a meu redor. A queimação constante em minha garganta deu uma guinada, como se estivesse competindo com a dor pulsante em minha perna. Alec parou diante de mim.
Olhei para cima, para seu rosto imóvel e lívido. Ele retribuiu o olhar, enfatizando sua atenção para a ferida sangrenta em minha perna.
- O quê você fez? - Repeti, sentindo minha voz sumir. Ele não respondeu, eu insisti. - O quê fez com ele? - Era como se uma bola de aço fumegante estivesse atravessada em minha garganta. Apertava e queimava cada vez mais. Ele se abaixou, aproximando-se de mim com uma cautela agourenta, tocou meu rosto gentilmente. Eu o observei, tentando controlar minha respiração. Alec fechou os olhos.
Eu fiquei alí, sangrando, sentindo minha cabeça rachar em duas partes, sentindo um medo virulento tomar conta do meu corpo, observando o rosto dele se transformar em mil faces das quais eu não conhecia sequer uma única.
- Você está bem? - Sussurrou ele com a voz embargada, com se tivesse medo de falar. Alec mantinha os olhos fechados e respirava com dificuldade. Minha pele queimava sob o toque gelado da mão dele, ardia contra a chuva que caía impiedosamente sobre a cidade morta dos Volturi. Em todos os cantos só havia o silêncio, e ao fundo, soando como uma música fúnebre, um uivo cortante subia ao céu e preenchia meus ouvidos com dor. Eu não conseguia me mexer. O horror daquele momento me entorpecia.
Alec deixou a mão que pousava em meu rosto escorregar suavemente até minhas mãos. Ele beijou-as, eu estremeci. Um gemido de dor escapou por meus lábios quando ele aproximou o rosto pálido do meu, a respiração fria tocou minha pele como uma cortina de cetim. Ele abriu os olhos. Dois faróis de fogo me observando de tão perto, a fluidez daquelas íris brincava com cores, capturava minha atenção, prendendo-a em suas profundezas.
- Shhh, está tudo bem meu amor. - Disse ele, apertando os lábios frios contra os meus. Alec puxou a estaca de ferro cravada em minha perna. Meu grito de dor foi sufocado pelo beijo molhado, pelos lábios macios que selavam toda minha dor, suprimindo também meus pensamentos, que por um momento ficaram vazios, vagos e distantes. Ele apertou a ferida, estancando o sangue quente que fluía e se espalhava com a chuva. Aos poucos a dor ia cedendo, deixando um espaço que era rapidamente preenchido pela sensação quente do beijo dele. Em seus olhos, eu podia ver a sede queimando.
A respiração dele era inconstante, com guinadas nervosas e lufadas demoradas, enquanto eu apenas amolecia nos braços dele, sentindo um misto de fraqueza e suavidade. Abri meus olhos, devagar, temerosa... Alec afastou-se lentamente, olhando-me, provando-me até o último momento. Olhei para a ferida, estancada sob a mão pálida de Alec, um contraste acentuado de branco e vermelho contra o pano negro da noite que nos cercava, e mesmo assim, todas as cores eram facilmente desbotadas pela chuva que caía como agulhas feitas de gelo.
O silêncio era como uma música se repetindo em meus ouvidos, com apenas duas coisas quebrando-lhe o ritmo: o farfalhar da chuva precipitando-se contra o chão, e a respiração quase inaudível de Jacob.
Meu coração afundou, e se houvesse em meu rosto alguma cor remanescente, esta teria se esvaído no momento em que procurei a silhueta grande e peluda estirada no meio do asfalto empoçado. Ele estava lá. Na forma humana.
O peito nu brilhava contra a luz opaca dos postes, a água pingava como orvalho negro de seus cabelos. E os olhos... Aqueles olhos grandes e escuros estavam lá, me encarando de dentro de sua imensidão profunda. Ele assistia, mudo e inexpressivo, ao espetáculo romântico e sangrento que se desenrolava diante dele.
- Jake. - Tentei dizer, mas o nome não ousava sair de minha boca, como se eu mesma não tivesse coragem de pronunciá-lo. Um segundo se passou sem que nada mudasse. A chuva ainda caía. Alec ainda tentava estancar meu sangue. Jacob ainda me olhava com aquela decepção enterrada na lama de seus olhos marrons. E eu ainda sentia uma dor imensa tomar cada vez mais partes de mim.
A escuridão e a cortina cinzenta de chuva o cobriam quase completamente, eu via apenas o rosto intransponível, o olhar paralisado, os ombros subindo e descendo no ritmo lento de sua respiração cadenciada. Ele estava nu, eu sabia disso embora não pudesse vê-lo completamente, ele se transformara bem ali, onde dois minutos antes ele havia caído, onde dois minutos antes Alec quase o matara. Não houve tempo de vestir-se, não houve tempo de correr para longe daquela cena que jamais se apagaria nem na mente dele nem na minha. Na verdade, eu nem ao menos sabia como ele teve forças para se levantar...
Jacob virou as costas e saiu, andando lentamente na escuridão.
- Jake. - Gritei, tentando me levantar e caindo inutilmente no mesmo lugar, um desespero inconsciente crescendo dentro de mim.
- Shhh, calma. - Sussurrou Alec, segurando-me pelos braços. A queimação em minha garganta transbordou por meus olhos, derramando-se por meu rosto, deixando um rastro quente em minha pele.
- Jake, Jake. - Eu gritava e tentava inutilmente colocar-me de pé, e Jacob apenas continuava andando para longe de mim.
Quando a escuridão o engoliu, apagando de vez sua imagem, eu senti que não conseguiria mais me levantar. Eu me rendi, fraca e inerte, aos braços frios de Alec, tentando sem êxito conter a torrente de lágrimas que ameaçava me dominar. Eu lutava, mas eu sabia que não tinha mais forças nem ao menos para fingir ser forte.
Eu não queria que Alec visse aquilo, embora o tivesse dito que não poderia ficar com ele, eu nunca lhe disse o motivo real, a razão pelo qual meu coração não poderia pertencer a ele, não completamente. Mas agora, reduzida a cinzas, ensangüentada e destruída nesse chão que nem ao menos era o chão de meu lar, e sentia que Alec merecia mais que um muito obrigada, e não apenas pela minha consciência pesada, mas por quê eu, de fato, queria dá-lo algo mais de mim, maior... Algo melhor que uma crise de choro.
Mais eu não poderia, não é? Não poderia dá-lo o que não tenho, algo que não me pertence.
Os minutos se arrastaram lentamente, ou talvez tenham ido depressa demais, eu sinceramente não sabia. Mas quando as luzes alaranjadas do incêndio que consumiria toda Volterra começaram a nos alcançar, foi preciso partir.
Alec me conduziu pela escuridão impenetrável sem dizer palavra. Minha perna ainda doía, embora já estivesse quase completamente cicatrizada. Seria mais rápido se eu tivesse me alimentado.
O imagem de Jacob queimava em minha mente como uma fogueira num palheiro, consumindo todos os meus pensamentos. Eu não podia deixar de sentir uma dor aguda toda vez que aquele rosto atravessava minha visão, tão claro e nítido como uma aparição. Eu pensava: onde diabos ele foi? Será que está bem? Será que me odeia? E nenhuma dessas perguntas eram respondidas, nada além de ecos e silencio entre as paredes do meu cérebro.
Quando chegamos enfim aos portões da cidade, eu fui recebida pelos abraços e beijos de Rosalie e Esme. Elas falaram e falaram, me encheram de perguntas, e por mais que eu estivesse feliz em revê-las, a lembrança de Jacob não me abandonava nem um só minuto. Rosalie pareceu gostar ainda menos de Alec, dirigindo a ele o olhar que usualmente era reservado à Jacob. Haviam ainda alguns Quileutes, encarregados de guardar os portões, dentre eles eu só pude reconhecer Quil, liderando os mais novos. Fora esses rostos conhecidos, haviam os novos aliados, vampiros de todas as etnias, mas eu não me demorei muito entre eles.
Minha mente ainda estava entre aquelas casas, sob aqueles prédios , passeando pelas ruas que pouco a pouco sucumbiam ao fogo. A chuva já havia cessado há algum tempo, eu nem ao menos me dera conta disso.
- Eles logo estarão aqui Ness, não se preocupe. – Disse Rosalie, preocupada com meu silêncio. Assenti, sem olhá-la. Do alto do monte que circundava Volterra, era possível ver a cidade toda. Um vapor alaranjado subia do subsolo, tomando ruas e casas, alastrando-se como uma risca de pólvora, o ar enchia-se com uma fumaça escura e densa, o cheiro era de morte par nossa espécie.
- Ele é confiável Ness? Ele pode ser um espião, pode ser um infiltrado de Aro. – Sussurrou Rosalie em meu ouvido, lançando olhares carrancudos à Alec. Olhei para ele, encostado junto ao tronco de uma árvore, observando sua cidade queimar.
- Eu estou viva por causa dele. – Eu disse, encarando minhas mãos sujas de sangue seco. – Papai confia nele também. – Disse, sabendo que esse argumento era indiscutível para Rosalie. Ela continuou encarando Alec, silenciosa.
Uma movimentação estranha chamou minha atenção para a matilha, segundos após, Quil aproximou-se em sua forma humana para nos dar as últimas informações.
- Está quase acabado. O ninho foi queimado até o último Volturi pular que nem pipoca. – Disse ele, em seu tom despreocupado, sorrindo orgulhosamente. – Edward e Bella também já terminaram. – Disse ele olhando para mim. - Estão indo encontrar os outros. Sam disse que a matilha não tem mais o que mastigar. Vamos para casa. – Quil sorriu largamente e um uníssono de uivos se ergueu no ar. Os vampiros desconhecidos festejavam, cumprimentando-se, trocando palavras rápidas entre sorrisos aliviados. Alec não se moveu de sua posição, eu apenas ouvi em silencio. Quil continuou reportando detalhes a seus companheiros e a alguns dos vampiros, enfatizando detalhes da luta. Eu ouvia as palavras dele apenas como um eco longínquo.
- ...então eles cercaram a cidade e entraram pelo subsolo, na parte traseira onde era menos vigiado. Sam disse que foi um pandemônio quando eles invadiram, uma zona dos infernos. A guarda deles estava uma bagunça, sem nenhuma liderança, totalmente desorganizada. Ele disse que quando terminaram com a guarda foram atrás dos velhotes, mas eles já tinham fugido para superfície. – E abaixou a voz como se com isso eu não pudesse escutá-lo. – Jake revirou cada cômodo do castelo atrás dela. – Disse ele, gesticulando para mim. – Sam disse que ele saiu que nem um louco de lá quando não encontraram ela, cobriu a cidade inteira em meia hora. Sabe, o Jake é um alfa também, mas na nossa política só pode haver um alfa. – Explicou Quil aos vampiros que o escutavam atenciosamente, ele estava eufórico com toda aquela atenção. – Mas o Jake debandou da nossa matilha há alguns anos, questões pessoais sabem. Desde então nós não podemos ouvir a mente dele, só o Sam pode, por quê ele é o outro alfa. É bem maluco, mas funciona. Hoje em dia só a Leah e o Seth podem ouvir o Jake, fora o Sam. – Quil parou um momento, perdido em pensamentos, depois recomeçou seu discurso.
- Eu até prefiro ficar fora da mente do Jake sabem, ele é muito confuso, vive cheio de minhocas na cabeça. Se bem que eu daria tudo pra ter visto a briga feia com o Volturi ali. – Disse ele novamente aos sussurros, apontando descaradamente para Alec, os vampiros olharam-no com curiosidade. – Mas Sam não quis dar muitos detalhes, disse que estava tudo bem e ponto. – Quil deu de ombros, perdendo em seus pensamentos novamente.
- A última notícia que ele nos deu depois disso, foi que tinha perdido contato com Jake. De certo ele deve estar queimando alguns entulhos. Ele precisa dos polegares opositores para isso, se é que me entendem. – Quil gargalhou de sua própria piada.
Eu sabia perfeitamente bem o quê acontecera, mas não tinha coragem de verbalizar aquilo, não conseguia nem ao menos acreditar que havia acontecido de fato. O pequeno grupo se dispersou um pouco, juntando-se em debates e discussões sobre o futuro da nossa espécie.
- Conte-nos alguma coisa útil. – Resmungou Rosalie para Quil. – Como foi a luta, quem perdemos... Isso é importante e não as esquisitices caninas que vocês têm. - Quil olhou-a carrancudo e em seguida lançou-se em uma descrição meticulosa dos acontecimentos daquela noite. Embora eu quisesse muito ouvir aquilo, meus ouvidos taparam-se para todo o resto. Eu podia ouvir os estalar das chamas na cidade lá embaixo, ouvia as pedras desmoronarem e o vento que agitava a fumaça densa sobre nossas cabeças. E eu pensava: onde está você Jake?
Não me dei conta de que me levantava. Apenas me afastei sorrateiramente do grupo, adentrando as árvores. Na orla do pequeno bosque que nos separava dos portões de Volterra, eu olhei para traz. Alec me olhava silenciosamente, por entre as árvores e dentro da escuridão, ele viu em meus olhos o motivo que eu não conseguia dar a ele.
Virei-me em direção a cidade em chamas, sabendo que só haveria um jeito de sair de lá. Eu encontraria Jacob e o traria comigo, ou eu não teria motivos para voltar.
Capítulo 36 – A Canção Continua a Mesma
Jacob
O plano havia corrido com perfeição até aqui. Enquanto eu cravava minhas patas na terra úmida, acelerando silenciosamente para o ninho dos sanguessugas, eu podia ouvir os corações barulhentos e excitados de meus irmãos atrás de mim.
Tanto tempo sem lutarmos lado a lado... Tantos dias desde a última vez que fomos para batalha juntos, e essa noite, no entanto, aqui estávamos nós, longe de nossa terra, lutando pelo mesmo motivo de sete anos atrás.
A mesma canção soando sem parar no disco quebrado de minha vida... E quantos anos mais eu não lutaria por ela? Minha vida inteira se fosse preciso. Todo e cada ano de minha eternidade, nem que fosse apenas para estar com ela uma vez mais, para pôr os olhos nela novamente, e se fosse preciso que eu morresse para isso, mesmo assim eu faria. Deus sabe que eu faria...
Não importa o que isso me custou nesses tantos anos. Nada... Tudo... Eu não me importava. O problema nunca foi o que eu sentia, era tudo por ela, para ela, e eu faria de novo. Diria cada palavra mais uma vez, lutaria as mesmas batalhas, derramaria cada lágrima novamente. Hoje eu sei que faria de novo, mesmo me arrependendo de tantas coisas que fiz ao longo de minha vida, ela sempre será a parcela imutável de mim, e de qualquer forma, prefiro isso a me lamentar por não ter feito nada.
“Jake, concentre-se. Estamos quase lá.” - Disse Sam em minha mente, a voz branda soando como um eco. Tê-lo novamente dentro de minha cabeça era bem melancólico, me lembrava do tempo das patrulhas pelas florestas de Forks e La Push, atravessando as noites e muitas vezes partes do dia. Eu sentia falta daquela época. Do garoto sem preocupações que vagava por La Push durante todo o dia, da garagem minúscula na qual eu me isolava com meus projetos de sucata. Era estranho perceber o quanto minha vida havia mudado desde então, e descobrir que eu me recordava dessas coisas com cada vez menos freqüência, fazia eu me sentir outro homem, alguém estranho a meus próprios olhos.
“Se apressem.” - Disse a eles, aumentando o ritmo de minhas passadas.
O túnel que percorríamos começava num beco estreito no centro da cidade. Era um buraco disfarçado de esgoto, com grades de ferro fundido e profundidade de cinco metros sob o pavimento rochoso. A largura da entrada nos obrigou a permanecer em forma humana até o final da queda escura e úmida, desembocando depois em um túnel largo o bastante para permitir uma corrida tranqüila para o maior de nós - no caso, eu.
As pontas de minhas orelhas roçavam o cimento úmido acima de nós, e nossas patas afundavam nas poças do chão, borrifando gotas de água negra nas paredes rústicas. A pedra parecia sangrar na escuridão que nos envolvia.
Não foi possível trazer todos, nem era sensato optar por tal investida. A cidade inteira precisava ser varrida em apenas uma hora, e isso exigia uma divisão nas matilhas. Sam, como sempre, liderou muito bem os que trouxe de La Push: Paul, Jared, Embry, Quil, Seth e ..., dividindo-os novamente quando chegamos aqui. Quil e ... ficaram incumbidos de não deixar nada passar dos portões da cidade, a não ser aliados. Minha pequena matilha de sete anos atrás reuniu-se novamente, sendo a maior surpresa da noite a presença repentina de Leah, que veio ao nosso encontro quando já estávamos na Itália. Eu sinceramente não contava com ela. A última vez que estivemos em contato, eu estava no Canadá com Rosalie. Estava desesperado.
Quando senti Leah em meus pensamentos após tanto tempo eu quase tive um ataque cardíaco, e o alívio por não estar mais sozinho tingiu meus pensamentos, o que deixou Leah irreversivelmente presunçosa. Naquela noite eu contei tudo a ela, e mais do que isso, Leah compartilhou comigo a dor que eu até então carregava sozinho. Nós conversamos em silencio por um longo tempo, mas Leah não pôde me socorrer, e sinceramente, acho que não poderia pedir isso a ela.
Leah estava bem, tinha uma vida normal pela primeira vez, tinha um trabalho de que gostava, uma casa, tinha amigos normais... Como eu poderia pedir a ela que abandonasse tudo aquilo que tinha conquistado e corresse de volta para a vida da qual ela tinha fugido, a vida que ela odiava? Eu não podia, pelo simples motivo que sempre entrega a todos nós: eu sentia a dor dela também, eu entendia. E naquela noite eu senti o quanto ela havia melhorado, a leveza na alma dela.
Ela se desculpou, disse que não podia ajudar, que não conseguiria. Eu disse que estava tudo bem, contei a ela o plano, falei dos aliados que estávamos reunindo, das idéias revolucionárias de Carlisle, seria uma luta e tanto, mas Leah desculpou-se e deixou meus pensamentos e eu fiquei novamente naquele silêncio desesperado, olhando para a cara amarga de Rosalie sem realmente ver algo. Leah disse que sentia muito por mim, por minha falta de sorte, e nos pensamentos dela eu provei novamente a pontada amarga que sempre diferenciou Leah de todos os outros do bando. Nessas horas eu preferia Seth em minha mente, mas o garoto estava em casa, estava com Sam, estava fora da matilha dos desgarrados. Leah e eu. Nunca houve um par tão ferrado...
E agora, com ela ladeando meu flanco direito novamente, eu sentia-me satisfeito, sentia-me mais o Jacob que fui um dia. Era bom correr com ela novamente.
"Eu sempre soube que você ia sentir minha falta." - A voz de Leah entrou como um sino em minha mente, e mesmo agora eu não conseguia me acostumar com aquela voz irritante que por tanto tempo ficou fora de minha cabeça. Bem, Leah podia ter mudado em alguns aspectos, mas definitivamente ela ainda era a incoveniente-chefe, velhos hábitos não se perdem, não é?
"Argh! Olha só quem fala. Você ainda é o mesmo Jacob chorão e implicante." - Rebateu ela. Eu poderia ficar brigando com ela a noite toda, apenas para ter um pouco mais das velhas coisas, mas essa noite... essa maldita noite estava me enlouquecendo.
O cheiro dela ficava cada vez mais fraco, como se fugisse de mim, como se uma brisa gelada o tivesse soprado para longe, e eu corria, forçando cada músculo de meu corpo até sentir o fogo lamber meus membros. Só Leah conseguia me acompanhar de perto, e de hora em outra, Sam pedia-me calma, mas isso era tudo que eu não teria essa noite, não enquanto não a encontrasse.
Aquele túnel bolorento se estendia infinitamente, parecia um círculo infinito, a corrida demorou mais do que eu poderia suportar até chegarmos à câmara que Edward nos especificou. Os primeiros sanguessugas nos aguardavam ali, seus rostos de pedra passaram como um borrão por mim.
Eu passei como um foguete pela luta, deixando meus irmãos para trás, eu não tinha tempo para perder com aqueles serviçais inúteis. Nem bem eu saí da câmara e mais da metade dos sanguessugas já estavam em pedaços. Mesmo assim, eu não me sentia bem fazendo aquilo, deixar minha matilha lutando enquanto eu corria, era algo que ia contra minha natureza, todos os meus instintos gritavam. Mas eu não tinha escolha, tinha que encontrá-la, tinha que acreditar que eles ficariam bem...
Aquele covil fedia, eu mal podia me concentrar no leve traço do cheiro dela em meio aquele fedor me queimando o nariz.
Eu estava quase adentrando a segunda ante câmara quando senti Leah e Seth atrás de mim.
"O que está fazendo Leah? Eu mandei você ficar com Sam e os outros." - Minha mente estava entorpecida, eu mal conseguia me concentrar nas palavras, colocá-las em ordem.
''Sam e os outros ficarão bem, eles já terminaram por lá, estão indo para os andares inferiores da câmara. Você precisa mais de ajuda do que Sam, ele não precisa de mim..." - Senti uma pontada aguda atravessando minha mente, um eco da dor mil vezes maior que Leah sentia. Eu não pude contestar, embora quisesse.
"E por quê trouxe Seth?" - Tentei rapidamente mudar de assunto, clarear minha mente, espantar as nuvens que encobriam minha visão.
"E você consegue fazer esse garoto obedecer? Bem, pelo menos eu posso ficar de olho nele." - Os velhos hábitos... Lá atrás Seth nos seguia com um pouco de dificuldade, mas eu tinha que admitir, o garoto estava se saindo muito bem. Desde de que as matilhas se reuniram para a invasão, eu não vira nem mesmo uma vez o garoto molenga que vivia me seguindo por La Push. Seth afinal havia crescido, não era mais uma criança e também não era mais um novato. Os mais novos foram deixados em La Push para proteger a tribo em nossa ausência, ou melhor, na ausência de Sam e os outros, por que eu... Eu estava ausente já havia muito tempo.
Aquele labirinto sem cor me deixava nervoso, eu me guiava pelo cheiro dela, já quase apagado, mas aonde quer que entrássemos não havia nada além de mais sanguessugas nojentos. Meu olfato ardia e quanto mais nos embrenhávamos entre aqueles cômodos gelados, mais difícil se tornava encontrar novamente o rastro dela. Meu coração martelava enlouquecido em meu peito.
Continuamos correndo pelos corredores cheios de pompa, sujando os carpetes com nossas patas enlameadas, colocando portas e mais portas abaixo. Encontramos mais três sanguessugas pelo caminho, e desses eu cuidei pessoalmente, meu instinto protetor aflorava muito mais quando aqueles dois estavam comigo, eu me sentia responsável por eles, e isso de alguma forma jamais mudaria.
Eu forcei minha mandíbula na garganta do infeliz enquanto ele se debatia, guinchos metálicos escapavam de sua boca. Os outros dois estavam sendo desmembrados por Leah e Seth, eu tinha feito o serviço sujo, mas eles fizeram questão de participar.
Arremessei o corpo inerte contra as portas duplas que pairavam no fim do corredor, ele arrebentou a madeira grossa, abrindo o espaço que eu precisava para entrar no grande salão que se acendeu a minha frente.
“Jake, olhe.” – Chamou Leah, e antes mesmo que eu olhasse, eu vi palpitar na mente dela a figura asquerosa pairando como um fantasma nas sombras daquele salão. Estava tudo destruído, o chão de mármore estava rachado, buracos e pilhas de pedra, vidro e corpos desmembrados atravancavam o caminho. Aquilo era sinal de que o plano estava correndo perfeitamente. Jasper e os outros já haviam passado por ali...
Corri em direção do sanguessuga, pulando os montes de escombros, em quanto dava ordens a Leah.
“ Fique alerta, não abra a guarda.” – Eu pensava, repetindo isso como um mantra, sem me dar conta de que estava também lembrando a mim mesmo de não vacilar, simplesmente por quê a vida dela dependia do meu sucesso.
A criatura branca ficou imóvel, me encarando com olhos vermelhos opacos, tão mortos quanto ele próprio. Tudo no rosto dele gritava “eu não me importo”. Ele simplesmente observava minha aproximação como quem observa uma mariposa voar em volta de si.
Deixei apenas cinco metros nos separando, enquanto colocava a matilha em formação. Eu à frente, Leah em meu flanco direito, Seth circundando o inimigo pela lateral esquerda, essa era a formação de batalha...
- Se quer me matar vá em frente, mas tenho que lhe dizer que quem você quer não está aqui. – A criatura falou, no tom mais frio e sem vida que eu já ouvira na vida. Aquele ali parecia realmente um morto-vivo. Seria um jogo? Ele estava blefando?
Não havia mais ninguém. Nenhum sanguessuga num raio de dois quilômetros em qualquer direção que meu nariz conseguia farejar. Ao invés disso, um cheiro acre e pesado tomava o ar, vindo das partes inferiores do castelo. O cheiro dos corpos queimando, o cheiro da justiça sendo feita...
Enquanto o sanguessuga de cabelos cor de mogno apenas nos encarava como bichos de pelúcia, eu tentava decidir o que fazer.
Minhas opções eram estreitas, eu tinha que tirar informações dele, mas não podia me dar ao luxo de ficar em forma humana. Demoraria apenas meio segundo para mudar novamente, talvez até menos, mas eu não podia dar essa brecha. Contudo, como lobo eu não podia falar e não poderia arrancar dele a informação da qual eu precisava. O quê fazer? Arriscar meu pescoço? Arriscar perder a chance de encontrá-la? A resposta veio mais rápido do que eu conseguia processar.
“Jake, é muito arriscado.” – Disse Leah, vendo minha mente trabalhar.
“ Eu não tenho escolha.” – Disse-lhe. “Quero que vocês me cubram. Se ele se mover, vocês atacam.” – Havia resignação na mente de Leah enquanto eu lhe dava as instruções, e nesse meio tempo, a criatura não se movera nem uma polegada, até seus olhos se estagnaram no salão destruído que servia de pano de fundo a meu plano suicida.
Respirei fundo, fechando meus olhos e tentando encontrar dentro de mim a fonte de calor que queimava constantemente. Abafei-a, acalmando as chamas que fluíam por meu corpo.
Quando meus pés humanos tocaram o chão, e eu pude sentir a ar frio vir de encontro a meu peito nu, eu sabia que aquela era provavelmente a coisa mais insana que já havia feito.
A criatura nem ao menos me olhou enquanto eu mudava de forma.
- Ei. – Chamei-o. Um rápido deslocar em suas pupilas opacas, nenhuma uma expressão em seu rosto poeirento. – Diga-me onde está a garota. A mestiça Cullen que vocês roubaram. – As palavras saíam tortas de minha boca, talvez por quê eu as mastigasse como barras de ferro. Aquele rosto... Sim, ele era um dos anciões, agora eu me lembrava daquele rosto inanimado no meio daquele trio de mantos negros. Mas onde estariam os outros dois?
- Eu lhe fiz uma pergunta. – Rosnei.
- E por quê eu deveria lhe dar a resposta? – A voz grave e fria combinava perfeitamente com seu semblante moribundo. Por um momento eu não soube o que dizer, principalmente por quê ele não parecia se importar em morrer, ele quase parecia desejar isso, embora seu rosto pálido não tivesse nenhum traço de desejo algum.
- Me parece que você não teme a morte, não é? – Os olhos leitosos pararam em meu rosto e pela primeira vez eu vi uma centelha brilhar no fundo daquele mar morto. Continuei. – Você é um ancião, deve estar muito zangado por termos destruído tudo que você governa. Vocês perderam tudo. E eu não me refiro apenas a esse castelo que está em ruínas, nem a seu exército reduzido a cinzas... O mundo todo já sabe sobre as mentiras de vocês, e adivinhe só... Boa parte do mundo está aqui em Volterra essa noite para destruir vocês. – Deixei um sorriso sádico brincar no canto de meus lábios, só para incitá-lo.
- Garoto... – Ele sussurrou. – Você não conhece nada do mundo, principalmente desse mundo. Você viveu o quê? Uns vinte anos? Acha que entende a dor? Acha que entende a guerra? – Eu não sabia o por que, mas aquelas palavras, proferidas com tanta frieza e indiferença, abriram um buraco em mim. Por um momento eu vi a fenda infinita na alma daquele ser. Ele continuou com ar cansado. – Esse não é mais meu exército, e embora eu tenha construído esse castelo, a dona dele já não está entre nós há muitos séculos. Tudo que você vê aqui, tudo que destruiu aqui, são frutos da ganância de Aro, e eu sempre soube que terminaria assim, eu sempre soube que chegaria o dia em que eu caminharia por entre as ruínas do meu castelo. – A voz dele tornava-se mais audível, como uma torrente que ameaça romper a barreira. Eu não conseguia desviar meus olhos daquele rosto, e não podia deixar de sentir a dor amortecida que pairava em volta daquele ser, eu me perguntava o que acontecera a ele para ter secado assim, como uma fruta colhida antes da hora.
- Acha que eu me importo com que você procura aqui? Acha que sua busca e sua vingança são importantes para mim? Isso não significa nada para mim...
- Então creio que não se importe em morrer aqui e agora, assim como não se importará que eu mesmo faça isso. Na verdade eu só vou terminar o que começaram, por quê você já está morto. Eu só vou formalizar. – Eu cuspi as palavras num lembrete de que eu não podia vacilar. A conversa precisava terminar.
Ele me olhou, os olhos sem vida me fitando sem se perturbarem.
- Vai me dizer onde está ela? – Dei-lhe a última chance, mesmo sabendo que seria inútil.
- Vá para o inferno.
Deixei o fogo me tomar, subindo por minha coluna como uma serpente de calor. Os tremores já subiam por meus ombros quando uma voz clara como cristal rompeu o silêncio.
- Jacob Black, pare! Não o mate. – Eu olhei em direção a voz, e meus olhos encontraram uma cena que certamente era a última que eu esperava ver por aqui.
Um sanguessuga que eu nunca vira na vida vinha arrastando uma humana que mancava. Ele tinha várias marcas de mordida, iguais a de Jasper, e suas roupas estavam rasgadas e parcialmente queimadas. Ele sentou a humana num degrau, e com todo cuidado do mundo disse-lhe ao ouvido.
- Fique aqui. Está tudo bem. Shhh, eu vou ficar bem. – A humana tentava detê-lo, não queria que ele chegasse perto de nós. Leah se inquietou, e Seth estreitou o espaço entre mim e os dois sanguessugas.
- Jacob Black. – Disse o sanguessuga. – Meu nome é Willian, e este que você está prestes a matar é meu pai. – Ele se aproximava cauteloso, o rosto liso e pálido contrastava na escuridão. Olhei-o, tentando chegar a alguma conclusão, tentando entender por que uma humana estaria ali, e por quê diabos ela ainda não tinha virado almoço.
- Primeiramente. Eu não ligo. Ele é um Volturi, e todo Volturi que eu encontrar hoje vai morrer. E Segundo. Me dê um bom motivo para não matar você junto com ele e levar essa humana que você carrega para um lugar seguro. – Eu estava ficando confuso com aquela situação, meu tempo corria mais rápido que eu, que estava aqui, parado entre essas criaturas nojentas.
- Eu sei, eu sei... Mas eu lhe peço, não nos machuque. Quanto à humana, a única coisa que quero é tirá-la daqui com segurança. – Disse ele, aproximando-se cada vez mais.
- Aí está bom. – Rosnei. Ele parou.
- Desculpe. – Disse ele.
- O quê está fazendo, seu idiota? – Grunhiu o sanguessuga mais velho. – Eu não quero sua ajuda. Saia daqui com essa humana patética.
- Eu não vou deixar você aqui para morrer. – Respondeu o outro.
- Como se você se importasse se eu vivo ou morro.
- Pare de tentar se matar. Isso não vai trazê-la de volta.
- Cale-se seu bastardo.
- Calem a boca vocês dois. – Gritei. Os dois me olharam. Eu estava decidido.
- Leah, Seth, esses dois vão se entender na fogueira. Quando acabarmos aqui, quero que um de vocês leve a humana para os portões da cidade. – A humana soluçou, o rosto abatido molhado de lágrimas.
- Espere Jacob. – Disse o sanguessuga mais novo.
- O tempo de vocês acabou. – Deixei o tremor subir por meu tronco novamente, incitando o calor.
- Jacob, eu sei onde a Ness está.
Meu sangue esfriou na mesma hora, cessando os tremores e fazendo meu coração dar um salto. O sanguessuga sabia o apelido dela, o nome que eu a chamava desde o dia em que nasceu. Olhei para ele, meus olhos quase pulando das órbitas.
- Onde? Onde ela está? – Perguntei, enquanto me aproximava dele sem me importar se era um truque ou não. Ele sorriu.
- Você é exatamente do jeito que ela descreveu.
O túnel que Willian descreveu surgiu em minha frente como uma centelha de esperança. Eu acelerei ainda mais, e enquanto atravessava o fogo que consumia quase todo aquele andar, eu sentia o cheiro denso no ar. Eu mal podia respirar.
“ Jake, o castelo inteiro está em chamas. Dê um jeito de sair logo daí.” – Disse Leah. Ela e Seth escoltavam Willian e a humana chamada Lavínia para fora do castelo. Sam e os outros já haviam saído e agora perseguiam o rastro de Aro, as imagens na cabeça de Sam me dizia que eles estavam perto.
“Leah, procure Bella, diga a ela que estou perto.” – Eu não conseguia pensar em mais nada. Tudo estava acontecendo tão rápido. Como eu poderia imaginar que o tal Willian, filho de um ancião Volturi, estava ajudando minha Ness? Eu não tive tempo de ouvir a história inteira, mas pelo que pude entender, eles ficaram próximos por quê ambos queriam a mesma coisa. Mas certamente ele se encantou com ela, quem não se encantaria? O mais bizarro nessa história, era a tal humana que Willian não largava nem por um minuto. Eles me lembravam Edward e Bella...
O túnel era estreito demais para meu tamanho, eu quase tive que me espremer em alguns trechos. Em minha mente eu repassava as palavras de Willian. “O túnel que Ness encontrou desabou, é impossível até para mim atravessá-lo. Você vai entrar três metros no túnel e logo vai ver o buraco que abri na parede ao lado, foi por lá que escapei. Ele desemboca diretamente numa passagem da tubulação da cidade, igual aos que a guarda geralmente usa para se locomover pela cidade. Se puder alcançar essa passagem você só precisa correr até encontrar uma saída.” E eu estava correndo agora. Do fogo à água fria, minhas patas afundavam, mas eu já podia sentir a corrente de ar em meu rosto.
Quando cheguei à superfície, percebi que tinha desviado muito do local onde Willian disse que ela iria. A igreja. Eu já me preparava para correr quando uma brisa gelada soprou do leste, e um leve traço do cheiro dela me alcançou. A chuva atrapalhava, me confundia, tornava cada rastro mais ameno, mas aquele era um cheiro que eu poderia rastrear até no meio de um furacão. E o rastro ia para leste. Ela não estava na igreja.
Saí em disparado pela chuva, contornando as casas e os becos estreitos, encontrando por todos os lados os aliados que o doutor trouxe de todas as partes do mundo. O mesmo plano de sete anos atrás, o melhor que tínhamos em mãos. Infelizmente, Aro foi mais esperto dessa vez, e tratou logo de silenciar as testemunhas que estiveram conosco naquele inverno.
Sobraram poucos, muito poucos...
Fiz a curva numa esquina escura, e logo que adentrei na rua o cheiro me nocauteou como um punho de ferro. Ela estava perto, e não estava sozinha.
Algum maldito Volturi estava levando ela enquanto nós lutávamos, teria sido um bom plano se eu não existisse.
Fui o mais silencioso possível, o mais paciente possível. Era preciso ter calma agora, eu não sabia quem era o Volturi que estava com ela, não sabia se tinha alguma habilidade, eu não poderia falhar.
Ele parecia distraído, algo incomum nessas circunstâncias. Não deixei a oportunidade passar.
Ele entrou num beco, ela estava logo atrás. Era minha chance.
Ele parou quando me viu, eu me agachei, sentindo meus pêlos se eriçarem nas costas e não pude conter o rosnado que escapou por minha garganta.
Como eu queria olhar para ela, como eu queria me ater apenas por dois segundos para admirá-la, mas eu não podia desviar meu foco do inimigo. Eu teria de matá-lo agora.
Avancei diretamente para ele, ouvi ela gritar lá atrás, ela devia estar tão assustada... Isso só inflamava mais meu ódio.
Minha mandíbula quase o pegou, mas o desgraçado era rápido. Ele desviou para esquerda, mas eu consegui pegá-lo. Minha pata dianteira alcançou o ombro dele, meio milímetro a mais e era menos um braço. O sanguessuga caiu entre as latas de lixo, fazendo um barulho dos infernos. Avancei, deixando o ódio calibrar meus músculos, dando tudo de mim naquela luta.
Nessie correu em minha direção, e por pouco eu não a tirei dalí correndo. Mas eu não podia, eu tinha que terminar aquilo. Saltei sobre ela, e parei bem em frente ao desgraçado. Eu já não ouvia mais nada. Só enxergava o ponto onde eu devia acertar.
Ele se levantou mais rápido do que eu previa e quando eu já me preparava para abocanhar, meus olhos escureceram completamente. De repente, eu estava completamente desorientado, eu não ouvi nada, não via nada e não sentia cheiro algum. Um desespero latente tomou conta de mim e com um estalo eu percebi que aquele era o Volturi que a levou naquela noite. O ódio era a única coisa pulsante em mim.
Ataquei mesmo sem saber nem mesmo para onde ia, contando apenas com um pouco de sorte. Ele estava perto demais, se eu fosse rápido, talvez o alcançasse. Era tudo ou nada.
Eu mordi algo sólido, e isso era algo que eu ainda podia discernir. Quando senti a coisa maciça entre meus dentes, eu chacoalhei, apertei com força. Poderia ser uma lata de lixo, mas também podia ser a garganta dele.
Arremessei, e por meio segundo minha visão voltou parcialmente. Eu estava certo, era a perna do maldito o que eu alcancei. Saí em disparado, eu não podia perder tempo, sanguessugas só param quando tem a cabeça arrancada, e infelizmente a dele ainda estava no lugar. A escuridão tapou meus olhos novamente, e eu fui obrigado a adotar uma ofensiva violenta. Ele poderia tentar se aproximar por traz, ele poderia tentar qualquer coisa. Eu ataquei tudo a minha volta, eu não iria facilitar para ele. Enquanto corria na direção em que ela estava na ultima vez que o vislumbrei, eu senti uma presença se aproximando de mim rapidamente. Eu joguei meu corpo, me debati, e continuei correndo.
Senti um pressão violenta em minhas costelas e o entorpecimento em meus sentidos aumentou de uma forma tão densa que eu já não sabia se estava de pé ou caído no chão.
Eu estava perdido, me afogando numa escuridão sem cheiro, sem tempo e sem espaço. Eu sabia que minhas costelas estavam quebradas, mas eu não sentia nada, não sentia nem mesmo meu coração batendo. E embora estivesse tão perto da morte, eu só conseguia pensar nela. A dor de perdê-la novamente era a coisa mais forte que eu era capaz de sentir, e apenas isso me dava a certeza de que eu ainda estava vivo. Me debati, tentei encontrar minhas pernas, tentei encontrar meu corpo, mas ele parecia ter sumido.
Não sei quanto tempo se passou, era impossível saber, parecia a eternidade. Subitamente, como quando a gente fica muito tempo embaixo d’água, eu encontrei o céu escuro sobre mim. A chuva caía em meu rosto e pinicava contra minha pele quente, eu estava em forma humana, o lobo dentro de mim sucumbiu ao escuro, me deixando aqui, vulnerável como um boneco. Minha respiração estava fraca, doía... Devagar, mas com um grito de desespero preso em minha garganta, eu me levantei, já sentindo o cheiro de sangue me alcançar. “Shhh, vai ficar tudo bem meu amor.” A voz sussurrava para ela, como se estivesse cantando. Eu vi uma estaca de ferro atravessando a perna dela, o sangue dela se espalhando pela rua, eu vi os olhos dela presos nele como alguém que observa um milagre. Ele a beijou. Com carinho, cheio de um amor que só eu era capaz de compreender. Com cuidado, como se ela fosse de cristal, como se ela pudesse quebrar sob o mais leve toque. Ele pressionou a ferida, estancando o sangue, como se aquele líquido que tingia as mãos dele nada significassem, como se sua garganta não queimasse feito brasa de sede. Então eu entendi. Ele a amava também, quem não a amaria? E ela... Ela estava tentando proteger ele, não queria que eu o matasse.
Mas eu poderia atender esse desejo? Eu seria o cara maduro e forte mais uma vez? Eu teria forças para sair do caminho, para ser o altruísta? Que maldita sina era essa?
Presenciar o amor dele não foi o pior. Eu poderia viver com aquilo, era suportável. O que me matou foi escutar o coração dela martelando enquanto ele a beijava, foi ver no rosto dela um consentimento absoluto para aquele beijo. Ela o queria...
Ela me olhou, desvencilhando-se das mãos dele como uma criança que é pega fazendo besteiras. Os olhos dela ainda tinham um leve traço de vermelho, mais estavam mais humanos do que estavam da última vez que a vira. Marrom, aqueles olhos que me esquentavam.
- Jake... – Ela falou, e por um momento eu tive que segurar as lágrimas. Aquele era o som da minha vida, o som mais importante, o mais precioso. Eu me sentia um nada, e por um breve momento eu entendi como alguém poderia ficar como aquele pai do Willian, aquele ancião Volturi morto-vivo, uma casca oca.
Eu não podia culpá-la, não tinha direito de me sentir traído. Ela nunca me prometeu nada. Uma noite, foi tudo que ela me deu, e embora tivesse significado tudo para mim,eu não podia esperar o mesmo dela. Eu também não podia matá-lo, assim como nunca pôde matar Edward quando pensava estar apaixonado por Bella. Esse era o tipo de armadilha da qual só se escapa dando um tiro no próprio pé.
Eu não podia fazer nada, e no momento não conseguia pensar. A coisa mais importante: ela estava segura. Seria levada para a família, Bella e Edward chegariam logo. Leah viu toda a luta, ela cuidaria disso pra mim. A coisa estava terminada, a cidade estava em chamas, os sanguessugas italianos estavam fritando. Eu não tinha mais nada para fazer aqui.
Capítulo 37 – Nuvem Negra
O ar estava tomado por uma densa névoa que não se dispersava, não se movia, apenas tornava-se cada vez mais pesada, mais irrespirável. O cheiro tóxico da cidade que era consumida até sua última casa, enchia meus pulmões, queimava meus olhos. Eu corria, cambaleante, pelas ruas cinzentas e desertas. Meus joelhos tremiam e a fraqueza amolecia cada parte que ainda resistia em mim. A sede era abrasadora, eu nem me lembrava da última vez que senti o sangue quente descer por minha garganta, e embora eu fosse metade humana, hoje, eu me sentia o menos humana possível. A única coisa que ainda me mantinha de pé era ele, aquela última imagem de seu rosto que ficara gravada em minha retina, queimando tanto quanto a sede em minha garganta ressecada.
Eu perdi muito sangue, perdi muito tempo, contudo, dentre todas essas coisas, o que eu mais temia perder era ele.
O fogo se alastrava depressa pelas ruas, consumindo as casas como um monstro faminto. Benjamin estava fazendo um bom trabalho. Por onde quer que eu passasse, correndo cambaleante pelos escombros, eu podia sentir o cheiro dos corpos queimando e em alguns becos, ainda era possível vislumbrar um par de olhos vermelhos girando nas órbitas no meio das chamas. Eu corria, ignorando a dor crescente em meu corpo, a falta de ar em meus pulmões, e agradecia silenciosamente por não haver mais nenhum humano na cidade, Deus sabe o que eu faria com a sede latejante que eu estava sentindo. Eu ainda não sabia como minha família conseguiu evacuar a cidade sem que a guarda desse conta, sem que os humanos desconfiassem. Sinceramente, todas essas perguntas sem respostas enfraqueciam diante do meu temor maior. Jake, onde você está?
Eu não sabia ao certo onde estava, nem se meus pés iam na direção certa. Eu tentava farejar, seguir o rastro quente dele, mas era quase impossível com toda aquela fumaça sufocante. O desespero me espreitava em cada canto escuro, em cada curva incerta na qual eu chamava por ele sem obter nenhuma resposta. Segui na direção em que o vira pela última vez, se afastando de mim e da dor que eu causava nele. Aqueles olhos escuros me torturavam enquanto eu o procurava naquela cidade morta, eu revia seu rosto vazio, tão diferente do que era, como se a parte quebrada o tivesse modificado profundamente, e tinha medo de encontrar um estranho.
Eu sentia borbulhar dentro de mim, num lugar completamente desconhecido, uma sensação que me assustada. Eu via um abismo me dividir ao meio, tão profundo e desolador que me fazia desconhecer meus próprios sentimentos. Eu estava tão confusa, tão perdida dentro de mim mesma. Tudo que eu queria parecia ser errado, todas as minhas ações eram falhas e não importava para que lado eu corresse, eu sempre magoava alguém. Eu fiz tudo errado desde o começo. Eu nem deveria ter saído de casa primeiramente. Foi um erro mentir para minha família, foi um erro arrastar Jacob para o buraco comigo, agora nós dois estávamos machucados e perdidos dentro de nossos caminhos que nunca levavam a lugar algum. E então, como se a piada em minha vida não fosse suficientemente de mau gosto, eu fui parar bem no centro de uma guerra que deveria ter sido travada há séculos. Uma guerra com tantas ramificações, que parecia mais uma teia viva, prendendo qualquer um que se aproximasse, inclusive eu. Destino sempre foi uma mera palavra para mim, nada mais que uma analogia as coisas que não podemos controlar em nossas vidas, mas agora... Tudo parecia tão confuso. Quando eu olhava para trás e me deixava levar pelo retrocesso de minha vida, eu custava a acreditar que tudo tenha sido um mero acaso construído por acertos, erros, enganos e palavras ditas em horas oportunas.
São opções demais, inúmeras chances, uma margem muito grande de erros para se chamar de acaso, e contudo, aqui estava eu, com toda sujeira em minhas mãos e nenhuma idéia do que fazer. Eu tentava separar as coisas em pilhas, organizar as prioridades em minha mente, mesmo sendo incapaz de desviar meus pensamentos dele, mesmo lutando com o desespero, teimando com o destino que gargalhava na minha cara. Mesmo prestes a desmoronar, eu me esforçava para entender o que estava acontecendo comigo.
Eu amava Jacob de uma forma instintiva, como se tivesse nascido para isso, como se ele fosse tudo o que eu precisava, tudo sem o qual eu não poderia viver. Eu o amei desde o primeiro momento, de formas distintas, que se transformaram com o tempo, me transformando também, fazendo meu coração amá-lo como irmão e posteriormente como homem. Ele sempre esteve lá por mim, sempre...
Era estranho pensar que, em nossa primeira noite juntos, como dois adultos, como dois amantes, o mesmo Alec que agora confundia todas as minhas certezas, que balançava minhas sólidas estruturas, esteve lá, naquela sala pequena no meio do nada, de onde me roubou de minha família, de Jake e de mim mesma. O que Alec havia feito comigo? A coisa estranha que brotou e cresceu dentro de mim durante os dias em que estive com ele merecia ser chamada de amor? Eu não queria pensar nessa hipótese, e cada vez que, em meus pensamentos mais íntimos, eu confessava para mim mesma que o amava, eu sentia uma ferroada em meu peito, como se tal sentimento me fosse vetado, como se meu coração não aceitasse esse outro amor, que sem pedir licença a ninguém, se alojou dentro de mim de uma forma resoluta. Eu estava perdida...
- Jake! – Chamei, tendo como resposta o eco distante de minha própria voz. Parei por um instante no meio de uma rua estreita, onde o fogo formava um túnel sem saída. Eu não podia prosseguir. Minhas única opção era voltar e tomar outro caminho, mas eu sabia, pelo pouco que consegui rastrear, que Jacob não estava mais ali, não estava em parte alguma.
Caí de joelhos no asfalto coberto de cinzas, minhas mãos afundaram na fuligem negra. Nada... Apenas eu e meus enganos no meio do fogo, apenas minha fraqueza inerte, meus pensamentos turvos. O que eu faria se ele não voltasse? Se ele nunca mais quisesse me ver? O que eu faria sem a esperança que depositei nele, a única fonte da minha resistência.
Eu não conseguia imaginar como seria. Eu nem ao menos tinha uma explicação convincente para dar à ele. Jacob poderia voltar para La Push e me esquecer, por quê nada do que eu dissesse apagaria a cena que ele viu. Eu não me sentia digna do perdão dele.
Uma lágrima silenciosa escorreu por meu rosto e caiu sorrateira em minhas mãos sujas de cinzas. Eu não conseguia sentir meu corpo, era como se minha alma tivesse se desprendido e agora ela me observava de longe, de um lugar distante demais para ser encontrado. Só percebi que estava chorando quando meus soluços quebraram o silencio cadenciado da noite, juntando-se com o estalar furioso do fogo que ardia a minha volta. Enterrada no fundo de minha mente, havia a consciência pálida de que, se eu não me movesse e saísse logo daquele lugar, eu queimaria viva junto com Volterra,
- JAKE! – Gritei com toda força de minha dor. A sede rugiu como uma fera enjaulada dentro de mim. Eu estava trêmula, fria e quase já não sentia o ar entrar em meus pulmões.
Eu tinha coragem para morrer ali? Eu estava mentindo para mim mesma quando dizia que não poderia viver sem ele? E Alec...? E minha família...?
Talvez eu estivesse mentindo, esticando a mentira até que ela se parecesse com uma verdade. De fato eu nunca havia pensado na possibilidade de uma vida sem Jacob. Nunca, antes de toda minha vida ser bagunçada dessa forma, eu havia tentado imaginar esse quadro. Contudo, aqui estava eu... desesperada, lívida frente ao fantasma da ausência dele, perdida sem o calor daquele amor que sempre fora meu – indivisível e inquebrável.
Eu via os rostos familiares se alternarem frente a meus olhos, se acendendo e se apagando como uma lanterna distante, um farol que tentava me guiar de volta pra casa. Mas eu não conseguia, mais que isso... Talvez eu não quisesse voltar para um lugar onde não houvesse ele, o som cálido de sua risada rouca, o cheiro quente que me envolvia e me embalava por completo. Eu queria pensar em meus pais, em Alec, em todos que vieram até aqui por mim, parecia injusto retribuí-los dessa maneira, mas o egoísmo de querer ceder à dor, de não querer mais sentir o que eu estava sentindo, era maior que qualquer anseio altruísta. Existe um momento, quando se está mergulhado em intensa dor física e mental, que sua mente começar a buscar saídas, você só pensa em maneiras de aliviar a dor, de livrar seu corpo daquele tormento que se espalha e se mistura até não se poder ver nada além da morte, até não se desejar nada além da inércia profunda e definitiva. Sim, eu estava sendo terrivelmente egoísta e covarde, eu podia conviver com isso desde que essa dor aliviasse, desde que eu me visse livre do peso esmagador sobre meus ombros.
Jacob não ia voltar, não do mesmo jeito. Eu o veria de novo, ele ia terminar o que começou aqui esta noite, ia lutar até o último Volturi cair, eu o conhecia bem, certamente ele ficaria. O que eu temia mais, era ver nos olhos dele o sentimento quebrado, a decepção, a acusação muda que refletia minha própria culpa. Eu não suportaria vê-lo me odiar, embora eu não pudesse pedir nada além disso.
Cada pensamento se alternava em minha mente como ecos reverberando num cômodo vazio, chocando-se contra as paredes do meu cérebro, misturando-se ao som fraco do meu coração. Meu corpo tremia, eu tossia, sufocando com a fumaça cinzenta que agora cobria tudo, como um manto de nuvens maciças. Imersos na cortina de fumaça, os sons ritmados das casas desmoronando e do fogo crepitando sobre as árvores enchiam o ar com uma melodia funesta. Tudo desabava a meu redor, tudo cedia ao fogo que em poucos minutos também me alcançaria. Tudo que eu era seria consumido, todos os sentimentos que guardei dentro de mim seriam reduzidos à cinzas, queimando como uma pilha de papel sem importância.
Eu não queria morrer sob essas condições, não queria esquecer o rosto dele, os momentos felizes com minha família, o cheiro da floresta após a chuva, a cor do céu de Volterra – sim, até esse pequeno detalhe eu queria guardar comigo – mesmo dentro de um pesadelo, aquele era o céu mais bonito que já vira. Todas essas coisas encobertas pela minha agonia vinham à tona agora, e eu só conseguia pensar que elas não poderiam deixar de existir, se eu morresse, eu sei que as perderia para sempre. Memórias que se apagariam junto com a luz de meus olhos. Justo eu, que nasci para ver todas as coisas...
Mas o que eu poderia fazer? O que? Ficar aqui, ajoelhada em meio ao fogo era tudo que eu conseguia fazer. A morte parecia mais assustadora que nunca. Todo meu corpo doía, vazio e gelado. Quase não havia sangue em mim, meus olhos ardiam com a luz alaranjada, o fogo parecia cozinhá-los nas órbitas. Eu queria chorar, lavar minha alma, mas minhas lágrimas subitamente secaram, como se eu mesma estivesse vazia, seca como as folhas de outono.
A noite estava iluminada, a cidade se acendia como uma estrela na escuridão, o céu mais lindo do mundo estava fechado num rubro negro sombrio, pronto para descer cobre Volterra e engoli-la em sua imensidão intransponível.
Eu observei meu corpo tombar, inerte como um brinquedo sem pilhas, e novamente eu senti que minha alma me encarava de longe. Então é isso, eu pensei... essa é a face de minha morte. Obriguei-me a encará-la sem medo e me entreguei aos braços frios que me rodearam num torpor silencioso.
Num segundo suspenso no limite da consciência, eu ainda pude ouvir o uivo melancólico de um lobo subir ao céu escuro.
Fechei os olhos.
***
- Faça pressão Edward, não pare.
- A pulsação está muito fraca Carlisle, ela não tem sangue para bombear.
- Meu Deus Edward, meu Deus...
- Calma Bella, nós não vamos perdê-la. Agora, ajude Edward a controlar a pulsação. Verifique a respiração, ela tem que respirar...
- Nós não devíamos tê-la deixado sozinha com aquele Alec, Edward...
Um túnel. Distante e escuro. Breu e vozes soando longe.
Um frio desorientador. Era isso o que eu via, era isso que eu sentia. Meu corpo era um nada, eu não o sentia em lugar algum, e minha mente apenas vagava confusa por um espaço atemporal.
Eu não podia entender aquelas palavras, mas as vozes que murmuravam sobre mim, eram tão suaves, aveludadas... Eu gostei de ouvi-las. Tentei encontrá-las no turbilhão indistinto daquele silêncio encômodo. Eu queria ouvir o som das palavras embalando meus sonhos turvos, borrados...
- Ela precisa de sangue Edward, e nesse ponto... No estado dela creio que sangue animal não vai ajudar em nada. – A voz serena murmurava rapidamente, sem perdera constancia aveludada de suas palavras. Soava como cordas de nylon vibrando no espaço, cada nota subindo em espirais perfeitas.
- O quê está sugerindo Carlisle? Que eu terei que escolher entre a vida de minha filha e a de um inocente? – Essa era a voz que eu mais gostava. Tão linda, ao forte e vibrante. Parecia-se com cristais. Se pudesse ser tocada seria como seda.
- Eu não sei o que fazer Edward, ela não reage a nada... – Eu sentia tanto frio. E contudo eu não podia tremer, estava inerte, presa num corpo gelado e imóvel. Eu sabia que, em algum lugar, havia um coração, eu podia ouvi-lo ao fundo, um murmúrio lento e fraco que se misturava com as vozes perfeitas que conversavam entre si.
- Edward, nós não temos escolha. – Disse a voz feminina, um sino de vento soando na escuridão que me envolvia. Eu gostava dessa também... Era tão familiar que por um momento eu pensei estar vendo-a sob minhas pálpebras fechadas. – Eu não posso suportar isso Edward, não posso ficar aqui vendo minha filha morrer. Eu daria meu sangue se ainda tivesse algum em minhas veias, mas nem isso eu posso fazer por ela. Então não me olhe assim. Se alguém tem que morrer para que minha filha viva, eu aceito. Vou agora mesmo buscar alguém na cidade vizinha. – A voz radiante brilhava como uma estrela na imensidão obscura onde eu me encontrava. Era como olhar para o céu noturno e ver lá longe um lusco fusco incandescente.
- Não vai precisar ir tão longe Bella. – Um novo clarão, uma nova voz surgindo no tapete negro. O céu se abriu em uma rajada de fogo, desfazendo-se sob a luz quente que aquela nova voz trazia. Era uma ressonância macia, mas tão forte que alcançou o plano real, e subitamente eu senti aquele coração distante que falava tão baixo, bater com mais força. Era como um choque elétrico passando por meu corpo entorpecido.
- Jake, vice não vai fazer isso.
- E por quê não?
- Jacob, ela vai precisar de muito sangue. – A voz suave e calma quase sussurrava.
- Nós já fizemos isso antes. – Disse a voz rouca, soando mais perto. Eu senti a luminosidade vertiginosa daquela voz, clareando minha mente turva como se mil vela tivesse, sido acessas diante de meus olhos.
- É diferente Jacob. Naquela vez ela sugou só o sangue sujo das suas veias, uma quantidade insignificante para alguém como você. Agora ela precisa de muito, mesmo para você é muito sangue, você pode não sobreviver...
- Eu não me importo. Vamos logo com isso.
- Jake, não! Pare. Você não vai se matar.
- Bella, nós não temos escolha. Não há humanos por aqui,e mesmo se houvesse, eu não vou ficar aqui olhando você drenar um inocente. Se precisa ser feito, sou eu quem deve fazer. Além disso, pode ser que eu sobreviva, o doutor mesmo disse que eu sou forte. – Um silêncio pesado caiu sobre meus ouvidos. Por um momento pensei que havia perdido de vez as vozes brilhantes que me distraiam do frio. Tive medo do silencio, eu queria ouvi-los, queria sentir as notas formando cores em minha mente vazia.
Quando o desespero começava a me alcançar, a voz melodiosa da mulher sussurrou:
- Como isso foi acontecer? – Aquele lamento sufocado atravessou minha mente como um punhal. Uma melodia triste demais para eu suportar. Eu queria chorar, mas eu não encontrava meus olhos em lugar algum.
- Não temos tempo para isso agora, Bella. Deixe-me dar o sangue a ela. Depois conversamos. – Outro minuto de silencio, outro minuto de medo e escuridão. E então algo aconteceu...
Eu não sei bem como. Eu senti uma dor aguda em alguma parte do corpo que até então eu não sentia. Era como se eu tivesse sido puxada de volta a meu próprio corpo, como se por um momento, minha alma estivesse solta, flutuando num espaço inexistente. Eu senti meu coração. Ele estava quase desistindo. Lute – eu gritei para ele – mas não houve resposta. Meus coração se esforçava em suas últimas batidas oscilantes.
- Eu estou aqui. Você me encontrou. Eu nunca iria embora sem você. – O frio cedeu gradativamente, eu ainda não sabia como, mas a escuridão invencível que parecia prestes a me tragar, dissolveu-se no calor daquelas palavras sussurradas tão carinhosamente para mim. Elas me afagavam como luvas de plumas. Eu sentia o hálito quente em meus ouvidos, apenas um segundo antes de reencontrá-los. E assim, em cada parte entorpecida do meu corpo, eu pude sentir o peso da vida que estava me deixando aos poucos.
- Preciso que faça algo por mim. – Disse a voz rouca, e no mesmo instante eu soube que ele não estava falando comigo, o brilho tremeluzia.
- Qualquer coisa Jake. – Respondeu a voz clara e melodiosa da mulher.
- Se eu não der conta... – Um pausa. Um suspiro pesado. – Levem meu corpo para meu pai.
- Eu tinha uma vaga consciência despertando em mim. Eu sabia quem eu era, mas não sabia dizer onde estava ou como havia parado ali. Eu via escuridão. Eu ouvia cores... Elas cantavam para mim, amenizavam o pavor daquela semi morte, e quando fazia-se silencio, era como apagar as luzes.
- Será feito. – Disse a voz cristalina, as palavras deslizando como água.
- Muito bem então.
- Jake. – Chamou a mulher.
- Sim.
- Quando for o suficiente, eu vou pará-la.
- Não se preocupe com isso. O importante é que ela fique bem. Concentre-se nisso.
Eu queria entender aquelas palavras, mas minha mente estava adormecida. Ela apenas sonhava com cores e sons, influenciada por aquelas vozes magníficas, feliz por tê-las por perto. Eu sabia que eu estava morrendo... Mas desde que eu não ficasse sozinha, no silencio e na escuridão, então tudo estava bem.
- Ela sabe que está morrendo. Mas ela não está com medo, está sonhando... Está em paz.
Sim, sim... Paz. Alguém dizia algo assim, a voz de seda desenhava meus pensamentos, e eu adorava ouvi-la sempre adorei...
- Ela não vai morrer. – Ah, aquela outra voz... O oposto das vozes melodiosas que sempre murmuravam tão baixo e cadenciadamente. Era como fogo e gelo, e essa me queimava.
Eu sonhava com o campo, com a grama salpicada com o orvalho da manhã. Sonhava com o crepúsculo, o céu tingido de vermelho. Quadros que se misturavam, e logo vinha outro, e mais outro... Todos tão evanescentes. Eu podia sentir a grama sob meus pés, e o vento em meu rosto. Eu queria correr até minhas pernas cansarem.
- Eu preferia que vocês não vissem isso. – Murmurou a voz rouca, esquentando meu corpo recém descoberto. Eu senti o calor contra minha pele, e outra onda de choque correu por minhas pernas e braços gelados.
Tudo emudeceu. Todas as vozes brilhantes se calaram, haviam partido.
Exceto uma, mas essa não dizia muita coisa, apenas me reconfortava. Eu sentia pele quente sob meu corpo, envolvendo-me um abraço intransponível.
O quê era isso? O que era esse fogo me queimando de dentro para fora? Esse cheiro. Esse gosto terrivelmente bom escorregando por minha língua?
Era mais do que eu podia suporta, senti-me tonta de desejo, embriagada por aquele cheiro doce, aquela textura magnífica. Eu o queria tanto que chegava a doer. Meu corpo todo queria aquilo, implorava por mais...
- Tome Ness. Não precisa chorar, está tudo bem. – Sim, eu não tinha me dado conta do que estava chorando, mas agora eu percebia. Eu estava sofrendo em cada gole quente que tomava para mim, ávida e incapaz de me deter. Me doía sentir aquele desejo febril. Era esmagador, incontrolável.
Minha mente se acendia com tanto calor. Meu coração martelava, frenético em meu peito. Eu podia ouvir o vento passando sobre a superfície escarpada da rocha, levantando as cinzas numa espiral constante. Eu podia ouvir o coração dele, batendo forte sob minhas mãos semi aquecidas. Eu gemia com a intensidade da sede, que tornava-se mais voraz a cada nova gota preciosa. Eu sentia que estava emergindo de uma grande profundidade, era como se meus ouvidos se livrassem da pressão incômoda que me ensurdecia.
Aos poucos, como o amanhecer, como se o sol estivesse inundando o céu de luz e calor, minha visão obscurecida empalideceu, clareando a cada batida estridente do meu coração.
Eu vi o céu - de verdade - pairando majestosamente sobre mim, com sua imensidão silenciosa se estendendo até onde meus olhos o perdiam de vista. Um tapete negro salpicado por nuvens cinzentas que escondiam as estrelas de mim.
Ah, como era divino aquele sabor. Um bálsamo para todos os meus temores. Era como fogo líquido. Todos os sons despertavam ao meu redor, eu queria sorver tudo, tornar meu cada ruído da noite, cada farfalhar das folhas das árvores.
Meu coração acelerava, o dele desvanecia...
Eu estava bebendo sua vida.
Horrorizada, trêmula e confusa, eu me afastei do pulso ensangüentado que repousava sobre meus lábios. Meus dedos fechavam-se feito barras de ferro ao redor da ferida aberta que jorrava o sangue quente em minha boca aberta. Como era difícil me afastar daquele pulsar forte, vívido e desesperado...
- Jake. – Gemi, tentando com todas as forças combater aquele impulso sedento. Ele me olhou, sorrindo, sereno como uma brisa de primavera, e nada disse.
Ele estava pálido, recostado em uma das grandes árvores que cobriam aquela clareira. Eu nunca estive ali. Tentei me levantar, e logo descobri que eu podia fazer isso perfeitamente.
Contudo, me sentei ao lado dele, de modo que pudesse ver seu rosto. Ele me olhava tranqüilo, como se nada mais importasse ou merecesse atenção maior.
- Por quê fez isso? – Perguntei, sentindo as lágrimas turvarem minha visão.
- Que escolha eu tenho? Não posso viver sem você... – Engoli a bola quente que se formava em minha garganta, o gosto dele ainda incitando minha sede. Fechei minhas mãos em punho, tentando conter a raiva que eu estava sentindo de mim mesma. Percebi algo macio sob minha mão esquerda, quando olhei, me lembrei de algo que ele me dissera há muito tempo...
- Finja que é meu coração. – Estendi a flor amassada para ele. Ele sorriu. – Eu estraguei tudo não é?
- Não. Você fez o que tinha que fazer. Se não tivesse feito não seria você, isso faz parte de quem você é. – Ficamos em silêncio por algum tempo, escutando o vento e observando a aurora alaranjada que pairava sobre Volterra. Estávamos a mais ou menos dois quilômetros da cidade, numa clareira pequena que se elevava sobre os montes de Montepulchiano.
- Acabou Ness. Vamos para casa agora. – Sussurrou Jacob em meu ouvido. Segurei sua mão quente entre meus dedos e sorri para ele, feliz por ver que eu não tinha o sugado até quase a morte.
Ajudei ele a se levantar, percebendo a fraqueza momentânea devido a falta de sangue, e eu estava me sentindo bem. Estava esperançosa pela primeira vez em meses...
- Ah, mas nós estamos apenas começando meu caro.
Arfei, e quando me virei em direção da voz eu quase gritei. Aro, Caius, Jane, Demetri...
Aquele pesadelo não terminava nunca?
Capítulo 38 – Volturi Parte 1
- Por que não se juntam a nós também meu caro Edward, adorável Bella, meu querido amigo Carlisle... Vamos, não precisamos tornar isso algo tão desagradável. – Enquanto eu ouvia os passos silenciosos de meus pais atravessando as árvores como vultos, meus olhos não conseguiam abandonar o rosto lívido e poeirento de Aro. O céu estava pálido, limpo como um espelho, e o azul profundo tornava-se cada vez mais claro, ofuscando as luzes distantes das últimas estrelas.
- Ah, aí estão vocês. – Sorriu Aro, fitando com entusiasmo os rostos enfurecidos de meus pais. Jacob tremia ao meu lado, e eu tentava sustentar o peso dele sem deixar que meus joelhos cedessem. Os mantos negros de Aro e Caius estavam chamuscados e rasgados em várias partes, e seus cabelos sempre impecavelmente brilhantes e bem arrumados, formavam um emaranhado grotesco em volta de seus rostos pálidos. A noite não estava sendo muito fácil para eles também, eu imaginei.
- Resolveu parar de se esconder feito uma barata? Isso definitivamente não é do seu feitio Aro. – A voz serena de meu pai irrompeu das árvores, e era tão fria, tão dura... Eu estava perfeitamente calma a despeito dos pulos ferozes que meu coração dava em meu peito. Sentia-me completamente alerta, como estive na noite em que Jacob e eu lutamos contra Félix e Heidi, a sensação do perigo aumentava a proporção funcional de cada célula de meu corpo. Eu podia sentir, ouvir e ver cada detalhe perdido na noite que começava a ceder lugar àquela madrugada fria. O sangue de Jacob trabalhava em mim freneticamente, eu podia senti-lo percorrer minhas veias, devolver-me a efetividade dos meus dons naturais, e aqueles não tão naturais. A silhueta de Aro moveu-se sob a luz alaranjada que pairava no horizonte, e como por reflexo, o corpo esguio de minha mãe parou do outro lado de Jacob como uma sombra, sustentando-o melhor que eu. Carlisle seguiu os passos friamente medidos de meu pai, que se postou ao meu lado direito, um pouco mais a frente, tão protetor quanto sempre fora.
- Eu sei o que você quer. E a resposta é não. – Sibilou meu pai.
- É claro que sabe... Você sabe todas as coisas, jovem Edward, ou pelo menos pensa saber. – Aquela solenidade fajuta, aquele tom afetado na voz invariavelmente sedosa e gentil... Aquela falsidade me matava, me deixava doente de ódio. Meu sangue – o sangue de Jake – ferveu em minhas veias. Involuntariamente, fechei meus punhos ao redor da cintura de Jacob, tentando conter o tremor dele e o meu próprio.
- Edward, o que está acontecendo? – Intercedeu Carlisle, a voz calma balbuciando a pergunta como um meio de aliviar a tensão. Sempre o pacificador.
- Diga a ele o que quero meu rapaz. Diga a seu pai o que está me negando. – Os olhos felinos de Aro pararam no rosto de Carlisle e por um momento o brilho insolente da superioridade desapareceu, deixando um vazio profundo turvar os olhos leitosos. Carlisle devolveu o olhar cheio de súplica de Aro com uma certa indignação e incredulidade. Seja qual fosse o jogo de Aro, ele estava tendo êxito.
- Eu venho oferecer ajuda. – Sorriu Aro. Por um momento o silêncio nos envolveu como uma névoa. Nos pés da colina verdejante, Volterra queimava silenciosamente como uma vela esquecida na escuridão, enquanto a manhã se aproximava como uma profecia.
- Por quê diabos você imagina que nós precisamos de ajuda? – Disse Jacob, suas palavras se arrastando como correntes. O corpo enorme e moreno tremia sob minhas mãos, e a quentura que emanava dele fazia minha pele arder. – Vocês vão morrer malditos. – Sibilou ele. Vi quando minha mãe pressionou o ombro nu, tentando fazê-lo se acalmar, mas Jacob fitava o rosto impenetrável de Aro obstinadamente.
- Ah meu caro, mas você há de concordar comigo que, se deseja levar a cabo minha morte e a de meus iguais, terá de abrir mão de uma pessoa muito importante para vocês. – Ele sorriu. – Creio que ainda não tenham encontrado a querida Alice.
Observei o rosto de meu pai se contorcer numa máscara de ódio, suas mãos pálidas se fecharam em punho.
- Edward... – Sussurrou minha mãe, olhando-o pelo canto dos olhos. Eu conhecia aquele tom implícito em sua voz, era muito fácil saber o que ela estava pensando, mesmo não podendo ler seus pensamentos. Aquele tom significava: Edward, o quê está acontecendo?
Meu pai não desviou os olhos de Aro quando falou:
- Ele sabe algo sobre Alice. Está escondendo a informação de mim. – Disse ele, os dentes cerrados, as costas tensas. Ah Aro, seu demônio astuto. Eu entendia perfeitamente o processo, o único meio de esconder certos pensamentos de meu pai, e aparentemente Aro descobrira a mesma coisa.
- Ah não me recriminem. De que outra forma eu poderia garantir a minha segurança e a de meus queridos irmãos? – Aro lançou seus olhos opacos a Carlisle, que ouvia tudo imerso num silêncio intransponível. Dentro de sua imensa calma ele ponderava sem nada dizer.
Havia algo realmente perturbador na forma como Jane e Demetri olhavam para os lados furtivamente, como se procurassem por algo, uma saída talvez? Não. Eu não sabia o que era, mas estava me incomodando profundamente, e esse desconforto parecia não ser percebido por mais ninguém. Minha mãe e Jacob – ao meu lado esquerdo – mantinham seus olhos fixos em Aro e Caius, e meu pai, assim como Carlisle, se mantinha focado nos pensamentos que Aro tentava camuflar. Então, o que seria essa sensação soturna apertando meu peito? Meus pensamentos foram interrompidos pela voz felina de Aro:
- Vejam bem, vocês não me deixaram escolha. Eu tive que consertar a bagunça que vocês fizeram. Primeiro uma mestiça, e depois uma legião de imortais descrentes de nossas leis? O que vocês acham que teria acontecido se eu não interviesse? Eu tive que retirar as maçãs podres que vocês deixaram em nosso cesto, antes que um bando de desordeiros acabasse nos expondo. E a culpa pelas mortes deles, meus caros, é unicamente sua. Os Cullens trouxeram a morte até eles quando decidiram reuni-los para enfrentar a justiça que há tantos séculos têm nos protegido e nos preservado.
- Justiça? Você vem até mim se gabar de sua justiça? – Falou Carlisle, a voz anormalmente alterada oscilando no ar gelado da madrugada. Aro olhou-o atônito, e por um momento seus olhos endureceram. – Você sempre se importou apenas com o poder. Tudo que desejou sempre foi poder. Sua justiça anda de mãos dadas com seus interesses. Você sabia que a criança não era uma ameaça, sabia que não tínhamos violado as leis, e mesmo assim foi até Forks por pura ambição. Então eu novamente lhe pergunto Aro: o quê quer de nós?
Os primeiros raios de sol iluminaram o rosto inabalável de Carlisle, refletindo majestosamente na pele e nos cabelos lustrosos. As árvores se acenderam num verde oliva brilhante, e o fogo que consumia Volterra foi finalmente ofuscado pelo sol italiano.
- Só eu sei onde Alice está. – Disse Aro numa voz baixa e incisiva, as sombras ocultando seu rosto. – Se a querem, terão de pedir perdão e se submeter ao governo Volturi. Quero que compreendam essa condição, quero que entendam que não há outra forma de remediar o estrago que fizeram e o que isso significou para nosso mundo. Se se curvarem à mim, tudo será esquecido e poderemos, ambos, retomar nossas vidas ao longo da eternidade, como foi predestinado quando nos tornamos imortais.
Capítulo 38 – Volturi Parte 2
- Por que não se juntam a nós também meu caro Edward, adorável Bella, meu querido amigo Carlisle... Vamos, não precisamos tornar isso algo tão desagradável. – Enquanto eu ouvia os passos silenciosos de meus pais atravessando as árvores como vultos, meus olhos não conseguiam abandonar o rosto lívido e poeirento de Aro. O céu estava pálido, limpo como um espelho, e o azul profundo tornava-se cada vez mais claro, ofuscando as luzes distantes das últimas estrelas.
- Ah, aí estão vocês. – Sorriu Aro, fitando com entusiasmo os rostos enfurecidos de meus pais. Jacob tremia ao meu lado, e eu tentava sustentar o peso dele sem deixar que meus joelhos cedessem. Os mantos negros de Aro e Caius estavam chamuscados e rasgados em várias partes, e seus cabelos sempre impecavelmente brilhantes e bem arrumados, formavam um emaranhado grotesco em volta de seus rostos pálidos. A noite não estava sendo muito fácil para eles também, eu imaginei.
- Resolveu parar de se esconder feito uma barata? Isso definitivamente não é do seu feitio Aro. – A voz serena de meu pai irrompeu das árvores, e era tão fria, tão dura... Eu estava perfeitamente calma a despeito dos pulos ferozes que meu coração dava em meu peito. Sentia-me completamente alerta, como estive na noite em que Jacob e eu lutamos contra Félix e Heidi, a sensação do perigo aumentava a proporção funcional de cada célula de meu corpo. Eu podia sentir, ouvir e ver cada detalhe perdido na noite que começava a ceder lugar àquela madrugada fria. O sangue de Jacob trabalhava em mim freneticamente, eu podia senti-lo percorrer minhas veias, devolver-me a efetividade dos meus dons naturais, e aqueles não tão naturais. A silhueta de Aro moveu-se sob a luz alaranjada que pairava no horizonte, e como por reflexo, o corpo esguio de minha mãe parou do outro lado de Jacob como uma sombra, sustentando-o melhor que eu. Carlisle seguiu os passos friamente medidos de meu pai, que se postou ao meu lado direito, um pouco mais a frente, tão protetor quanto sempre fora.
- Eu sei o que você quer. E a resposta é não. – Sibilou meu pai.
- É claro que sabe... Você sabe todas as coisas, jovem Edward, ou pelo menos pensa saber. – Aquela solenidade fajuta, aquele tom afetado na voz invariavelmente sedosa e gentil... Aquela falsidade me matava, me deixava doente de ódio. Meu sangue – o sangue de Jake – ferveu em minhas veias. Involuntariamente, fechei meus punhos ao redor da cintura de Jacob, tentando conter o tremor dele e o meu próprio.
- Edward, o que está acontecendo? – Intercedeu Carlisle, a voz calma balbuciando a pergunta como um meio de aliviar a tensão. Sempre o pacificador.
- Diga a ele o que quero meu rapaz. Diga a seu pai o que está me negando. – Os olhos felinos de Aro pararam no rosto de Carlisle e por um momento o brilho insolente da superioridade desapareceu, deixando um vazio profundo turvar os olhos leitosos. Carlisle devolveu o olhar cheio de súplica de Aro com uma certa indignação e incredulidade. Seja qual fosse o jogo de Aro, ele estava tendo êxito.
- Eu venho oferecer ajuda. – Sorriu Aro. Por um momento o silêncio nos envolveu como uma névoa. Nos pés da colina verdejante, Volterra queimava silenciosamente como uma vela esquecida na escuridão, enquanto a manhã se aproximava como uma profecia.
- Por quê diabos você imagina que nós precisamos de ajuda? – Disse Jacob, suas palavras se arrastando como correntes. O corpo enorme e moreno tremia sob minhas mãos, e a quentura que emanava dele fazia minha pele arder. – Vocês vão morrer malditos. – Sibilou ele. Vi quando minha mãe pressionou o ombro nu, tentando fazê-lo se acalmar, mas Jacob fitava o rosto impenetrável de Aro obstinadamente.
- Ah meu caro, mas você há de concordar comigo que, se deseja levar a cabo minha morte e a de meus iguais, terá de abrir mão de uma pessoa muito importante para vocês. – Ele sorriu. – Creio que ainda não tenham encontrado a querida Alice.
Observei o rosto de meu pai se contorcer numa máscara de ódio, suas mãos pálidas se fecharam em punho.
- Edward... – Sussurrou minha mãe, olhando-o pelo canto dos olhos. Eu conhecia aquele tom implícito em sua voz, era muito fácil saber o que ela estava pensando, mesmo não podendo ler seus pensamentos. Aquele tom significava: Edward, o quê está acontecendo?
Meu pai não desviou os olhos de Aro quando falou:
- Ele sabe algo sobre Alice. Está escondendo a informação de mim. – Disse ele, os dentes cerrados, as costas tensas. Ah Aro, seu demônio astuto. Eu entendia perfeitamente o processo, o único meio de esconder certos pensamentos de meu pai, e aparentemente Aro descobrira a mesma coisa.
- Ah não me recriminem. De que outra forma eu poderia garantir a minha segurança e a de meus queridos irmãos? – Aro lançou seus olhos opacos a Carlisle, que ouvia tudo imerso num silêncio intransponível. Dentro de sua imensa calma ele ponderava sem nada dizer.
Havia algo realmente perturbador na forma como Jane e Demetri olhavam para os lados furtivamente, como se procurassem por algo, uma saída talvez? Não. Eu não sabia o que era, mas estava me incomodando profundamente, e esse desconforto parecia não ser percebido por mais ninguém. Minha mãe e Jacob – ao meu lado esquerdo – mantinham seus olhos fixos em Aro e Caius, e meu pai, assim como Carlisle, se mantinha focado nos pensamentos que Aro tentava camuflar. Então, o que seria essa sensação soturna apertando meu peito? Meus pensamentos foram interrompidos pela voz felina de Aro:
- Vejam bem, vocês não me deixaram escolha. Eu tive que consertar a bagunça que vocês fizeram. Primeiro uma mestiça, e depois uma legião de imortais descrentes de nossas leis? O que vocês acham que teria acontecido se eu não interviesse? Eu tive que retirar as maçãs podres que vocês deixaram em nosso cesto, antes que um bando de desordeiros acabasse nos expondo. E a culpa pelas mortes deles, meus caros, é unicamente sua. Os Cullens trouxeram a morte até eles quando decidiram reuni-los para enfrentar a justiça que há tantos séculos têm nos protegido e nos preservado.
- Justiça? Você vem até mim se gabar de sua justiça? – Falou Carlisle, a voz anormalmente alterada oscilando no ar gelado da madrugada. Aro olhou-o atônito, e por um momento seus olhos endureceram. – Você sempre se importou apenas com o poder. Tudo que desejou sempre foi poder. Sua justiça anda de mãos dadas com seus interesses. Você sabia que a criança não era uma ameaça, sabia que não tínhamos violado as leis, e mesmo assim foi até Forks por pura ambição. Então eu novamente lhe pergunto Aro: o quê quer de nós?
Os primeiros raios de sol iluminaram o rosto inabalável de Carlisle, refletindo majestosamente na pele e nos cabelos lustrosos. As árvores se acenderam num verde oliva brilhante, e o fogo que consumia Volterra foi finalmente ofuscado pelo sol italiano.
- Só eu sei onde Alice está. – Disse Aro numa voz baixa e incisiva, as sombras ocultando seu rosto. – Se a querem, terão de pedir perdão e se submeter ao governo Volturi. Quero que compreendam essa condição, quero que entendam que não há outra forma de remediar o estrago que fizeram e o que isso significou para nosso mundo. Se se curvarem à mim, tudo será esquecido e poderemos, ambos, retomar nossas vidas ao longo da eternidade, como foi predestinado quando nos tornamos imortais.
- O quê? – Eu falei, sentindo uma golfada de incredulidade subir a minha garganta. O tom áspero de minha voz cortou o silêncio, e era como se eu mesma estivesse me observando, escutando minhas próprias palavras flutuarem naquele véu de tensão. – Submissão? Você tentou nos matar vezes incontáveis, e chegou muito perto de conseguir. Minha família e eu temos todos os motivos possíveis para destruir esse clã imundo que você chama de seu governo e nenhuma lei imortal nos punirá por isso. Como você bem sabe Aro, no nosso mundo, é matar ou morrer.
- Minha jovem, você nada entende sobre nosso mundo ou as leis que o governam.
- Eu entendo o suficiente para repudiar essa sua proposta, para achá-la tão vil e baixa quanto suas desculpas mentirosas sobre regras e leis que só existem no seu livrinho de aquisições. Mas você não vai me ter Aro, e não terá Alice, ou Zafrina, ou Willian... Não vai ter nada além das cinzas de sua guarda derrotada e da sua cidadezinha de fachada. – Eu estava gritando, e não havia me dado conta de que avançara alguns passos na direção de Aro, de modo que meu pai ficara bem atrás de mim, contendo-me com suas mãos gentis em meus ombros. Aro encarava-me com olhos duros, a boca numa linha rígida. Quando o silêncio caiu sobre os ecos de minha voz, eu percebi que todos prendiam a respiração, como se o simples ato de respirar fosse desencadear um novo incêndio.
- Deixe-me ver Aro. Você sabe que cedo ou tarde eu vou descobrir onde ela está. – A voz de meu pai ressonou como o farfalhar do vento nas árvores. Atrás de Aro, Caius estremecia incontrolavelmente, e vê-lo tenso daquela forma acendeu novamente a chama de desconfiança em mim. O vento varria a clareira, onde os primeiros raios de sol penetravam pelas folhagens baixas das árvores. Imersos nas sombras da encosta do vale, Jane e Demetri observavam estáticos, duas estátuas de pedra com olhos vivos, que corriam de rosto a rosto como abelhas que colhem o néctar. Cada vez que meus olhos se encontravam com os de Jane, uma pontada fria subia por minhas pernas, indo se instalar em meu estômago. Não era medo, nem tampouco receio de enfrentá-la numa luta novamente – se ser jogava ao chão em convulsões violentas podia ser chamado de luta. Era algo como um segredo que compartilhávamos, um destino em comum que se cruzara por acidente, e agora se chocava a cada nova curva. No meu coração e no dela, vivia a sombra da ausência que atendia pelo nome de Alec.
Voltei meus olhos para o rosto de meu pai, fugindo do olhar gelado de Jane por um momento. Apenas dois metros atrás de nós, minha mãe amparava o corpo enfraquecido de Jacob, sem, com isso, abandonar o posto de “escudo”. Eu podia ver nos olhos dela a concentração intensa, o foco que não oscilava nem por um segundo e foi essa mesma expressão que encontrei no rosto de meu pai. A testa vincada, os olhos semicerrados, os dentes apertados. E Aro resistia, permanecia imóvel por vários minutos, até seus olhos ganharem novamente o foco e um sorriso afetado se abrir em seus lábios frios.
A batalha mental prolongou-se, fazendo com que cada minuto parecesse demorar mil anos, e a cada segundo de silêncio, um novo peso somava-se a balança de tensão que nos envolvia. Em certo momento, eu comecei a pensar nos outros.
Rose, Emmet, Esme, Jasper... Todos na espera de uma direção para seguir, qualquer pista que nos levasse até Alice. Nossos aliados também deveriam estar preocupados com nossa demora, logo sairiam a nossa procura, era certo. E Willian? Será que estava bem com sua Lavínia? E Zafrina? Sam e os outros teriam encontrado sua prisão? Onde estariam Benjamin e os outros? Eu vaguei por esses nomes, vendo os rostos conhecidos em minha mente, sabendo onde, inevitavelmente, meus pensamentos me levariam.
Alec. Por onde andaria meu querido Alec? Meu coração se apertava no peito, como se estivesse sendo esmagado por mãos de ferro. A lembrança daqueles últimos momentos ardia em minha mente como álcool sobre uma ferida aberta. Cerrei meus dentes em silêncio, tentando impedir a dor que vinha com aqueles pensamentos e num ato de extrema covardia, eu me virei lentamente para trás, para alcançar os olhos escuros de Jacob, aquele bálsamo que entorpecia todas as minhas dores. Ele me olhou quando percebeu meus olhos encarando-o, e sustentou meu pedido de socorro mudo. Ele sabia, eu vi isso quando ele desviou o olhar de mim. Aquela resignação me comoveu e me envergonhou, eu sentia que diminuía ou que simplesmente me desfazia na terra, como fumaça, como poeira. Jacob sabia que eu me importava com Alec, mais do que deveria, mas do que gostaria. Ele entendia isso, e esse entendimento era a faca cega que penetrava meu coração cada vez que eu o olhava, cada vez que ele surpreendia a distância no meu olhar. Mas Deus... eu o amava tanto! Amava cada ínfima parte dele, cada aspecto ininteligível do ser que ele era, e mesmo assim, não podia deixar de pensar em Alec. Virei meu rosto envergonhado novamente para frente, e surpreendi um leve tremor sacudir os ombros esguios de Aro.
- Não. Vai. Entrar. – Disse ele, cerrando os dentes e pronunciando cada palavra separadamente, com grande dificuldade para ocultar nelas o ódio que borbulhava tão perto da superfície.
- Onde está ela Aro. – Sibilou meu pai. – Onde está Alice?
- Submissão Edward. Implore meu perdão e terá sua irmã de volta. – Disse ele, os olhos opacos desvairados quase pulavam das órbitas, a boca entre aberta deixando a mostra os dentes curtos e brancos. Aro arfava como um touro prestes a avançar, suas mãos pálidas fechadas em punho pendiam ao lado do corpo desajeitadamente. – Implore Edward, chiedo scusa. – Gritava ele.
- Para o inferno com seu perdão Aro, eu vou arrancar sua cabeça fora se não me disser onde ela está. – Grunhiu meu pai, avançando lentamente em direção de Aro.
- Edward. – Minha mãe chamou, tentando contê-lo. Ela largou o braço de Jacob e avançou com ele, tendo o cuidado de interpor-se entre mim e Aro. Jacob oscilou, sustentando o corpo numa árvore próxima. Fui até ele, apreensiva com a demora de sua regeneração, e enlacei a cintura quente.
- Jake, quanto tempo até poder se transformar? – Perguntei num sussurro, apreensiva e completamente aterrorizada com a idéia de Jacob tão vulnerável diante de tal situação.
- Eu não sei. – Disse ele, apertando os olhos com os dedos. – Eu já deveria estar mastigando esses sanguessugas malditos. Talvez se eu me concentrar... não estou mais tão fraco assim. – Ele fechou os olhos e tentou controlar a respiração, afim de encontrar dentro dele a porta que o levaria deste mundo e traria o lobo castanho avermelhado para fora, para a liberdade.
- Não se esforce tanto. Nós podemos cuidar da situação por enquanto. Meu pai está jogando com Aro, ele vai arrumar um jeito de descobrir aonde o maldito escondeu Alice. – Tranqüilizei-o, enquanto afagava suas costas nuas, tentando acreditar em minhas próprias palavras. Na realidade, eu duvidava que aquela situação assustadora se sustentasse por mais um segundo sequer, especialmente por quê Demetri já estava posicionado para o ataque, ao lado de Aro e ocultando um apavorado Caius atrás de si. E Jane... maldição, por quê Jane não estava ocupando seu habitual lugar ao lado de Aro? Por quê ela espreitava por sobre o ombro de Caius, mal contendo o impulso de olhar para os lados enquanto seu mestre estava prestes a se atracar com meu pai? Algo estava terrivelmente errado com Jane e eu não gostava disso mais do que Jake gostava de se sentir impotente frente ao inimigo.
- Eu vou te dar uma última chance Aro. – Grunhiu meu pai.
- Edward, se pudermos evitar essa luta será melhor para todos. – Disse Carlisle, pousando a mão no ombro de meu pai.
- Ele não me dá escolha Carlisle...
- Ah mas eu te dei sim uma escolha. Você é quem a recusa insolentemente. Seu orgulho matará a todos nós. – Disse Aro, a voz trêmula e descontrolada. – Ou melhor. Matará vocês todos! – Aro gargalhou, o som frio de sua risada felina soou como um dejá vú em meus ouvidos. Em minha mente a campina infinitamente verde se acendeu como um fantasma recém despertado.
- Meu Deus Aro... o quê você fez? – A voz subitamente atemorizada de meu pai me alarmou. Ele enrijeceu, e mesmo de costas eu podia adivinhar a expressão vazia em seus olhos.
- O quê foi Edward? – Perguntou minha mãe, uma pontada de desespero despontando em sua voz macia, os olhos assustados fitando o rosto imóvel de meu pai...
- Eu fiz o que tinha que fazer meu querido Edward, e agora, nós veremos quem tem o cachorro mais bravo.
Eu observei, imóvel, o rosto de Aro se contorcer num esgar doentio, enquanto Demetri afastava os dois anciões para o meio das árvores. Jane virou-se de costas para nós e fitou as sombras nevoentas da floresta que nos cercava. Seus olhos se ascenderam, focaram um nada longínquo, como se estivesse chamando por alguém – ou por alguma coisa. Tudo aconteceu tão rápido, e mesmo assim, em minha mente entorpecida, eu via um slow motion se desenrolar frente a meus olhos.
Meu pai se virou, puxando pelo braço minha mãe, e quando nossos olhos se cruzaram, eu pude ver o desespero comprimindo sua alma. Num grito sufocado, eu vi os lábios dele formarem as palavras: saia daqui Ness. Mas eu não pude me mover, e com Jacob igualmente imóvel ao meu lado, eu presenciei o momento mais aterrorizante de minha vida.
Um grunhido doentio explodiu em meio às árvores, uma fusão monstruosa de um rosnado gutural e uma voz humana, gritando desesperada. Jane murmurava palavras ininteligíveis em uma língua que parecia-se muito com os idiomas árabes, seus olhos pequenos fitavam a criatura encoberta pelas sombras, fazendo-o obedecê-la, machucando a coisa como um toureiro atiça o touro bravo. Mas o quê diabos era aquilo?
- Ness, venha. – Gritou meu pai. Esforcei-me ao máximo para desviar meus olhos daquela silhueta deformada que se debatia entre as árvores, e quando os olhei, vi meu pai e minha mãe vindo em minha direção. Minha mãe agarrou meu pulso e me puxou, eu quase não sentia meu corpo se mover.
- Pode andar? Nós precisamos sair daqui agora. Precisamos encontrar os outros. – Ouvi meu pai murmurar apressadamente para Jacob.
- Que merda é essa Edward? Aquela coisa não cheira bem. – Disse Jacob.
- Aquilo é um lobisomem. Um verdadeiro.
- Pensei que estivessem extintos Edward. – Disse minha mãe, a voz trêmula e as mãos firmes enlaçando meu pulso.
- Eu também pensava assim. Lobisomens não são vistos há mais de mil anos.
- Edward, como isso é possível? Estamos no meio do dia. – Replicou Carlisle. – Eles são filhos da lua, não tem como aquilo ser um lobisomem autêntico.
Filhos da lua. Eu já ouvira algo sobre eles. Criaturas noturnas altamente infecciosas. Brutais. Sanguinários. Feras sem consciência. Mas eu sempre pensei que fossem lendas, ou que deixaram de existir em algum período remoto.
- Pai, por quê estamos fugindo assim? Não podemos deixar Aro escapar, ainda mais agora. Se aquele monstro fugir... Se chegar às cidades... Ele não parecia muito à vontade com as ordens de Aro. – Meu pai me lançou um olhar intransponível. Nós corríamos pelo vale nevoento, por entre a vegetação fechada onde a luz do sol ainda não havia chegado. Um silêncio se formou em volta daquela pergunta, todos nós esperávamos por respostas, tentando encontrá-las em nossos próprios pensamentos confusos.
- Aro fez alguma coisa com aquela criatura. A mente dele é um vazio, completamente oca, nenhuma centelha de consciência. Aro não me deixou ver muita coisa, da alguma forma ele adquiriu um controle mental quase intransponível. Está deixando as informações escondidas em um lugar subconsciente. Se eu tivesse os dons dele eu saberia encontrá-los. – Disse meu pai após uma longa pausa. Ele ponderou por um momento e continuou: - Ele deve ter encontrado uma das últimas criaturas dessa espécie que ainda havia no mundo, mas se aquela criatura morder um humano, nós certamente vamos ter sérios problemas.
- Eles são incontroláveis, famintos, e como Edward disse, não têm consciência de que devem se manter anônimos aos humanos. Eles apenas matam. Aro foi longe demais quando trouxe aquela criatura para civilização. Se ele escapar, o que certamente não vai demorar, os humanos dessa região estarão correndo sério perigo.
- Não é só os humanos que estão em perigo Carlisle. – Disse meu pai, taciturno. – Uma das poucas coisas que vi na mente de Aro, e que foi confirmada na mente de Caius, foi o que essas bestas fazem com a nossa espécie. – Ele parou, sondando nossos rostos. – Você nunca se perguntou por quê Caius os teme tanto?
- Não me diga que...
- Sim. O mesmo veneno que infecta humanos e os transforma, é capaz de paralisar um corpo imortal de forma irreversível. É talvez a única forma de morte que dispomos, além da fogueira. – O silêncio pairou novamente sobre nossas cabeças, enquanto nossos pés se apressavam em direção ao norte, onde nossos aliados nos esperavam. Um medo subido e inflamado me dominou, pensando no que poderia ter acontecido se não tivéssemos saído imediatamente de lá, e o que aconteceria se não encontrássemos os outros a tempo.
- O quê pode matá-los? – A voz rouca de Jacob rompeu o silencio. Eu me sobressaltei com a expressão rígida em seu rosto quando o encarei. Meu pai ponderou por um momento.
- Eu não conheço muito dessas criaturas. – Suspirou meu pai. – Mas estou partindo do princípio de que a maioria de nossos dons não surtem efeito nele.
- E por que não? – Perguntou minha mãe alarmada.
- Por quê a maioria dos nossos dons agem na mente e aquela criatura não tem uma mente, apenas uma vaga percepção das coisas.
- Como um animal? – Perguntei.
- Exatamente como um animal. – Respondeu meu pai.
- Edward, isso não faz nenhum sentido. Você viu o que Jane estava fazendo com ele, incitando-o, enfurecendo o bicho contra nós. Se ela pode causar efeito na mente dele, por quê nós não podemos?
- Bella, aquela criatura ainda tem certas percepções, mas nenhuma delas é mais humana. Possivelmente ele é um lobisomem há milhares de anos. Ele ainda têm percepção de perigo, de fome, de dor... as coisas básicas. Para todos os efeitos ele é um animal infinitamente forte e imortal. O quê Jane estava fazendo é justamente incitar um dos poucos pontos de acesso da mente dele. A dor, é só disso que ela precisa. De que adianta eu ler os pensamentos dele se não há nada coerente para se ver? – Minha mãe encarou-o aflita, os olhos âmbar cintilaram em mim por um momento antes de retornar aos de meu pai.
- Ok, ele é ignorante, mas o quê diabos pode matar aquela coisa? – Interrompeu Jacob. – Uma bala de prata? Uma estaca de prata? Um crucifixo de prata? – Ironizou ele, impaciente.
- Talvez só a força bruta. – Respondeu meu pai, olhando novamente de mim para minha mãe, o típico olhar de um pai de família preocupado. – Mas é perigoso demais nos aproximar. Nós não sabemos quase nada sobre ele, a nossa única chance está escondida na mente de Aro.
- Precisamos achá-lo Edward. – Disse minha mãe. Eu pude perceber o desespero contido na voz dela. Meu pai trocou um olhar cheio de tensão com Carlisle e disse:
- Carlisle e eu cuidaremos disso. Agora, eu quero que você, Nessie e Jacob continuem até encontrar os outros.
- Edward...
- Bella, escute. – E ele parou, pegando o rosto de minha mãe entre as mãos. Eu e Jacob paramos um pouco a frente. Meu pai suspirou, o rosto contraído, e disse: - Não importa o que aconteça, não volte. Corra para o mais longe possível desse monstro e leve Nessie com você para algum lugar seguro, algum lugar onde Aro não poderá encontrá-las. Quando encontrar nossos aliados, diga a eles o que aconteceu e em seguida saia daqui. Cuide de Nessie se eu não voltar, fique perto das matilhas, eles vão proteger vocês. Se precisar de dinheiro, de passaportes, de qualquer coisa, você sabe onde encontrar. Vá, saia daqui e não pare até estar longe e a salvo.
Eu vi o terror estampado na face pálida de minha mãe. Vi a súplica se derramando dos olhos penetrantes de meu pai, e embora eu pudesse pensar em mil coisas para dizer naquele momento, eu não consegui formular sequer uma palavra.
- Jake... – Começou a dizer meu pai, olhando-nos com carinho.
- Eu sei. – Interrompeu Jacob, a voz embargada, os olhos turvos. – Você não precisa me pedir para cuidar delas com minha própria vida. Eu venho fazendo isso há anos, e eu vou continuar cumprindo a promessa que te fiz quando ela nasceu. – Jacob olhou para mim, o rosto impenetrável. – Quando elas estiverem a salvo, eu volto e te acho nem que seja no inferno. – Meu pai assentiu, sem nada dizer, o agradecimento mudo morrendo em seus olhos que não podiam chorar, e apesar da dor que separava todos nós novamente, abrindo novos buracos, todos nós sabíamos o quanto era preciso que fôssemos fortes.
Meu pai me abraçou antes de ir. Beijou minha mãe nos lábios selando aquela que poderia ser sua última promessa, de que a amaria eternamente, não importa como ou onde. Carlisle se despediu de nós, tornando tudo mais difícil, fazendo com que o fantasma do medo se tornasse mais real. Despedir-se era sempre uma incerteza, mas aquele adeus pareceu mais do que nunca um mal agouro. Eles deram meia volta, então, seguindo novamente para a encosta do morro que cercava Volterra, e antes que suas silhuetas fossem encobertas pelas árvores frondosas, o som indistinto de passos fez todos congelarem em seus lugares. Meio segundo se passou até aqueles passos nos alcançarem. Meu pai apenas esperou, paciente. E de alguma forma, eu sabia quem estava vindo ao nosso encontro.
- Eu sei onde Aro vai estar. – Disse a voz melodiosa e inabalável que eu conhecia tão bem. – Eu posso levá-lo até ele Edward. – Alec imergiu das árvores com um manto negro cobrindo-lhe a face. Meu pai olhou-o pacientemente por um segundo enquanto Alec mantinha em sua expressão o mais simples e verdadeiro olhar, tão diferente dos olhos sombrios que antes enfeitavam seu jovem rosto. Olhando para ele agora, eu não conseguia imaginá-lo um Volturi, nem mesmo com o manto negro e com o medalhão que trazia o brasão de seu antigo clã brilhando em seu peito, Alec não parecia mais com um deles.
- Sua ajuda é mais que bem vinda Alec. – Disse meu pai. – Vamos, se apresse, nós não temos muito tempo.
Capítulo 38 – Volturi Parte 3
Alec não me olhou enquanto seguia na direção de meu pai e Carlisle, e olhá-lo dalí, daquele lugar proibido, ao lado de Jacob, era como olhar a paisagem através de um vidro sujo. E o que tornava tudo mais difícil, era sentir a compreensão muda de Jacob, era olhar em seus olhos e ver a decepção quase transbordando. Apertei meus punhos enquanto caminhava na direção oposta à de Alec e meu pai, eu queria descobrir um jeito de tirar toda aquela agonia de meu peito, alguma forma de expelir todas aquelas bolhas fervilhantes que insistiam em me queimar por dentro. Olhei para minha mãe, deslizando silenciosamente a meu lado. A dor dela parecia espelhar a minha, e observando seu rosto pálido esvaziar-se numa máscara inexpressiva, eu senti um conforto taciturno. De alguma forma eu não estava sozinha, não mais.
Jacob nos seguia de perto, eu podia ouvir sua respiração, as passadas pesadas de suas patas contra o solo úmido. Ele preferiu assumir a forma de lobo, estaria mais atento aos perigos, estaria mais protegido de seus sentimentos humanos. Eu conhecia Jake bem demais, ele estava na defensiva desde a luta com Alec, e eu não poderia culpá-lo, poderia?
Os minutos se arrastavam infinitamente enquanto atravessávamos a clareira até as montanhas que demarcavam os limites de Montepulchiano. A clareira estava tomada por cheiros distintos, da nossa espécie e dos lobos, e ficava cada vez mais confuso à medida que nos aproximávamos. Quando finalmente nos encontramos com o primeiro grupo de aliados, eu pude respirar mais aliviada, embora isso não melhorasse em nada o aperto em meu peito. Minha mãe estava lívida, silenciosa e distante como eu jamais a vira, e vê-la dessa forma fazia com que minha garganta se apertasse de ansiedade por me sentir tão impotente e simplesmente não poder confortá-la. Enquanto meus olhos vagavam pelos rostos conhecidos, eu não pude deixar de notar a sombra que pairava sobre aquele pequeno contingente. Agora, éramos mais lobos que vampiros – Sam, Paul, Leah, Seth, Embry, Quil e Jacob. Observei a troca silenciosa de informações entre o bando, sobressaltando-me eventualmente com os grunhidos nervosos que alguns deixavam escapar. Dois dos poucos vampiros que aguardavam silenciosos nossa chegada, se moveram em sincronia suave. Um dos vultos parou diante de mim. Benjamin segurou-me pelos ombros, apertando-me num abraço mais caloroso do que eu esperava receber de um estranho.
- Eu sabia que a veria de novo Nessie. Nós vencemos, estamos livres daquela praga. – Cantarolou ele com o olhar sonhador. Eu não consegui desapontá-lo, de alguma forma o brilho inocente nos olhos de Benjamin fazia com que tudo parecesse reversível, e embora a verdade queimasse em minha garganta, eu não consegui dizer nada. Meu rosto parecia espelhar o vazio gritante dos olhos de minha mãe, pois Willian – que esperava ansioso logo atrás de Benjamin – precipitou-se até mim, pousando os olhos grandes e vermelhos em meu rosto. Aquele olhar penetrou em minha alma, exigindo a verdade que eu pretendia esconder até de mim mesma por um momento. Estremeci sob seu olhar.
- O quê houve? – Indagou ele num sussurro cheio de cuidado. Diante de meus olhos, o rosto de Willian endureceu numa máscara de terror. – Por quê os lobos estão tão agitados? – Disse ele, encarando de esguelha a matilha inquieta que se distribuía pelas árvores estreitas do bosque. Uivos impacientes ressonavam no silencio que nos envolvia, e subiam em espirais com o vento morno da floresta. Nenhum pássaro cantava aquela manhã, e mesmo ali, naquele bosque brilhante, sob o céu profundamente azul, tendo todas as cores vivas das árvores e flores nos rodeando, era como se tudo estivesse borrado, eu não sei se era eu, mas aquele lugar parecia ter desbotado em tons de cinza e medo.
Havia algo tapando minha boca, uma mão invisível talvez? Minha mente perdia-se longe, no rosto de meu pai, nas imagens turvas e agonizantes daquele ser tenebroso que se esgueirava entre as árvores, encoberto pela névoa. Os gritos humanos ecoando do interior da fera ressoavam em meus ouvidos como sussurros, e a voz de Aro... os olhos opacos se reascendendo naquela chama cruel de sangue e vingança...
- O quê houve? Por quê ninguém diz nada? – Ouvi a voz de Willian alterar-se, tentei focar-me nela. Benjamin nos olhava, ansioso e tenso.
- Deixem-na comigo um instante rapazes. – A voz trovejante surgiu como se tivesse fugido de um pensamento, um sonho perdido. Pisquei meus olhos, tentando fazê-los acreditar naquela imagem, tentando saber se era apenas mais uma visão indistinta. O sotaque sul americano carregado deixava a voz dela ainda mais singular, e era algo muito diferente do que minha mente fantasiava em meus devaneios. Aquele rosto, aqueles olhos... jamais minhas lembranças foram generosas o bastante com ela.
- Zafrina. – Suspirei. – Que bom que você está viva. – Ela me abraçou, rodeando meu corpo com os braços longos e morenos. Afagou meus cabelos com os dedos compridos que pareciam perfeitamente esculpidos em sua pele morena.
- Olá criança. Sim, eu sobrevivi apesar de tudo e estou muito feliz em vê-la novamente. – Eu tinha um milhão de coisas para perguntar a ela, mas minha mente estava estranhamente desligada, um modo de espera constante. Zafrina segurou-me pelos ombros, perscrutou meu rosto com aqueles olhos grandes, de um vermelho enegrecido. Sua pele tinha um tom azeitonado, liso e brilhante como uma estátua de mogno. Ela suspirou, e eu não entendi o motivo daquela consternação crescente que nublou seu rosto. Ela olhou para minha mãe, silenciosa e fria como um fantasma atrás de mim, e murmurou, a voz rouca saindo num sopro rígido, porém gentil:
- Seja lá o que tenha acontecido, Bella, eu gostaria que desviasse um pouco seus pensamentos de seu amado Edward e prestasse mais atenção em sua filha, você não sabe tudo pelo qual essa criança teve de passar sozinha. – A preocupação cordial e afetuosa de Zafrina foi a única coisa que impediu minha mãe de pular no pescoço dela. Eu observei sem respirar os olhos frios de minha mãe pousarem no rosto comprido e altivo de Zafrina, um vinco assustador sulcou a pele pálida de sua testa antes que ela se acalmasse, desviando o olhar indiferente para Willian e Benjamin.
- Aprecio a consideração e o cuidado que despende a Nessie, Zafrina. Mas eu realmente não preciso de alguém me dizendo como devo cuidar de minha filha, ou em que horas devo pensar no bem estar de meu marido. – Disse ela friamente. – Sabe do que eu gostaria? Eu ficaria realmente satisfeita em saber o que diabos era aquilo...
A frase não foi terminada. A respiração falhou. O coração parou em meio compasso.
Em um momento suspenso no ar, preso numa imagem fria e nevoenta, eu vi os lobos avançarem sobre nós, alguns colocando-se entre eu, minha mãe e Zafrina, e por um momento eu pestanejei, olhando dos lados, onde todos pareciam mover-se de alguma forma, grunhindo e sibilando contra as árvores que se moviam há cinqüenta metros floresta a dentro.
- Mas o quê diabos é isso? – Ouvi a voz de Benjamin atrás de mim, uma cortina de vapor materializando-se sob o comando de suas mãos.
- Eu conheço esse cheiro. – Sibilou Zafrina, a feição que segundos antes encarava-me afetuosamente, transformara-se numa máscara letal. – Bella, cubra a todos com seu escudo. As coisas vão ficar bem feias agora. – Disse ela, afastando-me com as mãos compridas enquanto colocava-se a frente, seguida por minha mãe. Olhei em volta, apertando meus olhos para ver através da névoa gelada que Benjamin conjurou.
- Willian. – Sussurrei, tentando encontrá-lo em meio à névoa.
- Estou aqui. – Respondeu ele imediatamente. A proximidade de sua voz me sobressaltou. – Tem mais alguém aqui? Onde está Lavínia e o resto de minha família? – Perguntei, pensando com um arrepio soturno, que tivemos apenas cinco minutos de vantagem, antes que aquele monstro nos alcançasse, e que nem ao menos nos demos conta de que ele estava nos seguindo.
- Não, somos apenas nós. Deixei Lavínia aos cuidados de Esme, que já saiu da cidade com os outros. Emmett e Jasper voltaram com alguns poucos que ficaram para uma busca nas montanhas ao leste. Eu, Benjamin e Alec estávamos à procura de vocês quando encontramos a matilha, e logo em seguida Alec sumiu. Mas Ness, o que é essa coisa fétida nos espreitando da floresta? Vocês viram alguma coisa? – Willian murmurava impaciente enquanto nos afastávamos lentamente para o centro descampado da clareira. Observei Zafrina focalizar os olhos, perdendo-os no espaço vazio, e imaginei que imagem ela poderia estar mostrando àquele animal grotesco. Os lobos cercaram a clareira de todos os lados, e através da bruma eu pude ver o contorno avermelhado e corpulento de Jacob, a silhueta enorme tensionada numa posição de ataque.
- Ness? – Chamou Willian, quando demorei a responder.
- Estou bem atrás de você. – Respondi. – Essa coisa... Isso é um lobisomem, um dos antigos. Nós não sabemos como Aro conseguiu encontrar esse espécime depois de tantos séculos desaparecidos do mundo. Eu e Jacob estávamos na encosta do morro quando Aro apareceu com Caius, Demetri e Jane. Ele estava muito perturbado e começou a falar coisas sem sentido. Queria que nós pedíssemos perdão e nos submetêssemos ao governo dele, em troca da informação sobre o paradeiro de Alice. Meu pai, minha mãe e Carlisle estavam conosco, meu pai tentou ler a mente de Aro, mas ele o estava bloqueando, e então, eu não sei muito bem como, Jane começou a incitar aquela criatura para cima de nós. Meu pai não pôde ver muita coisa na mente de Aro, mas nos disse o que era aquele monstro. Um lobisomem, um Filho da lua legítimo avançando contra nós.
- Um Filho da lua? Impossível, não se vê um autêntico lobisomem desde muito antes da idade média. E estamos em pleno dia, ele não poderia...
- Ela tem razão Willian. – Disse Benjamin mais a frente, os olhos concentrados nos sons indistintos que vinham da floresta. – Isso é um autêntico filho da lua. Eu não sei como é possível que ele esteja andando em pleno dia, nem como Aro conseguiu encontrá-lo e muito menos como conseguiu controlá-lo até agora, mas é certo que vamos ter problemas.
- Como você pode saber disso? – Indagou Willian, cético. Um galho de árvore estalou, partindo-se ao meio, cem metros a oeste.
- Merda, ele está nos farejando, nos rodeando como se fôssemos gado. – Sibilou Benjamin. – Como eu sei? – Continuou ele, revolvendo a névoa com as mãos espalmadas para o chão. – Amun vivia se gabando com as histórias de como seu antigo povo egípcio lutou contra as pragas de lobisomens no Egito antigo. Bem, lutar não é bem um termo correto, ele contava as histórias de como eles morriam nas garras dessas bestas. Eles dizimavam aldeias inteiras em uma noite, e quase sempre infectavam um humano, aumentando cada vez mais sua pestilência. Amun e Kebi foram do povo que habitava as primeiras aldeias que se fixaram nas margens do Nilo, toda minha vida eu ouvi histórias sobre os Filhos da lua, mas nunca levei a sério essas histórias, e agora que eles estão mortos, um maldito lobisomem me aparece bem aqui, em pleno século vinte e um. – Enquanto ouvia as palavras de Benjamin, eu podia imaginar os estragos que aqueles monstros fizeram quando caminharam sobre o mundo. Deveria ter sido uma época de trevas para humanidade, onde demônios de todos os tipos se banqueteavam de seu sangue, inclusive a minha raça. Eu queria dizer a Benjamim que sentia muito pela perda de seu mentor, de sua família, mas não me senti digna de dizer tal coisa. De que importava que eu sentisse muito, se fora eu o motivo de suas mortes. Aro os caçou por que ousaram testemunhar a meu favor. Engoli a força a bola maciça que se formara em minha garganta.
- E Amun por um acaso te disse como é possível que um maldito Filho da lua esteja passeando pela floresta em pleno dia? – Retorquiu Willian, livrando-me daquele sentimento desconfortável de culpa.
- Eu não entendo... como pode ser possível? – Disse Benjamin.
- Aro fez alguma coisa com essa criatura. – Falei, recordando os poucos vislumbres que tive do monstro. – E Jane... Ela estava machucando ele, incitando sua ira contra nós. Mas eles se afastaram da criatura, se abrigaram nas árvores, isso significa que Aro não o controla completamente. – Um silêncio soturno inundou a floresta, e na clareira nevoenta só se podia ouvir os corações dos lobos, martelando freneticamente como bombas relógio. Um pensamento temeroso invadiu minha mente de súbito. Se a criatura estava aqui, onde estariam meu pai, Carlisle e Alec? Mesmo se meu pai tivesse encontrado Aro, mesmo que tivesse havido uma luta… supostamente algum deles deveria estar vigiando a fera. Eu não queria chegar à conclusão que eu sabia que chegaria se ficasse pensando naquilo.
Um zumbido indistinto cortou o ar como uma flecha, as árvores se agitaram em volta de nós. Um rugido bestial rasgou o silêncio como um sino metálico sendo açoitado, e em meio a todo caos de grunhidos eu me vi ser empurrada para o abrigo das árvores, enquanto assistia emudecida a criatura maligna avançar sobre nós.
Capítulo 39 – Céu Vermelho Parte 1
Eu não podia ouvir sequer meus pensamentos, tudo tornou-se caos. Os grunhidos ensurdecedores enchiam meus ouvidos. Eu senti as mãos de Willian me puxarem para trás, jogando-me no chão entre as árvores e a relva molhada. A névoa começou a ceder à medida que Benjamin percebia que era inútil usá-la contra aquele animal, ele podia nos ver tão perfeitamente quanto nós víamos ele.
Os lobos atacaram, cercando-o de todos os lados. O corpo enorme e deformado erguia-se nas duas patas traseiras, a três metros do chão, fazendo com que Sam e Jacob parecessem cães normais ladrando em seus pés. Embora sua aparência medonha me causasse asco, eu não conseguia tirar os olhos daquele ser andrógino, nem mesmo ousava desviar o olhar da mandíbula larga e ameaçadora, os dentes como adagas cintilando contra a pele escura e pegajosa, os olhos negros desvairados focalizavam o nada, retomando o foco de súbito. Zafrina não estava tendo muito êxito naquela mente vazia.
A criatura parecia não se importar com a desvantagem de doze contra um, e em cada movimento furioso, ele procurava uma maneira de fechar os dentes em alguma coisa. Seu corpo era algo terrível de se observar, principalmente por se tratar de uma estrutura tão humana, uma cópia distorcida e expandida, transfigurada naquela forma grotesca. As patas traseiras, longas e esguias, terminavam em tornozelos e pés descamados, uma imitação medonha de pernas humanas, enquanto as patas dianteiras estendiam-se como dois braços humanos afim de alcançar e rasgar qualquer coisa que se aproximasse de suas garras. O pescoço semi-coberto por pêlos tão longos quanto cabelos humanos, sustentava o crânio achatado, característico das raças lupinas. O focinho comprido terminava em dois orifícios ofídicos e enrugava-se completamente, deixando à mostra a fileira de dentes enormes e pontiagudos e uma liga densa de saliva esbranquiçada que corria-lhe pelo pescoço nu . Mas o que mais fazia minha espinha gelar, eram os olhos. Demasiadamente humanos, negros como a noite e tão inconscientes quanto os olhos de um morto. Aquela criatura era uma casca vazia, completamente desprovida de qualquer consciência, humana ou animal. A única coisa que o preenchia era o ódio, a ferocidade desvairada e a sede selvagem do sangue humano.
Os lobos o enfureciam profundamente com seus ataques organizados, seus movimentos ponderados, cercando-o como um coelho apetitoso, e ele atacava, grunhindo e avançando sem medo de ser pego pelos dentes de Jacob, que avançava audaciosamente entre seus braços longos e lentos. No turbilhão de grunhidos bestiais eu sentia o perigo daquela proximidade oprimir minha cabeça, como uma prensa de ferro. As garras enormes golpeavam a esmo, a criatura era imensamente forte e letal, mas não era tão ágil e veloz quanto os lobos, ele nem mesmo percebia a proximidade cada vez mais ameaçadora de minha mãe e Zafrina, seguidas de um Benjamin bem mais cauteloso e ardiloso em seus movimentos. Eu queria agir, não podia suportar ser a platéia daquele jogo mortal, onde qualquer momento poderia ser o último para alguém próximo de meu coração.
- Jake! – Gritei, quando num instante que quase me tirou o ar, eu vi as garras afiadas golpearem o ombro de Jacob. Eu nem percebi que estava em movimento, apenas me dei conta disso quando as mãos de Willian me alcançaram a meio passo.
- O quê está fazendo? – Gritou ele sob os troncos esmigalhados e pedriscos que choviam em cima de nós. Eu quase não podia ouvi-lo em meio a tantos grunhidos.
- Eu vou ajudá-los. – Respondi, tentando me desvencilhar de sua mão, que segurava meu pulso firmemente. Quando ele não soltou, eu o empurrei com força e presumi que ele não esperava tanta ferocidade de minha parte. Desviei de um tronco que voou diretamente para mim e avancei sobre os juncos em direção à luta. Quando passei por Leah – a mais distante do grupo – senti os braços de Willian rodearem minha cintura, levando-me de volta para a proteção das árvores.
- Me solte Will, qual é o seu problema? Nós precisamos ajudá-los. – Grunhi, tentando agarrar-me a qualquer coisa, a fim de escapar do aperto de aço de seus braços.
- Você está louca? Esqueceu que você é a única aqui com sangue humano correndo nas veias? Se aquele maldito sentir seu cheiro, ele vai atacar, e Deus nos ajude, por que ninguém vai conseguir detê-lo. – Eu não estava resignada com a idéia de me esconder enquanto todos estavam arriscando suas vidas, mas tinha que admitir que seria um problema se aquele monstro farejasse meu sangue. Mordi a língua para não pronunciar as maldições que afloravam em minha mente, enquanto buscava alguma solução para meu problema maior: minha frágil humanidade; mas todas as minhas boas intenções de obediência foram frustradas pela voz de Zafrina:
- Bella, recue! – Gritou ela, enquanto Sam e Paul investiam contra a fera pelos flancos. Eu não pude piscar e num primeiro momento de desespero eu senti meu coração falhar. Podia jurar que era o fim para minha mãe quando vi a pata dianteira alcançar seu pescoço. Ela oscilou para trás, evitando o golpe mais profundo. Uma mecha de cabelo cor de mogno esvoaçou pelo ar.
- Mãe! – Gritei, enquanto me colocava em movimento novamente. Progredi dois passos apenas e Willian já me tinha de novo presa em seus braços de aço. As coisas ficaram intensas, nossa investida estava ficando impaciente e a ferocidade da criatura era impassível diante de toda nossa cautela. Eu parei de pensar no segundo em que vi aquele ataque que poderia ter me tirado minha mãe e simplesmente avancei, tentando escapar da proteção de Willian. Que se dane meu sangue, se eu não fizesse nada, muito mais sangue iria jorrar.
Porém, quando eu já me preparava para escapar dos braços de Willian, houve mais um ataque, e em meio ao ganido de dor que ressonou apenas por meio segundo, Willian e eu fomos atingidos pelo corpo enorme e cinzento de Seth. Fomos lançados em meio às árvores e rolamos pelas pedras da encosta do vale. O corpo cambaleante de Seth comprimia Willian contra o chão, enquanto eu lutava para me livrar das pernas traseiras que estavam esmagando meu estômago. Olhei para Willian, preso sob o corpo peludo, e depois para Seth, semi-consciente. Bem, era agora ou nunca. Que Willian me perdoe, mas eu tinha que agir!
Me arrastei pelo chão até livrar minhas pernas do peso de Seth e coloquei-me em movimento assim que pude ficar em pé. Dez metros adiante os urros bestiais cortavam o ar como uma tempestade, trovejando pelo espaço vazio a nossa volta. Corri para lá.
- Ness! – Ouvi Willian gritar e acelerei o passo, antes que ele pudesse me alcançar.
Quando cruzei a orla das árvores, Benjamin me deteve, erguendo as mãos sem desviar os olhos da criatura.
- Ness, para trás! – Gritou ele. Eu nem estava perto o bastante quando ouvi os urros ensandecidos da criatura cessarem, e com eles, todos os sons, grunhidos e sibilados que enchiam a clareira. Por um momento eu apenas observei tudo ficar suspenso no ar, todos os olhos se estagnarem em mim aterrorizados. A clareira permaneceu três segundos mergulhada num silêncio agourento, enquanto todos observavam o focinho descarnado sugar o ar em minha direção. Reunindo alguma força oculta dentro de mim, eu me preparei para o que viria.
Ele atacou, arrastando Sam, Paul e Embry, lançando-os no chão como galhos secos, abrindo caminho até mim. E estranhamente, como se fosse algo absurdo de se esperar de mim mesma, eu não senti medo. Diante daquela aproximação que significava dor e morte, eu estava lúcida, completamente ciente de meu corpo se retesando para a luta. Observei friamente a aproximação violenta do monstro, e as tentativas frustradas de todos que tentavam pará-lo. Eu senti seu olhar selvagem queimar em minha pele, mirando minha garganta.
Naquele meio segundo, eu cheguei a sorrir, enquanto o assistia avançar, hipnotizado pelas batidas do meu coração e pelo cheiro quente de meu sangue.
Capítulo 39 – Céu Vermelho Parte 2
Venha, venha. Chegue perto o suficiente para eu pôr minhas mãos em você. Eu quero sentir o gosto do seu sangue, filho da lua. Em minha mente, as palavras ecoavam como ondas que se erguem e se quebram na praia, transpassando o véu da minha visão e escorregando lentamente para ele. Eu vi os olhos da criatura fitarem meu rosto por dois ângulos diferentes. O quê era real e o que era imaginário se misturava em sua mente vazia, e meus pensamentos, naquele instante, eram também os pensamentos dele.
Ele correu e continuou a correr, avançando sobre as quatro patas e sem nenhum traço de lucidez, diretamente para mim. Uma breve hesitação retesou seu corpo esguio apenas por um segundo, e eu senti que ele podia me ouvir, de uma forma que eu não sabia explicar, eu sentia que minhas palavras mudas eram para ele como pontas afiadas que cutucavam seu corpo, uma fisgada no orgulho de quem jamais fora desafiado. Era difícil de entender, mas eu não o temia e naquele momento, não conseguia pensar muito bem sobre isso. Eu estava ali, olhando-o nos olhos, e o quê vi foi a crescente atração que minha súbita coragem provocava nele, mais irresistível que o sabor de meu sangue. O anseio dele me alcançava com imagens pálidas. Seus dentes perfurando minha pele e secando minhas veias, enquanto meu coração lutava para não sucumbir à morte, resistindo à ele como nenhuma outra criatura jamais o fez.
Meio segundo, talvez menos que isso... Enquanto eu era arremessada ao chão, minha mente se acendia para o entendimento de que aquela conversa não aconteceu realmente.
Senti o peso quente sobre mim, meus pensamentos se emaranhavam com os daquela criatura vazia – tão vazia que me fazia sentir frio, mesmo sob o corpo enorme que queimava contra minha pele. Meus pensamentos, os pensamentos dele. Fundiram-se naquele breve momento em que estive sob a mira de seus olhos mortos.
As folhas secas agarravam-se em minhas roupas como animais rastejantes. Mãos quentes me apertavam contra o chão. Olhei por sobre o ombro largo que me pressionava na relva úmida, os rugidos bestiais ainda ressonavam em algum lugar muito perto de mim.
- Jake, o quê você está fazendo? - Sussurrei trêmula em seu ouvido.
- Salvando sua vida. – Respondeu ele, a voz rouca presa na garganta, tentando escapar pelos dentes firmemente cerrados. Jacob rolou de lado, ofegando, o coração martelando freneticamente. Me apoiei nos cotovelos para olhar em volta e com um súbito estremecimento percebi o quão perto estive da morte.
- Jake, por quê você está nessa forma? É perigoso demais. – Balbuciei as palavras sem pensar muito no que estava dizendo. Meus olhos seguiam, vidrados, o esforço dos lobos para conter a criatura, enquanto registravam com uma pontada de culpa, os ferimentos que se abriam e sangravam entre seus pêlos espessos.
- Se eu tentasse te agarrar na outra forma, teria feito mais estrago que ele. – Respondeu Jacob, com um aceno soturno para a criatura.
- Eu vi a mente dele. – Sussurrei para ele, sem me dar conta, até aquele momento, do quê realmente havia feito. – Eu deixei meus pensamentos escaparem para fora de mim e de repente eu estava vendo coisas da mente dele. Eu sentia a sede dele, Jake... – Olhei para Jacob com uma pontada de medo crescendo dentro de mim, confusa e atormentada pelos breves momentos em que aquele monstro esteve dentro de mim. Jacob sustentou meu olhar, o rosto intransponível.
- JAKE! – Ouvi a voz de minha mãe gritar para nós de algum lugar que eu não podia ver, e no mesmo instante Jacob me envolveu em seus braços novamente, colocando seu corpo sobre o meu como um escudo humano. Por sobre o ombro moreno eu vi, horrorizada, a criatura se aproximar como uma sombra gelada. Quando os dentes pontudos faiscaram sobre nós, perto o bastante para nos matar, eu enlacei meus braços no pescoço de Jacob e fechei os olhos. Eu não deixaria ele morrer por mim, eu ficaria com ele até o fim, então nós dois morreríamos. Zero a zero.
Enquanto mantive os olhos fechados, eu pude vislumbrar novamente aquelas imagens distantes da mente dele. A sede eterna, um fogo consumindo seu corpo – meu corpo – eternamente. Mais imagens vieram, desgastadas, desconexas, cenas se apagando na escuridão, como velas num altar esquecido. A lua. Pálida e soberba, rasgando o céu como uma boca de luz incandescente, engolindo a noite, faminta, tão faminta... E o fogo, devorando a aldeia, perseguindo a escuridão da floresta com olhos brilhantes, um fantasma queimando as sombras e me queimando por dentro.
Abri os olhos. Por um segundo eu esperei ver o céu – ou o inferno. Me senti secretamente feliz por ter encontrado a morte depressa, sem dor, e com ele em meus braços. Eu estava me sentindo quase feliz... Mas aquele rosto, aquela forma imóvel e esguia estava realmente ali? Aqueles olhos me seguiriam até na morte? Eu deveria estar no inferno, revivendo todas as coisas ruins que fiz, recebendo o castigo por desejar dois caminhos que jamais poderiam se cruzar. Sim, esse é o inferno, mesmo sendo tão bom poder olhar para ele novamente, enquanto tinha o outro em meus braços, esse decididamente era meu inferno, minha perdição eterna. Alec, Alec... Por quê você veio até aqui para me atormentar? Ou será você o anjo da morte, trazendo dor e incerteza para meu coração, toda vez que me deixa?
- Você está bem? – A voz de Jacob me alcançou no turbilhão de pensamentos que se misturavam em minha cabeça. A lua...a lua crescendo sobre mim...
Não! Aqueles não eram meus pensamentos, não eram minhas lembranças, eu precisava impor algum sentindo em minha mente. Olhei para o rosto pálido e suado de Jacob, pairando sobre mim com tanto cuidado, os olhos negros me encaravam, examinando meu estado, como se eu fosse uma peça de porcelana. O hálito quente em meu rosto, o cheiro da pele, do sangue... Era tudo bem real, por um momento minha cabeça girou e meus olhos ganharam foco novamente, como se uma névoa espessa tivesse se dissipado. O cheiro do sangue de Jacob me despertou, tão doce e forte, tão quente... Escorria em linhas finas sobre mim, traçando um caminho lento por seus ombros e braços, ensopando minha roupa, gotejando sobre meu rosto imóvel. Olhei em minhas mãos, tremendo, e havia tanto sangue.
Meu sangue, o sangue de Jacob... se misturando, nos envolvendo como um manto.
- Jake. – Sussurrei, ofegando, o desespero ganhando partes de mim.
- Shhh, eu estou bem. – Disse ele afagando meu rosto com as mãos grandes demais.
Olhei em volta. Por quê Alec estava aqui? Ele não estava aqui um segundo antes, não até que fechei meus olhos.
Eu não podia ver a criatura, não podia ver os outros tampouco, embora as vozes me chegassem próximas, claras como cristal.
- Você está bem? – Perguntou Alec sem desviar o olhar de algum ponto a sua frente.
- Estou ótimo, foi só um arranhão, graças a você. – Respondeu Jacob fitando meu rosto.
Diante de mim havia apenas o corpo trêmulo de Jacob e a silhueta imóvel de Alec, mas eu sabia que os outros estavam ali, podia senti-los.
- Ness, deixe-me ver isto. – Disse Jacob, colocando-me sentada enquanto me aninhava em seus braços e examinava preocupado os profundo cortes em meus braços, que vertiam sangue livremente.
- Já está fechando, eu estou bem. – Respondi, desviando minha atenção para as palavras rápidas de Alec. Tentando entendê-las em meio aos zumbidos que insistiam em sussurrar em meus ouvidos, vozes que me chamavam de dentro das memórias que não eram minhas.
- ...alguém precisa ir ajudar Edward e Carlisle. Eles precisam de mais ajuda que eu. – Disse Alec, respondendo à alguém.
- Onde eles estão? – Mesmo dalí eu pude sentir o desespero de minha mãe enquanto se dirigia, aflita, até Alec.
- Seguimos Aro até Volterra. Eles estão lá, e acredito que ainda estejam. Mas Bella... leve mais alguém com você.
- Eu vou. – Falou Zafrina. – Não estou ajudando em nada aqui.
- Eu também irei, se estiver tudo bem. – Disse Benjamin, lançando um olhar atribulado para mim.
- Você pode ir Benjamin, mas preciso de Willian aqui. Além disso, nós temos outro problema. – Alec deu alguns passos cautelosos, contornando um rochedo e um agrupamento de árvores, onde uma trilha de sangue se arrastava até perder-se na relva. Ele olhou para o alto do rochedo e seguindo seu olhar, eu pude ver a figura obscura o encarar, os olhos negros sob um domínio tênue. – Jasper está precisando de ajuda nas montanhas, e talvez devamos mandar os lobos para lá. Eu posso acalmar o filho da lua por algum tempo, mas não é muito. Ele agora não está sentindo dor, mas a raiva ainda está nele, eu posso sentir. Ele vai atacar novamente, e quando ele o fizer, nós precisamos estar prontos.
- Como matamos o desgraçado? Amun não te contou nenhuma história sobre isso Ben? – Disse Willian, aproximando-se de Alec.
- Desculpe, ele não disse nada, ou talvez eu tenha deixado de prestar atenção em suas histórias. – Respondeu Benjamin taciturno.
Eu ouvia tudo num silêncio distante, com minha mente trabalhando depressa, com aquelas imagens pálidas sobre a vida daquele ser incompreensível, enquanto me obrigava a manter meus pensamentos nesse plano, em minha própria vida, participando de meus próprios pesadelos. Pensei na dor que Alec mencionou, e imaginei que tipo de dor ele sofria, Jane estava bastante longe para não o fazer mal. Eu sentia que entendia aquilo, embora não o fizesse conscientemente. Uma dor tão antiga quanto seu próprio sangue, tão parte dele quanto a sede abrasadora. Sim, eu podia entender por quê provei aquela pequena parcela de suas lembranças, tão saturadas de dor que me faziam arder sob aquelas imagens.
Fogo. Fogo consumindo meu próprio ser, incinerando cada ínfima parte, ofuscando meus olhos naquela escuridão eterna.
Por sobre as ondas incertas que se debatiam em minha mente, esse pensamento se desprendeu, e sem que eu me desse conta, as palavras formaram-se em minha cabeça e simplesmente escaparem pela minha boca.
- Fogo. O Filho da lua deve morrer pelo fogo.
Capítulo 39 – Céu Vermelho Parte 3
- O quê disse? – Perguntou Alec, aproximando-se de mim silenciosamente. Jacob estreitou os braços em minha volta e tentou não encarar tão rudemente a pessoa que acabara de salvar nossas vidas. Engoli com dificuldade a bola presa em minha garganta e disse:
- Eu vi a mente dele Alec. Eu não sei como, mas vi. Por um momento meus pensamentos saltaram de dentro de mim e as memórias dele vieram. É tudo caótico, atemporal, nada tem coesão, mas eu senti... Eu não sei explicar como isso é possível, mas eu senti o medo dele, a aversão pelo fogo. – Enquanto falava, eu podia sentir os olhos de todos presos em mim, e o silêncio que era quebrado apenas por minhas palavras e pelos roncos grotescos da criatura que repousava num estado de inércia. O vento corria livre pela clareira, as árvores se agitavam acima de nós, encobrindo o céu claro e os raios de sol. Alec ouvia minhas palavras com olhos atentos, o rosto frio intransponível enquanto me olhava. Minhas palavras eram tão estranhas para mim quanto eram para os outros, mas eles não sentiram o que senti, eles não viram o horror e a escuridão que inundavam a mente daquele ser. Meu pai entenderia, ele saberia nos dizer o que aconteceu.
- Como isso é possível? Ela nunca fez nada parecido antes... – A voz de Jacob ressonou baixa às minhas costas, e quando olhei para ele, vi que encarava o rosto tenso de minha mãe.
Uma raiva súbita tomou conta de mim, e sem que eu tivesse a chance de me controlar, coloquei-me de pé e me afastei de Jacob e de seus braços protetores. Eu estava cansada de ser olhada daquele jeito, como uma aberração indefesa.
Os cortes nas costas de Jacob já haviam fechado, enquanto meus braços estavam apenas sujos e doloridos com as marcas rosadas das cicatrizes que logo sumiriam.
Ignorei os olhos atentos de minha mãe que me seguiam como fendas de calor, e caminhei até o corpo imóvel e grande da criatura. Enquanto me aproximava, eu tentava não me sentir culpada ou envergonhada pelo modo que eu vinha agindo, a raiva por ser protegida e vigiada por todos me pinicava por dentro, oscilando silenciosamente dentro de mim. Eu estava farta de ser salva por todos, de ser poupada sempre. Quantas vezes eu estive frente a frente com a morte? Mesmo assim, aqui estava eu; a aberração preferida das criaturas insanas. Primeiro Aro, depois isto? Pensei, encarando os olhos vidrados do lobisomem a minha frente.
- Ela pode estar certa. – Ouvi Benjamin dizer. – Afinal, nós também não somos lá tão fãs de uma fogueira, certo?
- Isso não é um vampiro Benjamin. É a droga de um monstro de mais de dois mil anos, nós não sabemos nada sobre ele, e pode ser que, assim como nossa espécie, ele fique mais forte com o tempo. Todos nós sabemos o que os anos fazem conosco. – Willian se aproximou de mim, suas palavras ecoaram pelas árvores e morreram no silencio do vento.
- Nós precisamos tentar. –Disse Jacob, ocultando sua nudez com uma camisa semi destruída.
- Se nós colocarmos fogo nele e não funcionar, eu não serei mais capaz de usar meus poderes para acalmá-lo. Esses são monstros controlados pelo ódio, quando estão enraivecidos, nada pode controlá-los. – A voz de Alec soava distante em meus ouvidos, e estranhamente, como num túnel, eu me vi afastando-me do grupo, sendo tragada por uma força invisível. Os olhos negros me fitaram, desprendendo-se da estagnação e do torpor, e quando o brilho selvagem faiscou em mim, eu senti a força atrativa que exerciam. Ele estava me puxando - como se usasse as próprias mãos – para dentro de si. Um turbilhão de força chacoalhou meus pensamentos por um instante, e antes que eu sucumbisse novamente à mente obscura dele, eu gritei:
- Alec! – Senti o vulto negro passar por mim como um sopro de uma brisa gelada. Alec parou em frente a criatura, entre mim e aqueles olhos negros, e mesmo sem poder enxergar, eu pude sentir a força maciça de poder desprendendo-se dele, envolvendo a criatura como um casulo de fumaça e torpor.
- Não posso contê-lo por muito mais tempo. – Disse Alec, a voz entrecortada pela concentração intensa.
- E então, o que faremos? – Perguntou Benjamin, ansioso.
- Vocês vão para Volterra, as coisas podem estar piores lá. Alec se moveu de forma que só seu perfil pálido ficasse visível para os demais. Por entre as sombras das árvores, eu pude ver os olhos vermelhos faiscarem no rosto disforme da criatura que se debatia freneticamente.
- Os lobos... – Resfolegou ele, enquanto tentava conter os espasmos violentos da criatura. – Leve alguns para as montanhas. Jasper precisa de... – Os urros furiosos impediam que Alec terminasse de dizer à Sam o que ele pretendia. Ele tremia, tentando manter os olhos fixos na fera. Os outros se afastaram, desviando dos destroços que eram lançados pelas patas do animal. Eu fiquei ali, um passo atrás de Alec, não podia deixá-lo enfrentar sozinho a ira daquele monstro.
- Ness, saia daqui. Vá com eles para Volterra, não é seguro... – Gritou Alec por sobre o ombro.
- Alec, você tem que se afastar. Você não vai conseguir segurá-lo por mais tempo. – Minhas palavras confundiam-se com os rugidos que rachavam nossos ouvidos. Enquanto eu me obrigava a pensar num modo de tira-lo dalí, eu novamente me surpreendi olhando para a criatura. Dessa vez porém, eu ouvi sua voz, e o quê ele me disse naquele momento, me seguiria por toda minha vida.
Capítulo 39 – Céu Vermelho Parte 4
- Pare com isso! – Gritei, levando as mãos aos ouvidos. Senti uma leve agitação a minha volta, mas não podia saber quem era, embora tivesse uma turva sensação de que alguém gritava para mim. Minha mente era bombardeada por imagens perturbadoras e vozes que se misturavam à minha própria voz num turbilhão desesperado que engolfava meus sentidos. Os gritos desesperados de um homem ensurdeceram meus ouvidos, rasgando meus pensamentos como garras afiadas, e através de meus próprios olhos, eu me vi indo ao encontro dele. Alguém estava morrendo, eu podia sentir o cheiro de sangue no ar. O cheiro queimava meu corpo como se o próprio fogo estivesse vertendo de dentro de mim. Não era nada como o sangue dos aldeões, que misturava-se como sal e ferrugem, quente e viscoso, mas sangue é sangue, e eu estava faminto. Uma criatura gelada se aproximou de mim, e tinha um cheiro terrível, adocicado, tão forte que fazia minha cabeça doer e minhas narinas arderem. Ele trazia nas mãos um coração ainda pulsante, e através da escuridão e da dor que rachava minha cabeça, ele lançou o coração ainda quente para mim. Eu o engoli inteiro, rugindo com a fome abrasadora, enquanto ouvia os risos cortantes daquela coisa morta e gelada que me observava com olhos vermelhos. Por entre as grades que me enclausuravam eu vi o rosto imóvel da criatura que perdeu seu coração para saciar minha fome.
- Pare, pare! – Minha voz parecia longínqua embora eu estivesse gritando a plenos pulmões. E não importava o que eu fizesse, o rosto de Nahuel ainda permanecia ali, sob minhas pálpebras, como se eu mesma estivesse assistindo Aro arrancar seu coração e jogá-lo para a criatura, eu senti o gosto enquanto ele engolia o órgão ainda quente.
- Ness, pare com isso! – Alguém gritava para mim, eu não sabia se era real, mas a voz dissolveu a escuridão daquela cena terrível e logo eu pude ver Alec, jovem e humano, correndo por um caminho de pedra, sorrindo sinceramente sob a luz de um dia quente, e uma garotinha vinha logo atrás dele, e ela sorria também, os cabelos dourados ficavam ainda mais claros na luz. Seus grandes olhos azuis seguiam o pequeno Alec onde quer que fosse, e ele sabia que ela queria ser tão rápida e esperta quanto ele... Mas então o céu escureceu, e tudo em volta se tornou sombrio, os irmãos já não estavam mais ali. Grandes árvores ameaçadoras se fecharam sob mim, e em algum lugar eu podia ouvir passos leves e velozes sobre a relva baixa. Então eu vi três mulheres grandes e morenas correrem por entre as árvores, a primeira delas conduzia as outras por entre a escuridão e sem que pudessem perceber como, um bando de homens encapuzados saiu de dentro da escuridão, eles agarraram as três mulheres. Elas não conseguiram lutar, eles eram muitos, a primeira delas gritou de dor enquanto assistia as outras duas serem destroçadas, e antes que pudessem acender as piras para queimar seus restos, os homens levaram a mulher da selva pela escuridão adentro. Zafrina chorava sem lágrimas enquanto era levada pelo exército Volturi.
- Façam ela parar! – Gritava alguém repetidamente, enquanto um turbilhão de outras vozes e imagens rodopiavam em volta de mim. Eu não sabia mais aonde estava, eu estava perdida? Impossível, esse era o caminho, o mapa dizia exatamente a mesma coisa. Olhei em volta novamente, e com grande alívio eu vi a nossa campina se abrir diante de mim, um lugar de magia onde eu sempre poderia ir para encontrá-lo uma vez mais. Era lindo, a relva coberta por flores silvestres, o sol se pondo e o crepúsculo tingindo o céu, mas eu, estranhamente, a achei tão vazia e desoladora quanto um deserto estéril. Ele não estava ali, ele não voltaria jamais. A campina sem ele era nada mais que um amontoado de mato.
Essa será a última vez que você me verá...
Oh Deus, doía, como doía. Minha cabeça girava e era espremida por uma onda incessante de imagens e lembranças que se alternavam tão rapidamente que não me deixavam espaço para saber que era eu. Eu era o monstro comedor de corações? Era o pequeno Alec? Ou era Zafrina? Poderia eu ser Bella, abandonada por seu amor numa campina esquecida? Quem? Quem era eu nesse mar de memórias?
Uma torrente de imagens me envolveu e eu senti que elas me envolviam como fumaça, e eu estava sufocando. Senti que estava caindo, alguém comprimia meu tronco, um abraço gelado me envolvendo, uma película de luz caindo sobre mim como água fria.
- Ness, Ness... Volte para mim. Volte para sua mãe querida. – A voz suave soprava em meus ouvidos, e enquanto eu tentava alcançá-la, eu via mais e mais rostos e imagens passarem por mim. “Eu te amo Lavínia, e não vou te condenar a mesma maldição que me cerca.” “Não, não, por favor. Amun, não me deixe aqui, leve-me com você, eu quero ser seu filho, por favor...” “Eu nunca vou me perdoar por ter feito isso com você Emily.” “Eu te amo Renesmee, eu sempre te amei...”
- Ness! – Gritou minha mãe. Abri meus olhos, sem saber que eles estavam fechados. Eu ainda podia sentir o poder do escudo dela me envolvendo. Minha cabeça latejava de forma violenta, eu me sentia com a disposição de quem acaba de se lançar de um prédio de vinte andares. Olhei em volta, tentando me situar, tentando descobrir onde eu estava e quem eu era. Sim, eu era Renesmee, e estava bem aqui, no meio do pesadelo. Me sobressaltei ao ver que todos os lobos estavam em suas formas humanas, cambaleando entre os outros que colocavam-se eretos com alguma dificuldade, todos pareciam ter acordado de um desmaio.
- O quê eu fiz? – Sussurrei, e minha mãe apertou minhas mãos entre as suas. Jacob, que estava mais próximo de mim, olhou-me consternado.
- Agora está tudo bem querida, não se preocupe. – Minha mãe afagou meus ombros enquanto nos colocávamos de pé.
- Não, não está nada bem. – Zafrina se aproximou, seus olhos grandes faiscaram em meu rosto por um momento. – Bella, ela deve saber e compreender o que fez, ela quase matou a todos nós. – Me sobressaltei ao ouvir aquilo. – Ness, como fez aquilo? – Disse ela segurando-me pelos ombros e me lançando um olhar perscrutador.
- Eu... eu não sei. Eu estava olhando para a criatura e de repente ela olhou pra mim e a mente dele... Era como se ela me puxasse para dentro, e eu vi...
- Você viu Aro matando Nahuel e alimentando a fera com seu coração. Todos nós vimos Ness, é isso o quê você fez. Você roubou as lembranças de todos nós e espalhou pelas mentes ao seu redor. Você plantou pensamentos roubados em nós. – Enquanto Zafrina falava, eu via passar em minha mente rápidos fleshs, mas apesar de entender o que eu havia feito, eu não conseguia acreditar que aquilo pudesse ter matado alguém.
- Por quê você diz isso Zafrina? Por quê acha que eu iria matar a todos? – Minha voz tremia, eu sentia o olhar de todos caindo sobre mim. Zafrina ponderou por um momento e disse:
- Eu não sei se teria nos matado, mas Ness, desde a minha transformação eu não sinto uma dor tão abrasadora quanto essa que você nos impôs. Era como sentir o cérebro rachar ao meio e se incendiar a partir do centro. Eu não teria suportado mais um segundo daquilo. – De um em um, eu fitei os rostos em volta da clareira, e ao pousar meus olhos em Alec perguntei:
- Onde está o filho da lua? – Ele se aproximou, seu rosto transparecendo uma preocupação muda.
- Fugiu, se embrenhou no vale. Ele sentiu a dor também, e acredito que tenha visto tudo que vimos. – Assenti sem dizer nada, enquanto sentia um medo soturno crescer dentro de mim. Eu estava me tornando algo que nem mesmo eu sabia o quê era. Reuni o pouco de orgulho e caráter que ainda restavam em mim e, sentindo meu rosto corar, disse:
- Peço desculpas a todos vocês. Eu não... não sabia o quê estava fazendo. Não pude controlar, embora isso não desculpe o fato de tê-los exposto dessa forma. – Todos permaneceram em silêncio, o quê aumentou gravemente minha humilhação e vergonha. Eu não conseguia olhá-los de frente.
- Todos nós perdemos o controle às vezes. – Disse Jacob, e percebi quando ele lançou um olhar atravessado a Sam. – Ninguém aqui pode te culpar por perder o controle, ainda mais quando estamos numa situação como esta.
- Ele está certo. – Disse Willian, aproximando-se de mim. – Mas agora não importa mais. Precisamos ir atrás daquele monstro e queimá-lo de uma vez, não há tempo para considerações e cautela. Se não atacarmos agora, ele pode sumir, ou pior, pode nos caçar como...
- Como humanos? – Interrompeu Sam. Um esgar sombrio cruzando suas feições
- Como cachorros. – Provocou Willian, sustentando o olhar soturno de Sam.
- Sam, os outros precisam da sua liderança agora, você é o Alpha. – Falou Jacob. – Vamos seguir o plano anterior. Bella, Zafrina e Benjamin irão para Volterra, você deve mandar um bando para as montanhas...
- Eu sei o quê devo fazer Jake. – Resmungou Sam e com um tremor violento, o corpo moreno explodiu num lobo negro. Seguiram-se então mais quatro transformações, Paul, Embry e Quil se afastaram com Sam até a orla de árvores e um minuto depois se lançaram em uma corrida silenciosa pela floresta. Sam contornou o tronco de um abeto e de lá saiu caminhando na forma humana.
- Eu vou ficar, já que Seth está ferido e Leah terá de cuidar dele. – Olhei por sobre o ombro de Sam, onde, entre as arvores, Leah mantinha o corpo de Seth apoiado em seu colo. Seth tinha as duas pernas quebradas e várias costelas fraturadas, mas estava consciente e nos observava de longe.
- Acha que pode cuidar disso? – Ouvi minha mãe perguntar a Alec discretamente enquanto mais planos eram traçados por Zafrina e Willian.
- Ele não deve estar longe, só precisamos chegar perto o bastante para que eu o desoriente por um momento, e então, acendemos a pira. – Minha mãe assentiu, silenciosa, enquanto lançava um olhar ininteligível para mim. Ela não estava questionando o poder de Alec de deter a criatura, mas sim de lidar comigo e com esse novo e incontrolável poder que estava brotando em mim, se desenvolvendo tão rapidamente, que eu não tinha tempo sequer de percebê-lo se manifestar. Vendo que eu a observava, ela não voltou a falar e simplesmente veio até mim e me beijou na testa, dizendo:
- Você devia vir comigo.
- Eu logo estarei com vocês novamente. Preciso fazer isso, prometo que vou ter cuidado. – Eu não queria fazer nenhum tipo de promessa ou dizer que ficaria tudo bem, mas o quê mais eu poderia dizer a minha mãe quando ela me olhava daquela forma? Ela ponderou por um momento, e eu cheguei a achar que ela tentaria me levar com ela de qualquer forma, mas ela nada disse ou fez.
- Cuide-se e volte para mim assim que puder. – Disse ela, enquanto se afastava e seguia com Zafrina e Benjamin para as ruínas de Volterra.
- Ness, precisamos nos apressar. - Disse Jacob, colocando a mão em meu ombro. Respirei fundo o mais discretamente que pude e disse para mim mesma que eu me manteria sob controle. Estava temerosa, e receava que aquela não seria a última vez que eu me veria perder o controle de minha própria mente. Enquanto caminhava silenciosa ao encontro dos outros, ouvi Sam dizer á Leah:
- Você vai ficar bem? Já mandei Jared vir para cá para ficar com vocês, ele chegará em breve. Se cuide Leah, e cuide de Seth por mim. – Me sobressaltei ao ver Sam acariciando o rosto de Leah, com uma ternura que eu o vira usar apenas com Emily. Leah o olhava sem dizer palavra, o olhar torturado preso no rosto de Sam como quem implora algo. Desviei o rosto daquela cena e numa rápida passagem pela clareira a minha volta, meus olhos se encontraram com os de Alec. O manto negro havia sido quase completamente destruído, obrigando-o a se livrar dos farrapos. Agora, porém, sua pele contrastava acentuadamente contra a camisa preta, que a despeito das mangas rasgadas, deixava seus braços longos e esguios nus. Também não era seguro olhá-lo, nem tampouco confortável me recordar de que já o havia beijado, de modo que me senti agradecida quando todos se reuniram para a iminente caçada que se seguiria.
- O rastro dele vai para o norte, talvez esteja indo para as montanhas. – Disse Willian, enquanto nos reuníamos para partir.
- É possível, e se ele não fizer nenhum desvio vai dar de cara com Jasper e Emmet. – Concordou Jacob. – Então aí o encurralamos.
- Não vai ser tão simples assim, você viu como ele reage quando está sem saída. – Eu percebi que Alec tentava não pousar os olhos em mim com tanta freqüência como fazia, enquanto falava, ainda mais com Jacob a meu lado, e no meio dessa disputa de olhares eu me via de cabeça baixa, escutando e tentando não me sentir tão desconfortável com aquilo.
- Temos que considerar a hipótese dele desviar e descer o vale até a cidade, há famílias morando no campo, pouco mais de dez quilômetros daqui. – Sam mantinha a voz firme enquanto falava, e percebi, ao olhar para ele, que Sam não se sentia nem um pouco a vontade com a proximidade de Willian e Alec, e talvez até mesmo com a minha.
- Acho pouco provável. – Respondeu Alec. – Não perceberam o incômodo dele com a luz do sol? Ele é uma criatura noturna e já é um mistério o fato dele estar andando por aí em pleno dia, geralmente essas criaturas dormem durante a lua minguante e só despertam no quarto crescente para se banquetear durante os sete dias da lua cheia. Por mais faminto que esteja, ele não vai correr pelos campos de trigo quando o sol está a pino. Ele vai para as montanhas, onde há grutas geladas durante todo o verão.
- Como sabe tanto sobre essas...coisas? – Indagou Jacob, e eu não pude deixar de perceber a nota de desconfiança que pontilhou aquela pergunta, nem creio que Alec o tenha deixado passar despercebido.
- Eu tive muitos anos para saber e conhecer muitas coisas. – Respondeu Alec num tom brando.
- Me parece, e não sei se vocês concordam comigo, que o fato do filho da lua ter abandonado suas tradições, tem alguma coisa a ver com aquela cena grotesca com que Ness nos presenteou. – Interveio Willian, olhei-o, sobressaltada por ter meu nome destacado naquela conversa novamente, e ponderando por um momento, eu concluí que não poderia discordar dele, nem ignorar o fato de que Aro deveria ter bons motivos para ter preparado tudo aquilo, tal como vi na mente da criatura, mesmo com as tendências teatrais e todo ar rebuscado de Aro.
- O coração. – Disse eu. – Acha que tem alguma ligação com essa mudança de hábito?
- Acho que o fato de Aro ter escolhido o coração meio imortal de um mestiço, não pode ser inteiramente ignorado por nós. Ele tinha alguma finalidade com aquilo, disso eu tenho certeza. – Willian me encarou, e eu não pude deixar de notar que ele havia destacado especialmente o fato de Nahuel ser um mestiço, como eu. – Bem, pelo menos sabemos agora o quê o interessava tanto em você minha cara, uma vez que mestiços estão em falta no mercado. – Disse ele.
- Maldito. – Grunhiu Jacob.
Silenciosamente, eu tecia minhas próprias teorias sobre os interesses de Aro, mas não podia deixar de concordar com a lógica de Willian.
Todas essas considerações se firmaram num prazo de poucos minutos e logo estávamos correndo pelo vale esverdeado, com a luz do sol penetrando as árvores grandes e antigas. Jacob e Sam assumiram a dianteira, suas patas enormes rasgavam o solo úmido enquanto cravavam suas passadas rápidas na relva. Alec e Willian seguiam comigo logo atrás numa marcha acelerada, todo som, todo cheiro, todo rastro era registrado, levando-nos, como dissera Alec, para as montanhas que circundavam Volterra. Quanto mais perto chegávamos, mais os odores da criatura se fundiam com a fumaça pesada das piras que ainda queimavam em vários pontos, dentro e nos arredores da cidade. Olhando para a depressão que acomodava a pequena e devastada cidade de Volterra, eu imaginei onde estariam meus pais, mas tive que deixar meus temores para outra hora, e me concentrar no rastro de poucos minutos que contornava a montanha pela base, subindo poucos metros de sua encosta íngreme.
- Fiquem atentos. – Murmurou Alec. – Ele sabe que estamos aqui.
Uma brisa fresca varria a encosta, agitando a orla de árvores e levantando a fumaça negra das ruas mortas de Volterra, por um breve momento senti um traço de um cheiro familiar, mas não conseguia segui-lo ou detectá-lo, e o rastro se dissipou no vento.
- Tem mais alguém aqui. – Eu disse, tentando encontrar aquele tênue rastro que se confundiu no ar. Willian e Alec trocaram olhares atribulados enquanto procuravam captar algum rastro, e foi vasculhando cada ínfimo indício de presença, que subimos a encosta escarpada dos morros de Volterra.
- É Jasper e Emmet, eles estiveram aqui não faz mais de quinze minutos. – Falei, inspirando o ar quando já adentrávamos as primeiras fendas da montanha. O cheiro de Jasper se espalhava por toda a entrada da caverna e penetrava fundo na montanha.
- Será que encontraram a criatura? – Perguntou Willian.
- Não acredito que tenham, nós teríamos ouvidos os barulhos da luta. – Respondeu Alec. Olhei para entrada da caverna que ficava cada vez mais para trás, a luz do dia morrendo sob as pedras que fechavam-se sobre nós. O caminho estreito não permitiu que Sam e Jacob entrassem, tendo eles que dar a volta na encosta até o outro lado e seguir o rastro por fora, caso a criatura tivesse encontrado uma outra entrada. Alec, Willian e eu seguimos o rastro de Jasper e Emmet por dentro, e eu não conseguia deixar de sentir a presença de mais alguém, embora o cheiro me parecesse tão distorcido e modificado.
Nós estávamos no meio da caverna quando os rugidos da criatura soaram na superfície, reverberando pelas paredes internas da montanha.
- Por aqui. – Gritou Alec, arrebentando um dos recôncavos da caverna e abrindo uma passagem improvisada para um túnel adjacente. Corremos desenfreadamente pelo túnel cada vez mais estreito, até que avistamos a luz do dia se estender a nossa frente. Os urros da fera misturavam-se ao dos lobos e ecoavam pelas pedras como se essas conduzissem sua ferocidade diretamente para nós. Antes de cruzar a passagem, percebi com um estalo que era o cheiro de Alice que eu vinha sentindo, e nem ao menos tive tempo de pensar sobre isso, e já estávamos do lado de fora, frente a frente com a criatura erguendo-se nas pernas traseiras e sibilando furiosamente contra Jacob, Sam, Emmet e a pequena Alice que se retraía ao lado de Jasper. Minha respiração se conteve ao vê-la, e se não fosse a seriedade e urgência da situação, nada teria me impedido de correr para abraçá-la.
Alice olhou-me aturdida, seu rosto pequeno se contorcendo numa máscara de pânico. Eu podia ver seus olhos se perderem nas inúmeras possibilidades que se abriam em sua mente, e por um instante eu imaginei se nossa chegada havia bloqueado suas visões. Minha presença, bem como a interferência dos lobos, mudava tudo na perspectiva das visões de Alice, e ela agora estava cega para o que viria a seguir.
Não houve muito tempo para conversas ou estratégias, tão logo nos reunimos, deu-se início uma seqüência de ataques coodernados, sucessivos e extremamente violentos. Jasper avançou com tudo, inspirando Emmet a segui-lo em suas investidas pouco ponderadas. Sam e Jacob não ficaram para trás, e logo eu quase já não podia acompanhar tudo que se sucedia naquela cena terrível.
- Eles vão se matar. – Gritou Willian para Alec, que mantinha-se logo atrás da luta, tentando enlaçar a criatura em sua rede de torpor.
- Recuem. – Gritava Alec, mas ninguém o ouvia, exceto eu.
Eu podia sentir o quão mortal e sanguinolento a luta se tornava a cada momento, e mesmo assim obrigava-me a não desviar o olhar. Jasper investia com toda fúria contra a criatura e suas habilidades em combate o renderam vários golpes de êxito que fizeram a criatura sangrar em vários pontos de seu enorme corpo deformado. Mas isso só parecia o enfurecer mais, e em dado momento, eu pude extrair uma pequena parcela de escuridão de sua mente, e então eu sabia que ele agora estava tomado pela sede de morte e destruição.
Olhei para Alice. Ela estava imóvel, observando, aterrorizada, o desfecho sangrento daquela luta. Eu não sabia se ela se dava conta do quão próxima ela estava do combate, e antes que ela fosse pega pelo turbilhão de golpes que a teriam destroçado, eu me lancei em direção a ela e cheguei a tempo de tirá-la dali. Mas então algo aconteceu atrás de nós, e ao me virar, não consegui assimilar de imediato o quê acontecera e meio segundo após, Emmet foi lançado nas pedras, os braços parcialmente arrancados de seu corpo. Um estrondo sucedeu o impacto e o barulho me fez acordar para o fato de que aquilo era real e estava acontecendo bem ali, a alguns metros de mim.
- Emmet! – Gritei, sem saber ao certo o quê fazer ou o quê pensar. Ele ficaria bem, não é? Ele se restabeleceria em alguns minutos, certo? Minhas pernas ameaçavam ceder a qualquer momento, e com algum esforço eu me obriguei a me manter firme, não importa o quê houvesse. Alice estava trêmula em meus braços, de modo que tive que ampará-la junto a mim, não podia deixá-la. Mais uma explosão de fúria chamou minha atenção para a luta, e dessa vez eu vi Willian e Sam sofrerem sério golpes e serem arremessado para longe. Jasper investiu, Jacob o seguiu de imediato, cercando a criatura. Alec se aproximou, os olhos focados em seu propósito de abrandar a fúria do animal, mas não parecia que seria o bastante dessa vez, não quando Jasper e Jacob o estavam ferindo tanto.
Num último urro de dor e ódio, a criatura agarrou Jacob pelo pescoço e lançou-o de encontro a Alec. Meus olhos seguiram o corpo grande e peludo de Jacob ir de encontro às árvores e Alec desviar do golpe que receberia se fosse atingido e quando voltei meus olhos para a criatura, eu vi o corpo de Jasper ser levantado no ar. A pata dianteira atravessou o peito de Jasper, eu vi suas costas arquearem e seu rosto perder a expressão. Enquanto Alice gritava ao meu lado eu só pude sentir a dor dela alcançando minha mente, e quase como um instinto inevitável de destruição, eu me propaguei para dentro da mente da criatura. Ele largou o corpo abatido de Jasper e dobrou no chão com a dor que irradiava de seu cérebro primitivo. Era como segurar um laço de calor que se estende até a outra mente, queimando ambos os lados da linha tênue que nos unia, comprimindo nossos pensamentos numa só caixa de escuridão e dor. Eu não sabia como manter a ligação por muito mais tempo, e enquanto a sentia escorregar e oscilar, eu senti que meu corpo ia de encontro à criatura que se contorcia de dor.
E então eu estava fora da mente dele, perdendo por completo a ligação que me mantinha dentro dele, e ele, dentro de mim. Os olhos negros e vazios da criatura me fitavam enquanto eu me aproximava, e desviando meu olhar dele por um momento, eu vi o rosto de Jasper se contorcer e seu corpo reagir, tentando se juntar novamente. Apenas alguns passos me separavam da criatura, embora eu não soubesse o quê faria de fato quando estivesse cara a cara com ele. Eu estava quase alcançando Jasper quando ele avançou bruscamente e o abocanhou, içando-o pelo ombro e o arrastando com ele para a encosta da montanha.
- NÃO! – Ouvi Alice gritar, enquanto permanecia paralisada, vendo-o arrastar Jasper para as ruínas de Volterra, e sabendo, com um aperto de aço comprimindo meu peito, que seu veneno já corria pelas veias de meu tio.
Capítulo 40 – Imortais
Meu primeiro impulso foi segui-lo, após aquele breve momento em que meu corpo se entorpecera de choque, eu me lancei na corrida mais desesperada de minha vida. Eu ainda podia ouvir os gritos de Alice ecoando atrás de mim, estremecendo o vale com aquela dor sem tamanho, e embora não pensasse em muita coisa enquanto seguia o maldito, minha mente se encheu daquela dor, nublou tudo, meus pensamentos, minha visão. Eu estava tão perto que podia vislumbrar o rosto lívido de Jasper sumindo a reaparecendo em meio às árvores, preso entre os dentes pútridos daquele monstro maligno. Podia também sentir Alec, logo atrás de mim, e Willian, seguido por Jacob. Todos estavam bem, afinal de contas, Emmet cuidaria de Alice, e Sam logo estaria conosco, seguindo o maldito. Mas por quê nada parecia bem para mim? Por quê eu não me sentia forte o bastante para ver as coisas por esse ângulo? Uma das coisas que Jasper me ensinou foi nunca baixar a guarda numa situação de risco, “não leve seu coração para uma batalha” dizia ele. Eu não estava dando muito orgulho para meu professor, eu suponho. Eu tentava pensar, tentava riscar alguma estratégia de última hora em minha mente, mas nada acontecia, e eu apenas ouvia essas vozes ecoando na minha cabeça, embaçando minha visão da realidade, como quando meu pai disse, naquela mesma manhã maldita: “O mesmo veneno que infecta humanos e os transforma, é capaz de paralisar um corpo imortal de forma irreversível. É talvez a única forma de morte que dispomos, além da fogueira.” E cada vez que essas palavras se repetiam dentro de mim, mais eu me sentia destruída, impotente, indigna de ter sido treinada por aquele homem que eu não pude salvar. E o quê eu faria então? Quando os alcançasse o quê eu diria à Jasper, antes de vê-lo silenciar para sempre numa semi-morte que todos nós desconhecíamos? Maldição, eu pensava, enquanto engolia com dificuldade o choro preso em minha garganta, meus olhos queimavam com as lágrimas que ameaçavam transbordar a qualquer momento.
Volterra estava a poucos metros de nós e eu não permitiria de forma alguma que ele levasse Jasper para aquelas ruínas fumegantes, sujando e envergonhando o corpo dele como se fosse um pedaço frio de carne. Os outros se aproximavam cada vez mais de mim, e eu pensei, o quê eles fariam? Estavam aqui para me deter caso eu desse uma de louca novamente? Dane-se, falei para mim mesma, se eu era a merda de uma aberração, podia muito bem agir como uma, eu já não me importava mais.
Que se danem todos eles, quero que vão para o inferno com sua proteção e cuidado. Arranquei um pequeno tronco enquanto passava pelas árvores, e por um breve momento de insanidade, eu não sabia ao certo o quê estava fazendo. Apenas fiz.
Esperei a silhueta asquerosa da criatura entrar em mira e arremessei. Quarenta centímetros de um galho de árvore um pouco mais grosso que meu punho. Foi direto, se projetou pelas folhas e arbustos com a força do meu ódio. Sorri quando ouvi o guincho de dor da criatura ecoar à minha frente e o cheiro de seu sangue subir ao ar como fumaça. Bingo!
Atravessou a perna direita na altura da coxa, e ainda estava lá quando eu o vi cambalear. Oscilou um pouco na descida, até pensei que largaria Jasper bem ali, mas o maldito continuou, sangrando e mancando, com a estaca fincada na perna e Jasper preso entre os dentes. Mas aí eu já não tinha dúvidas, não hesitei em arrancar outro galho de outra árvore, enquanto procurava uma outra maneira de acertá-lo e atrasá-lo. Era só o quê eu precisava, um momento, um pouco mais de sangue no chão. Eu nem ao menos via o quê estava agarrando enquanto desmatava o vale atrás do maldito filho da lua, eu arrancava tudo o quê minhas mãos podiam alcançar, errei algumas vezes, acertei de raspão em vários pontos de seu corpo, mas foi minha última estaca a mais sortuda, a premiada. Entrou até o talo. De onde eu estava, trinta metros atrás dele, eu podia ver o belo rombo que se abriu em sua barriga. O flanco direito esguichou sangue como um maldito champagne Krug*.
Ele desacelerou e eu fui direto para ele, quando apenas dez metros nos separava, ele largou Jasper no chão, lançando-o na relva, virou o corpo ensangüentado para mim e soltou um guincho ensurdecedor que soava como um misto de dor e ódio.
E se foi.
Cambaleando, ele continuou em direção aos portões de Volterra, que, embora queimados e semi-demolidos, continuava sólido e imponente, cercando um amontoado de cinzas. Mas eu já não podia segui-lo, eu tinha o que eu queria bem ali.
- Jasper. – Sussurrei, enquanto o segurava em meus braços. O sangue da criatura cobria suas roupas, e o cheiro era insuportavelmente forte e ácido. Alec e Willian cruzaram as árvores atrás de mim, um segundo depois Jacob saiu de lá na forma humana.
Estava acabado, eu pensei, examinando as fendas que se abriam por todo seu tórax, braços e ombros. O veneno se espalhava rapidamente, eu podia sentir o cheiro na pele dele, podia sentir a quentura se espalhando pelos membros gelados de Jasper.
- Temos que levá-lo daqui. Sam acaba de me avisar que os humanos já perceberam o quê houve com a cidade, os moradores não sabem como foram parar em Pienza e estão fazendo um pandemônio por lá. Logo a imprensa e a polícia vão cair como corvos aqui. – Disse Jacob com a voz embargada. Eu podia perceber o esforço que ele estava fazendo para ser prático, para se manter firme enquanto eu estava ali, impotente diante do corpo de Jasper.
- Não podemos deixar a criatura solta por aí enquanto os humanos estão por toda parte. – Disse Willian. – Se ele se alimentar de alguém, então teremos outro maldito filho da lua para lidar. Precisamos encontrá-lo Alec.
Eu ouvia aquelas palavras e entendia o quê significavam, mas não conseguia tirar meus olhos do rosto imóvel de Jasper. Os olhos âmbar me fitavam, e de alguma forma eu sentia que ele ainda estava ali. Seu corpo pendia inerte em meus braços, e olhá-lo daquela forma me custava tanto...
- Não...baixe a...a guarda. – Meu sangue gelou ao ouvir Jasper sussurrar aquelas palavras. Ele estava ali, ainda estava naquele corpo. Os outros emudeceram, Jacob se ajoelhou ao meu lado.
- Ele está vivo? – Perguntou ele, uma esperança crescendo dolorosamente em seu rosto.
- Sim, oh Deus, sim. – Falei, tremendo sob o corpo de Jasper. – Jake, me ajude aqui. – Passei um dos meus braços sobre Jasper, afim de acomodá-lo melhor. Levei meu pulso à boca e quando eu ia perfurar a pele, Jacob segurou meu braço.
- O quê está fazendo? – Perguntou ele.
- Jake, ele está muito fraco, talvez um pouco de sangue ajude-o a se recompor. – Falei, sem desviar os olhos do rosto de Jasper.
- Eu não sei se é uma boa idéia. – Respodeu Jacob.
- É a única que temos nesse momento. – Eu disse, puxando de volta meu braço, e, sem demora, fiz um pequeno corte em meu pulso. Deixei o sangue gotejar livremente sobre a boca semi-aberta de Jasper, seus olhos opacos me fitaram tranquilamente.
- Vamos lá Jasper, beba. Agora você pode, tem permissão para isso. – Tentei esboçar um sorriso enquanto falava, mas tudo que consegui foi uma careta de dor. – Vamos, beba. – Eu já não podia conter as lágrimas, e uma após outra elas escorreram por meu rosto. – Por favor, beba, beba... – Jasper apenas me olhava serenamente, sua sede já havia secado, assim como seus olhos logo o fariam.
Eu chorei. Enquanto o segurava junto de mim, com meu sangue fluindo para dentro de seu corpo morto, chorar parecia a única coisa que eu poderia fazer por ele. E tudo piorou mil vezes mais quando Alice e Emmet nos alcançaram, eu tive que olhar nos olhos dela e entregar o corpo daquele que sempre fora sua vida.
- Eu sinto muito. – Eu falei, enquanto tremia por inteiro, vendo-a se curvar sobre o corpo de Jasper e o segurar em seus braços pequenos pela última vez. Alice não disse uma só palavra. – Eu sinto muito. – Quanta dor poderia caber num só coração? Eu ao menos fazia idéia do quanto Alice estava sentindo?
- Ele não está morto. – Disse-me ela enquanto eu me afastava com Jacob. Eu olhei aquele rosto pequeno, aqueles olhos infantis, e Alice apenas emudeceu, segurando Jasper em seus braços, o rosto vazio, tão morto quanto o dele. Mas eu não pude dizer nada a ela, não podia nem mesmo encará-la, então eu a olhei uma vez mais antes de seguir com os outros para Volterra. Eu tinha uma caçada para terminar, eu devia isso a Alice.
***
O chão de pedra estava negro, as casas queimadas até não sobrar nada, montes de escombros, a fumaça impregnava tudo, nublava o céu. Alec e Willian seguiam pela rua estreita, Jacob os seguia silencioso, suas patas grandes agitando a fuligem do chão enquanto passava. Do alto dos telhados que resistiram ao incêndio, eu os observava lá embaixo.
O rastro de sangue da criatura formava uma trilha de migalhas que nos levaram diretamente para ele. Estávamos tão perto que eu podia sentir o cheiro fétido de seu corpo. Ele havia perdido muita velocidade com os ferimentos, e agora corria desnorteadamente por Volterra, dando voltas, procurando por algo entre as ruínas.
Então, subitamente, ele começou a correr e correr, acelerando para o centro da cidade. De lá do alto eu o vi mancar, ele não se curava tão rápido quanto os lobos, e isso era bom, significava que eu poderia feri-lo inúmeras vezes antes de mandá-lo diretamente para o inferno.
Comecei a correr também, me equilibrando nas vigas dos telhados e nos muros de pedra, a criatura aumentou o ritmo, eu saltei para o chão, me juntando aos outros. Estávamos quase alcançando o maldito quando a fumaça cedeu lugar a outros cheiros.
- Aro. – Murmurou Willian.
- E Jane. – Falou Alec.
- Meus pais estão aqui também. Ótimo.
Ouvimos a criatura grunhir, vozes se misturarem no vento, palavras que nos alcançavam como sussurros. E então alcançamos as vozes, e quase no mesmo instante eu vi o rosto de Aro e Jane do outro lado da praça. A fonte de pedra os separava de meus pais, Carlisle, Zafrina e Benjamin. Estavam encurralados feito ratos, não podiam contar com a criatura que sibilava enlouquecida para qualquer coisa que se movesse a sua volta. A cada passo que o monstro avançava em qualquer direção, Benjamin o continha fazendo voar tijolos de pedra e escombros perdidos pelo chão, a criatura já bastante ferida, grunhia e se afastava.
- Ah, vejam quem está viva ainda, minha querida Renesmee. E vejo que trouxe meu Alec de volta para mim. – Disse Aro do outro lado da praça. A torre da igreja pairava como uma grande sombra atrás de mim. Alec e Willian ao meu lado direito, Jacob no lado esquerdo, parecíamos algum tipo de grupo de reforços ou algo assim, mas eu me sentia distante daquilo tudo, só conseguia ver o rosto de Jasper em minha frente, aquela última imagem dele, eu só queria acabar com aquilo de uma vez e poder me sentar em algum canto e ficar de luto por ele.
- Cale a boca Aro, eu não tenho tempo para suas merdas agora. Tenho uma besta para queimar antes de você. Espere sua vez. – Eu falei, enquanto observava a criatura no meio da praça, pesando as possibilidades de aproximação. Aro riu, aquela risada enfadonha e desdenhosa.
- É justamente disso que se trata o nosso impasse aqui. – Disse ele satisfeito. – Veja bem, seu pai não pode encostar em mim enquanto não tiver certeza do que fiz com Alice, e ao mesmo tempo, ele não pode tirar o que quer de minha mente. – Um sorriso afetado brincou no rosto de Aro. – Entende o quê quero dizer minha querida? Vamos passar o resto de nossa eternidade aqui. – Disse ele exibindo uma satisfação soturna enquanto me encarava.
- Talvez não demore tanto quanto você imagina. – Falei, me movendo cuidadosamente em direção de meus pais. A criatura grunhiu, mas não se moveu de sua posição.
“Pai, nós encontramos Alice. Ela está com Emmet e...Jasper perto das montanhas.” Tentei organizar meus pensamentos de modo coerente, sem deixar escapar a pontada de dor que atravessava minha mente. Meu pai assentiu de modo discreto, deixando-me ver que entendia. Arrisquei mais alguns passos para perto deles, enquanto vigiava a criatura no centro da praça. Aro me observava do outro extremo, estava silenciosamente desconfiado de minha atitude. “Precisamos terminar logo com isso pai, os humanos estão vindo para cá.” Ele me olhou de esguelha, o rosto rígido como uma máscara, e deu seu primeiro passo em direção de Aro e Jane. Os outros o olharam confusos, sem saber o quê estava acontecendo ou o quê deveriam fazer, então eu continuei caminhando em direção a eles, e um a um, eu os toquei e transmiti as notícias. Minha mãe estremeceu quando viu em sua mente o rosto de Alice. Estava secretamente aliviada, feliz. Zafrina manteve-se inabalável, aquilo era algo normal para ela. Benjamin enrijeceu, Carlisle baixou a cabeça, ponderando consigo mesmo.
- O quê você está fazendo? – Murmurou Aro do outro lado, enquanto assistia a aproximação cautelosa de meu pai em sua direção. Uma pontada de pânico cruzou suas feições quando Jane se colocou em sua frente. Era agora, eu pensei, isso termina aqui.
- O quê está fazendo meu jovem? Não vê a tolice que está prestes a fazer? – Aro se movimentava, agitado, desconcertado com a expressão inabalável de meu pai enquanto se aproximava lentamente dele, Aro via o que todos nós estávamos vendo naquele momento: seu fim. Por mais que Jane pudesse protegê-lo por alguns poucos minutos, ela não seria capaz de enfrentar meu pai numa luta direta, não com seus poderes bloqueados por minha mãe, e Aro sabia disso. Eu só não entendia por quê Jane não fugia, por quê ficava ali, sabendo que iria morrer também? Não pude evitar olhar para Alec. Ele estava prestes a assistir a morte de sua irmã, sua única família mortal e imortal. Se eu não lamentasse tanto por Jasper, creio que teria lamentado isto.
Meu pai hesitou um pouco ao se aproximar do meio da praça, onde uma pilha de destroços obstruía o pavimento, ele chutou alguma coisa de seu caminho, e quando olhei novamente para seus pés, percebi que era a cabeça de Demetri ali, entre restos de casas e cinzas. Ele tirou algo do bolso também, em seguida falou, com a voz tranqüila:
- Sabe qual é o problema com os lobisomens Aro? – Ele acendeu o pequeno isqueiro prateado, arremessando-o na pilha de entulho diante de si. Aro o fitava sem nenhuma expressão legível nas faces. – Eles não se curam tão rapidamente quanto os lobos e não se juntam novamente como nós. Mas sua pior falha é... Eles sangram.
A pira acendeu com uma língua de fogo que se alastrou rapidamente, lambendo e estalando os cabelos dourados de Demetri, desintegrando as partes imortais que se confundiam com tudo o mais naquele bolo de escombros. A criatura soltou um guincho nervoso e tentou correr, Willian e Alec rapidamente se postaram nas saídas do círculo que formava a praça central de Volterra, obrigando a criatura a permanecer ali, onde seria queimada junto com os restos de Demetri. Pensei secretamente quem teria liquidado o rastreador Volturi, teria sido meu pai?
Aro, àquela altura, era uma estátua imóvel, observando todo seu castelo de cartas desmoronar diante de seus olhos gananciosos.
- Você não pode fazer isso. – Balbuciava ele. – Como irá recuperar sua irmã, hein? Como vai encontrá-la sem mim? – Sob o pequeno corpo de Jane, Aro recuava, diminuía, era patético. Era aquilo que Jane estava protegendo? Aquele verme covarde e desonrado? Eu não podia entender a obsessão dela.
- Alice está a salvo, Aro. Nessie a encontrou nas montanhas. Isso significa que você já pode morrer e pagar por tudo que fez. – Disse meu pai, retomando a caminhada tranqüila.
- Impossível. – Disse Aro, os olhos vermelhos quase pulando das órbitas. – Impossível.
Enquanto eu olhava o rosto lívido de Aro, eu senti um tremor me rodear, de súbito pensei ser Benjamin, mas logo percebi que o tremor vinha de dentro de mim e não do solo. Pisquei algumas vezes, reiterando o foco, respirando a fumaça pesada que emanava da pira à minha frente. Então meu coração acelerou o ritmo, e a sensação de estar sendo lançada no ar me envolveu. Estava acontecendo de novo, e agora, eu estava indo diretamente para a mente de Aro. Atraída como uma pequena mosca. Eu estava lá, presa nas teias emaranhadas da mente dele. As imagens eram tantas... Milhares de pensamentos roubados de outras mentes, milhares. “Por favor pai, veja isto.” Eu pensava, enquanto tentava me firmar naquelas memórias estáveis. Um turbilhão rodopiava a minha volta, uma rebelião de vozes e rostos infindáveis. Aro estava desesperado, não conseguia pensar nem resistir à minha invasão. Eu nem tinha certeza se ele sabia que eu estava dentro de sua mente, sugando qualquer coisa que eu pudesse alcançar. Porém, a mente dele tinha o gosto do desespero, um teor obscuro se derramava à minha volta. Ele estava quase entrando em colapso, e se eu não fosse rápida o suficiente para quebrar a ligação, eu sucumbiria também.
“ Então temos um trato. Eu lhes dou a vidente e vocês me dão o filho da lua.”
“ Sim, temos um trato. Mas só por curiosidade Aro, o quê pretende com aquela criatura? Faz mais de dois mil anos que eles adormeceram sob as esfinges, refugiados da luz e das fogueiras das cidades em ascensão. Seria prudente despertar um mal tão abominável e infeccioso como aquele?”
“ Ora Vladimir, você e Stefan não vão querer bancar os puritanos agora não é? Muito menos com alguém que conhece seu passado sangrento. Eu sei muito bem como vocês governaram o mundo imortal quando estavam no poder. Se Marcus não os tivesse banido com seus exércitos, duvido muito que ainda houvessem humanos neste planeta, em cinco séculos vocês quase drenaram a Europa inteira.”
“ É verdade, nunca negamos nosso real interesse e nosso verdadeiro caráter, isso é algo que você sabe fazer muito melhor que nós. Mas negócios são negócios, e eu e Stefan estamos muito interessados nessa vidente, desde aquela fatídica manhã em que os Cullen receberam sua honorável corte em Forks. É simplesmente divino o quê aquela criatura pode fazer. Consegue imaginar Aro? O futuro do mundo em suas próprias mãos? Espanto-me até agora ao pensar em sua proposta. Afinal, quem em sã consciência trocaria aquele belo espécime imortal por um monstro fedido e que ainda por cima não pode ser controlado?”
“ Está querendo me fazer mudar de idéia Vladimir? Eu tenho planos para aquela criatura.”
“ Tem haver com os Cullen, não tem? Você está obcecado por eles, posso ver isso em seus olhos Aro. Mas creio que seria muito mais fácil mandar seus gêmeos bruxos atrás deles. Com um poder assim nas mãos, quem precisa de um lobisomem? É muita sujeira para limpar.”
“ Ah meus queridos, pode-se ver que não sabem muito sobre esses filhos da lua.”
“ E por quê deveríamos? Enquanto estiverem longe de nossas fontes de alimentação, não há nada neles que desperte nossos interesses. Você por outro lado deve se interessar muitíssimo, afinal, foi você quem liderou a chacina que quase exterminou todos eles.”
“ É verdade, sim. Em todos aqueles anos em que eu e Caius passamos caçando esses demônios, eu pude aprender muito sobre eles. Coisas terríveis, meus caros, criaturas realmente terríveis.”
“ Mas então você teve que deixá-los para outra hora não é mesmo Aro? Você tinha um golpe de estado para articular, e isso era infinitamente mais importante do quê caçar cachorros à luz da lua.”
“ A reunião acabou. Na próxima lua cheia eu quero receber os mapas das tumbas e os papiros secretos que vocês roubaram do Vaticano. Digo novamente que isso é uma perda de tempo, tudo seria mais prático se simplesmente me deixassem tocá-los e ver por eu mesmo as localizações.”
“ O trato é este Aro. Você fica fora de nossas mentes, nós ficamos fora de seu caminho.”
“ A vidente chega em Volterra na terça-feira. Estejam prontos.”
As palavras escorregavam para dentro de mim como água suja, imagens lamacentas. Os rostos se acendiam e se apagavam, enquanto passavam pela linha tênue que me segurava lá dentro.
- Ness, saia! – Gritou meu pai.
- Está tudo bem pai. – Consegui dizer à ele com dificuldade. – Eu só preciso... só preciso encontrar o antídoto. – Eu lutava para ir mais fundo na mente de Aro, mas o turbilhão me arrastava por lugares distantes, me soterrava em memórias desconhecidas. Eu não conseguia fazer minha mente ir para onde eu queria que ela fosse, eu me forçava ao máximo para me manter firme enquanto dizia a mim mesma que devia isso à Alice. Eu tinha que encontrar o pensamento que me daria o poder de salvar a vida de Jasper. Segui a trilha das imagens obscurecidas que mostravam tudo o que Aro fez com a criatura durante o tempo que o manteve preso nas masmorras de Volterra. Torturas, infindáveis sessões de torturas nas quais Jane o deixava inconsciente no chão, com espasmos chacoalhando seu corpo esgotado. E a fome. Aro o deixou sem uma só gota de sangue, até a noite terrível em que o alimentou com o coração ainda vivo de Nahuel. Fui adiante, cada vez mais fundo no lodo da mente de Aro.
Vi o quê ele fez com o pobre Nahuel também, vasculhando cada parte de sua extrutura, revirando sua mente e seu corpo como se procurasse por algo. Mas o quê? O quê?
- Ness, saia. Você ainda não sabe controlar isso. – Gritou meu pai novamente. E quando eu encontrei a porta que me levaria mais adiante, tudo sumiu. Abri meu olhos e encarei o rosto sereno de Willian diante de mim.
- Não há nada lá. – Murmurou ele, tocando meu rosto.
- Eu ia encontrar Will, eu estava perto. Libere meus poderes, nós ainda podemos salvá-lo. – Eu falei, lutando com as lágrimas e com a frustração de ter falhado novamente.
- Olhe para ele Ness. – Disse Willian, afastando-se de mim para que eu visse o corpo de Aro tombado no chão. – Aro finalmente perdeu. Ele não tem mais nada que possamos tirar dele. - Aro estava de joelhos, e tremia... O rosto lívido fitava meu pai com um desespero mudo. Jane estava lá ainda, como um escudo protetor para aquele monte de lixo.
- Vamos acabar logo com isso. – Sussurrou Willian, enquanto colocava em minhas mãos um pequeno punhal prateado e um isqueiro que trazia cravado em ouro o V de Volturi, o brasão real daquele poder que terminaria ali. Assenti, silenciosa, olhando novamente para Aro e observando meu pai se aproximando de Jane como uma sombra gelada.
Assim como eu sabia que aconteceria, Jane resistiu apenas três minutos, na qual a maior parte do tempo tentou afastar meu pai de Aro, incitando-o a segui-la para dentro da cidade. Então meu pai agarrou-a pelo pescoço e Jane se debateu como uma onça selvagem, agitando as pernas no ar, sibilando enquanto tentava se livrar do aperto de aço em sua garganta. Meu pai hesitou por um instante, e mesmo sem entrar em sua mente eu sabia o porquê. Ele estava lendo todos os sentimentos de Alec e Jane naquele momento, estava sentindo o quê eles sentiam, estava sendo a vítima e o carrasco. “Força pai, você sabe que é o único jeito” Pensei, sentindo o peso daquelas palavras enquanto observava o rosto aflito de Alec. “Ele fez a escolha dele. Ele sabe que foi a escolha dela.” Eu não sabia se dizia aquilo para mim mesma ou para meu pai.
- Edward, termine. – Disse minha mãe. Os sibilados de Jane se misturavam com os da criatura que se encurralara sob a sombra gigantesca da igreja. Eu sentia que não podia mais suportar ouvi-los, eu só queria que tudo aquilo terminasse de uma vez.
- Você tem a chance de viver Jane. Não precisa morrer por isso. – Disse meu pai, virando o corpo suspenso de Jane de frente para Aro. Ela o olhou enquanto se debatia, seu rosto delicado contorcido de ódio.
- Vá para o inferno Cullen. Eu vou te mat... – Meu pai torceu o pescoço delicado e arremessou o corpo pequeno de Jane contra as paredes de pedra. O estralo revirou meu estômago, mas assim mesmo me obriguei a olhar seu rosto inexpressivo virado para trás. Meu pai não queria matá-la, por algum motivo ele hesitou, eu me perguntava o quê ele viu na mente dela que o impediu de queimá-la ali mesmo. Ninguém entendeu o por quê ele fez aquilo, mas eu duvidava que era apenas por quê ele queria aproveitar melhor sua morte.
Quando tirei meus olhos do rosto de Jane, Aro já estava nas mãos de meu pai. Preso da mesma forma que Jane, pelo pescoço, dependurado como um frango de abate.
Dei as costas para aquela cena, eu não me interessava mais pela morte de Aro, só queria que estivesse feito, terminado, esquecido. Ao invés de vê-lo morrer, eu precisava terminar com outra existência destrutiva, e o filho da lua não iria ficar ali, me esperando para sempre.
Porém, quando me virei na direção da criatura, eu senti uma presença silenciosa se aproximando, vindo pelo interior da igreja. Pensei ser só impressão, mas Jacob também virou focinho na direção da igreja, e Alec também percebera, então eu não devia estar imaginando. Seria uma de nós? Com toda aquela fumaça eu não podia captar o cheiro.
A criatura parou de urrar por um momento, estava sentindo a presença também, mas logo se colocou em movimento novamente, rodeando as portas da igreja, sibilando e parando de vez em outra para lamber um ferimento que corria sangue.
- Temos compania. – Eu disse, quando tive certeza que havia alguém vindo em nossa direção. Todos se colocaram em alerta novamente, e meu pai segurou o corpo de Aro contra a parede com um estampido metálico.
- É Marcus. – Disse Alec, que estava mais próximo.
- Pai? – Disse Willian, se aproximando o máximo que a criatura permitia da entrada da igreja.
- Irmão. Irmão venha me ajudar. – Gritou Aro, enquanto se debatia nas mãos de meu pai.
Marcus sabia que a criatura estava bem ali, obstruindo a porta a qual ele se dirigia. Então por quê não arrebentava a lateral da igreja? Por quê não saía por uma janela? Ele por um acaso estava imaginando que aquele monstro iria dar licença para quê ele pudesse cruzar a maldita porta?
- O quê ele está fazendo? – Eu disse.
- Não sei. – Respondeu Willian. – Mas temos que pará-lo, caso contrário ele vai sair diretamente para os dentes daquele bicho. – Willian começou a procurar um jeito de se aproximar, e enquanto ele gritava para Marcus se afastar da porta, eu pensava por quê diabos eu deveria ajudar a salva-lo? Marcus poderia não ser o demônio que Aro era, mas consentiu em tudo que ele fez, se omitiu a todas as barbaridades dele. Isso não fazia de Marcus um bom candidato em minha lista de salvamentos. Bem, era tarde demais. Marcus tocou a porta, abrindo-a com um rangido agourento, a criatura se virou furiosa com a proximidade súbita, se ergueu nas patas traseiras, sibilando e parou bem ali.
Tive que piscar meus olhos para ter certeza de que não estava tendo um curto circuito em meu cérebro. Todos estavam imóveis em seus lugares, inclusive Willian que tinha no rosto a expressão mais desesperada que eu já vira em suas feições. Que merda havia acontecido?
- É típico de você Aro. – Disse Marcus, passando pelo corpo paralisado da criatura. – Se esquecer dos detalhes mais importantes e sempre menosprezar os conhecimentos antigos. – Marcus tocou um cordão de prata que pendia sobre seu manto negro e caminhou lentamente, segurando uma pequena pedra leitosa pendurada na corrente. Eu não conseguia desviar meus olhos por muito tempo da criatura. Ele estava consciente, seguia Marcus com os olhos escuros com toda calma que eu jamais julguei ver naquele monstro. Como era possível? O quê Marcus tinha feito com ele?
- Sinceramente, não sei o quê vi em você Aro. Você nunca foi um bom conselheiro e nunca será um bom líder para nossa espécie. Não sei por quê o deixei ir tão longe. – Marcus parou no centro da praça e ficou olhando o rosto contorcido de Aro, encarando-o. Aro fitou a pedra entre os dedos pálidos de Marcus.
- Pedra da lua? – Sussurrou Aro com dificuldade.
- Sim. Pedra da lua. Um mineral tão insignificante, tão desprezível. Era tudo que você precisava para controlar um filho da lua. – Marcus falou.
- Não, não. Você está mentindo. Nada pode controlá-los. – Disse Aro se debatendo novamente.
- Você nunca me ouviu Aro, sempre achou que eu era um louco obcecado por uma morta.
- Isso não importa mais! – Gritou Aro. – Tire-me daqui Marcus. Tire-me daqui e vamos reconstruir nosso clã.
- É tarde demais Aro. Tarde demais para nós dois. – Disse Marcus dando-lhe as costas.
Não sei por quê não dei importância para aquilo no momento, talvez eu tenha pensado que Jane não se moveria mais quando a vi imóvel no chão, o pescoço torcido e os olhos apagados. Quão estúpida eu fui. Eu tinha feito exatamente o quê Jasper me pedira para jamais fazer. Eu abaixei a guarda, todos nós abaixamos. Mas agora era tarde, como disse Marcus, e Jane já estava ali, de pé novamente, atacando Marcus com sua tortura mental. Marcus gritou e se dobrou no chão, Jane agarrou a pedra e a arrancou de seu pescoço. Willian gritou, correu até lá, tentou agarrá-la, mas Jane já estava lançando sua maldição sobre meu pai, que largou Aro enquanto segurava a cabeça entre as mãos, gritando:
- Bella! – Então minha mãe reagiu, recolocou o escudo que havia sido recolhido, mas Jane já corria pelas vielas de Volterra, arrastando Aro atrás de si. Correu como se estivesse correndo do próprio diabo. Ela levou Aro, a pedra da lua e toda esperança que eu tinha de terminar aquilo antes da noite cair sobre nós.
- Maldita! – Eu grunhi, me lançando atrás dela. Quando eu estava perto o suficiente para lançar a adaga que trazia nas mãos, Jane estacou, virando-se de súbito para mim. Ela me olhou nos olhos, enquanto afagava a pedra da lua entre os dedos, como se procurasse um botão secreto. Enquanto eu a observava girar a pedra entre os dedos pálidos, eu ouvi o grunhido bestial cortar o ar e tilintar em meus ouvidos como facas.
- Njegovo jezo opekline moon otroka – Jane sussurrava, fitando meu rosto com os olhos mais frios que eu já vira.
- Jane, pare. – Eu sussurrei para ela, sentindo um pressentimento soturno se apoderar de mim.
- Isso, querida, destrua-os. Destrua a todos! – Incitava-a Aro, segurando-a pelos ombros, acariciando seu rosto com as mãos pálidas.
- Njegovo jezo opekline moon otroka – Jane repetia, um sorriso soturno crescendo no canto de seus lábios. Eu não reconhecia aquela língua, mas sabia que nada de bom estava sendo proferido com aquelas palavras cheias de maldade.
Atrás de mim, a criatura urrava e eu podia ouvir a movimentação dos outros enquanto tentavam detê-lo e permanecerem vivos.
- Pare, você vai matar seu próprio irmão? – Eu disse a ela quase implorando. Jane me fitou com aqueles olhos vermelhos e disse, sem nenhuma emoção transparecendo em sua voz:
- Eu não tenho irmão. E você também não terá mais nada. – Disse ela, enquanto a pedra da lua era erguida no ar, refletindo a luz opaca do céu nublado.
Então eu ouvi o barulho oco de corpos sendo arremessados, e tive que desviar meus olhos de Jane e Aro. No meio da praça a criatura avançava sobre todos, levantando uma onda de destruição por onde passava. Alec estava tão perto... Meu pai, minha mãe, Carlisle, Zafrina, Benjamin, Jake... Eles lutavam com suas vidas. Até Marcus estava lá, enfrentando a derradeira morte. Ver aquilo, todo aquele horror, toda aquela violência... Presenciar aquele momento quebrou algo dentro de mim. Naquele momento eu percebi o quê significava ser um imortal num mundo de humanos. Nós éramos os monstros.
Com os pensamentos ainda turvos e o coração acelerado, eu vi a bravura de Marcus, séculos de imortalidade e força, ele parecia um fantasma pairando entre os outros. Avançava sem temer a morte, e talvez não temesse de fato. Eu sabia que não poderia fazer nada para ajudá-los naquele momento, e sabia também que teria de ser responsável pela morte de Aro e Jane. Ninguém mais poderia terminar aquilo. Apenas eu. Apenas eu e meu punhal inútil.
Então eu me virei para eles novamente, estava pronta, ou pelo menos era o quê eu gostaria de pensar.
- Vamos terminar isso de uma vez Aro. – Eu disse. Aro sorriu, aquele sorriso ofídico, aquela pele poeirenta se esticando nos cantos dos lábios. Ele afagou os ombros de Jane mais uma vez e disse, correndo os olhos para mim:
- Minha querida, já acabou. – Disse ele, gesticulando suas mãos longas para a luta que explodia atrás de mim. Por um momento eu não entendi a piada. Realmente não entendi a expressão no rosto de Jane e de Aro, embora jamais pudesse esquecê-las.
Foi o silêncio quem me alertou. O silêncio que precede o grito, a imobilidade que precede a queda, o ar suspenso como se o próprio tempo se recusasse a correr depressa. Aro sorriu novamente, uma última vez, e desapareceu de minha vista com Jane, tão rápido quanto uma nuvem de poeira se desvanece no ar. Acredito que meu corpo tenha sentido antes de minha mente se dar conta do que havia acontecido, pois minhas pernas tremiam enquanto levavam meu corpo para trás. “Olhe” dizia algo em minha mente, mas eu não conseguia obedecer.
Então os gritos abafados chegaram até meus ouvidos, apertando minha garganta como mãos invisíveis. “Olhe. Olhe e veja.”
- Tirem ele daí. Tirem logo. Merda, merda... – Gritou Benjamin, apavorado.
- Jake, quebre o pescoço. – Alertou minha mãe. Então veio a ruptura e o sangue. O gorgolejo sufocado, o rugido morrendo sob as mandíbulas do lobo.
E muitos pares de mãos arrancando, partindo, quebrando, torcendo...e a pilha cresceu rápido. O sangue logo se infiltrou nas pedras, formando poças, espelhos escuros, fétidos.
O cheiro ardeu em minhas narinas, nublou meus sentidos por um breve momento. As mãos de Alec ainda sustentavam o corpo tombado no chão. Eu não queria olhar para ele, não queria sequer pensar em seu nome, não conseguia me aproximar. Olhei para Marcus, ajoelhado ao lado de seu filho, o rosto trazendo à tona as velhas marcas do sofrimento, da perda.
- Filho. – Murmurou ele, sem coragem de tocar em seu corpo. – Por quê fez isso? Por quê não se salvou ao invés de mim? Eu já estou morto, meu pequeno príncipe.
Só havia perdão na morte? Ele poderia ter chamado Willian de filho enquanto ele ainda respirava, enquanto ainda lutava para fazer a coisa certa, enquanto ainda desejava o perdão de seu pai. Agora não importava muito, não é?
Alec me olhou de lá, daquela parte longínqua da realidade que eu não queria alcançar. Parecia que todos olhavam para mim, esperando algum tipo de crise histérica. Mas eu calei todos os gritos e lágrimas que todos esperavam de mim. Ao invés disso, acendi o isqueiro que eu apertava numa das mãos, e andei, um passo por vez, até a pilha fétida de membros e ossos da criatura. Enquanto o fogo subia, expelindo mais daquela fumaça pesada, eu selava toda dor dentro de mim. Rápido, precisava ser muito rápido, antes que minha consciência se desse conta, antes que minha mente assimilasse aquilo.
Willian morreu protegendo Marcus, como Jasper morreu protegendo Alice. Pelo menos eles deram suas vidas por alguém em quem acreditavam, alguém que amavam. Isso era certo, não era? Era nobre, eu suponho.
- Ness, precisamos ir agora. As autoridades estão entrando na cidade, já noticiaram o incêndio na televisão. – A voz de Carlisle soprou a névoa de pensamentos incoerentes nos quais eu me perdera não sei por quanto tempo. Dei as costas para o fogo, sentindo uma estranha vontade de olhar para o rosto de meu avô, de memorizar novamente cada detalhe que havia se apagado um pouco nos últimos meses. Mas meus olhos pousaram mais adiante, naquela cena distante que me alcançaria a qualquer momento.
- O quê vão fazer com ele? – Perguntei, sem me dar conta. Carlisle olhou para o corpo de Willian, deitado sobre as cinzas do pavimento.
- Marcus vai deixar a companheira humana dele decidir o quê fazer. – Eu assenti.
- Uma humana saberá o quê fazer com o corpo semi-morto de um imortal? – Minha mente fazia as perguntas sem que eu tivesse tempo de pensar sobre elas, as palavras saíam, rebelando-se aos poucos.
- Nenhum de nós sabe o quê fazer no momento Ness. Esse é um novo mistério para nossa espécie, ninguém vai responder nossas perguntas por que ninguém têm as respostas.
- Ninguém é? – Eu falei, enquanto me afastava dali, pensando em tantas coisas que não era capaz de pensar em nada precisamente. Mas por baixo de toda escuridão que se apoderara de minha mente, eu sabia aonde deveria ir para encontrar as respostas que Carlisle julgava perdidas.
***
Em Montalcino, eu conheci o imortal responsável pela evacuação dos humanos de Volterra. Tratava-se de um sujeito alto, magro e com feições soturnas. Era dinamarquês e controlador de mentes, assim como eu e meu pai. Não me lembro de seu nome, mas devo ter ficado admirada com a extensão dos poderes dele, fazer mais de duas mil pessoas seguirem para fora de sua cidade no meio da noite era algo incrível. Admirável, porém não me lembro de tê-lo dado os parabéns, ou o agradecido.
Tânia e Kate estavam lá também, e Gareth, e Eleazar...infelizmente a companheira dele, Carmem, também havia sido morta pelos Volturi, assim como as irmãs de Zafrina – Kachiri e Senna. A perseguição Volturi atingiu proporções maiores do que eu imaginava. Soube mais tarde que o clã de Benjamin havia sido dizimado, ele fora o único sobrevivente. E assim como os egípcios, os clãs da Irlanda e os nômades também haviam sido caçados – e mortos. A limpeza de Aro varreu o mundo até chegar aos Cullen.
Quando a noite chegou, quase todos os aliados já haviam partido, levando consigo as notícias da destruição dos Volturi e da fuga de Aro e Jane. Dias difíceis estavam por vir. Depois do quê acontecera com os Cullen, o mundo imortal temia as conseqüências da mudança no poder e quase todos apostavam na idéia de que Aro não se conformaria com sua nova condição de foragido procurado. Depois da farsa revelada, imortais do mundo inteiro viriam saudar suas dívidas com o ex-líder Volturi. Aro tirou muitas vidas enquanto esteve no poder, e como já é conhecido no caráter de nossa espécie, um imortal não perdoa a morte de um companheiro. Se eu seguisse esse critério, eu teria que passar o resto de minha vida caçando Aro e Jane.
Acredito que não seja muito mais fácil para um humano perder um companheiro, embora eles tenham uma mente muito mais evanescente que a nossa. Humanos superam, humanos perdoam. Imortais caçam e queimam algo para curar suas feridas. Era isso que eu esperava enquanto observava Lavínia se debruçar sobre o corpo de Willian – que ela superasse. Nunca imaginei que um humano pudesse gritar tanto e depois de olhar em seus olhos desesperados e turvos de lágrimas, meu consolo de que ela pudesse esquecê-lo se desvaneceu. Embora fosse insuportável permanecer ali, testemunhando o desespero daquela humana, foi muito mais difícil para mim encarar Alice.
Não sei quem deu a notícia sobre a morte de Jasper para o resto da família. Não fui eu.
Eu só observei silenciosa a família se reunir em volta do corpo dele, enquanto o traziam para dentro da casa onde estávamos.
- Creio que ele gostaria de ser enterrado em sua cidade natal. – Comentou Carlisle. Eu não prestava atenção na conversa discreta que ele tinha com meus pais e Esme no canto da sala.
- Jazz vai para casa comigo. Ninguém vai enterrá-lo numa vala no meio do Texas. Tenho certeza de que se ele acordar num caixão ele vai ficar de mal humor por um ano inteiro. – Disse Alice, entrando na sala com seus passos leves, a voz soando alarmantemente normal. Olhei para ela, sentindo meu estômago doer enquanto a observava afagar os cabelos louros de Jasper que repousava num sofá velho. Aquilo nos olhos dela era mesmo esperança? Tive que tomar um pouco de ar depois disso.
- Nós vamos encontrar um meio de trazê-los de volta. – A voz de Jacob me alcançou no vazio da noite. – O doutor disse que vai estudar esse veneno. Se há uma cura, ele vai encontrar. – Ele não estava fazendo eu me sentir melhor. Jacob se sentou ao meu lado na balaustrada da varanda e por um momento que se estendeu por um quarto de hora, nós mergulhamos num silencio confortante e eu apenas fiquei ali, olhando a noite, sentindo o cheiro dele se misturar na brisa.
- Jake, eu não vou para casa. – Eu disse, depois de me sentir farta demais com meus pensamentos, e embora não tivesse pensado muito sobre isso, eu apenas sentia que não poderia voltar agora, não depois de tudo. Jacob assentiu em silêncio e disse após alguns minutos:
- Eu não sei se onde você vai terá lugar para mim. E apesar de eu te dizer que vou aonde você for, se você me disser que quer ficar sozinha, então eu me afasto, se é isso que quer. – Disse ele.
- Eu não sei aonde vou, eu sei de onde eu estou vindo. Eu não sou mais a mesma Jake e nem posso te dizer quem eu sou agora. – Jacob me observava no escuro.
- Meu coração está onde você está, mesmo que eu esteja do outro lado do mundo, em outro planeta. Se você tem que ir, então vá, eu só acho que não é o melhor momento para estar sozinha. – Mas quando eu olhava para ele, eu queria poder ficar, queria poder ser de novo quem eu era. Mas nada volta atrás...
- Você o ama? – Perguntou Jacob, a voz baixa, tranqüila.
- Acha que é por isso que não quero voltar pra casa Jake? – Falei, olhando-o nos olhos.
- Não foi isso que eu perguntei, mas de qualquer forma você não precisa responder. Vou deixar você sozinha. – Disse ele, se afastando na escuridão.
- Espere. – Jacob parou, voltando-se para mim. Passei minhas pernas para o lado de dentro da varanda e sustentei seu olhar. – Eu não sei.
- Não sabe.
- Não. – Peguei a mão quente que pendia ao lado de seu corpo e a trouxe para perto de mim. Jacob acariciou meu rosto, e a suavidade quase me fez chorar. – Eu não deixei de amar você, e disso eu tenho certeza. – Nos beijamos então, e enquanto eu o observava, de olhos fechados e totalmente entregue à mim, eu senti o quanto aquilo me faria falta e o quão infeliz eu seria sem ele. Desde o primeiro momento, tudo o quê Jacob fez foi abrir mão de sua própria vida para viver em função da minha, todos aqueles anos de espera, tudo que ele abandonou... E mesmo agora, isso era tudo o quê eu podia dar a ele.
Mais tarde naquela mesma noite, uma reunião foi convocada pelos remanescentes e tudo que eu queria, era não ter que participar.
Alice não participou.
Dos quileutes, apenas Jacob e Leah. Os outros voltaram para casa tão rápido puderam.
O clã de Denali permaneceu conosco, assim como Zafrina, Benjamin e o tal dinamarquês hipnotizador. Alec chegou algumas horas mais tarde, depois de instalar Lavínia e o corpo de Willian em uma das casas Volturi. Marcus chegou logo após.
- Antes de mais nada. – Começou Carlisle. – Quero pedir um momento de silêncio e reflexão pelas vidas que foram perdidas nessa guerra.
Ótimo, mais silêncio e reflexão. Isso não traria Jasper ou Willian de volta. Meu pai me lançou um olhar vazio do outro lado da sala. Ele sabia que eu odiava reuniões, eram tão úteis quanto um pato de borracha numa banheira furada.
Enquanto estávamos ali, num circulo patético e imóvel, como estatuetas de pedra num museu, eu não podia deixar de notar os olhos de Alec presos em mim. Havia tantas coisas passando por minha mente, que o barulho entre as paredes do meu cérebro parecia se propagar para fora e desrespeitar o luto de todos ali. Em silêncio, eu ouvia as palavras de Alec, proferidas numa noite escura e fria, se reavivarem em minha mente. “Eu não vou fazer você escolher, e não por quê sou nobre demais para isso, mas por quê sei que você já fez sua escolha.” Naquela noite eu o tinha dito: “você não pode me amar.” E ele apenas me olhou com aqueles olhos perdidos e disse: “É tarde demais pra mim. Eu já te amo e já te perdi antes mesmo de tê-la.” Naquela noite tudo poderia ter sido diferente, mas agora... Agora nada mais poderia ser como era antes. Nem com Jacob, nem com Alec.
A Renesmee que estava diante deles agora, não tinha mais um coração intacto para amar, ou uma mente tranqüila para escolher. Eu tinha chegado num momento em minha vida, em que meu coração teria que ser deixado em segundo plano.
- Essa reunião foi promovida com o intuito de expor a cada um de vocês, todos os fatos que nos trouxeram até aqui. Como todos sabem, estamos em guerra. – Começou Carlisle. – Muitos de vocês não conheceram outro governo em nosso mundo, além do governo Volturi. Eu mesmo sou de uma época em que os Volturi já estavam no poder há gerações, não há muitos que conheçam a origem desse poder e infelizmente, os poucos que conheceram apenas se calaram e aprenderam a temê-los, e isso é conseqüência dos princípios que Aro adotou e consolidou durante os séculos, é tudo que nosso mundo conhece e aprendeu a respeitar. Bem, para aqueles que não sabem, a origem do poder Volturi está aqui conosco esta noite, nesta sala. – Carlisle gesticulou respeitosamente para Marcus, que o agradeceu com um breve aceno de cabeça. Ao redor da sala, vários pares de olhos perplexos encararam o ancião, com exceção de alguns poucos que já conheciam a história de Marcus – como eu e Alec. Marcus então assumiu o discurso, e em sua voz fria e inabalável, ele descreveu tudo, absolutamente tudo. Nunca pensei que eu viveria para ver o dia em que Marcus abriria o cofre lacrado que trazia em seu peito, mas ele falou e falou, e tudo que eu podia visualizar em minha mente era dor, traição e morte. Ouvi-lo falar de Willian, fazia meus olhos arderem, e eu tinha que retesar todo meu corpo para me conter, para manter a barreira de força lá, intacta. Talvez Marcus tenha lutado tanto para conter sua própria dor que terminara assim, vazio. A parte mais irritada de mim mandou minha consciência calar a boca, enquanto tentava se concentrar nas palavras de Marcus.
- ...quando percebi que Aro estava cada vez mais firme no poder, eu já não me importava com o quê pudesse acontecer. Por negligência minha ele moldou minhas leis a seu próprio benefício, por covardia e egoísmo meu, ele caçou, perseguiu e aniquilou milhares de vidas. Aro ampliou o poder Volturi para além de nosso pequeno país, para muito além dos portões da cidade protegida por São Marcus. Os séculos passaram e ele, cada vez mais, se tornava o eixo de tudo. Exércitos ele criou e exércitos ele dizimou, e tudo mascarando-se sob as leis que eu criei para proteger meu povo da praga que nós éramos. Mas Aro não estava interessado em humanos, pelo menos não nos primeiros séculos. Ele estava inebriado pela perspectiva do poder, ele queria adquirir tudo que fosse possível. Desde imortais com poderes patéticos, simples aquisições curiosas, até os imortais realmente poderosos e incontroláveis. – Marcus então lançou um olhar fugaz a Alec no extremo da sala e continuou, juntando as mãos pálidas sob o manto escuro. – E eu não fui capaz de fazer nada. – Uma breve pausa, então ele continuou. – Quando Aro recebeu a denúncia de uma criança imortal sob tutela dos Cullen, ele simplesmente se rejubilou. Era o quê ele precisava, o álibi no qual ele vinha trabalhando desde a visita de Edward à Volterra. Não o via satisfeito daquele jeito desde o dia em que veio me contar sobre os gêmeos que adotara numa aldeia austríaca. E aí começou o inferno. Aro é mais perspicaz que uma formiga operária tentando alimentar sua rainha, no caso dele, seu orgulho. Quando nos deparamos com aquela recepção nem um pouco submissa, Aro teve que improvisar, e mesmo quando nada mais podia ser feito sem extrapolar os limites das boas aparências, Aro não desistiu. Durante todo o caminho de volta, ele calou-se e se colocou a trabalhar em sua próxima teia, o quê, na época, já estava com um andamento bastante acelerado. Aro chegou à Forks com uma idéia e retornou com milhares, estava frustrado e queria agir. Um mês depois, ele colocou a guarda atrás de meu filho, a peça principal para seu plano vingar. – Marcus perdeu-se por um momento em suas próprias lembranças amargas. Eu podia ver nos olhos dele o arrependimento por não ter dito nada de bom à Willian enquanto podia. O silêncio caiu pesado sobre nós, e Eleazar pigarreou discretamente para despertar Marcus de seus devaneios melancólicos.
- O quê Aro pretendia usando seu filho, Marcus? – Perguntou Eleazar.
- Aproximação. – Respondeu Marcus. – Aro precisava se movimentar com seu plano, mas com a vidente vigiando-o ele não podia dar um só passo, isso quase o matou de exasperação. Ele precisava anular esse ônus, e só conhecia uma solução para o problema e apenas uma pessoa capaz de realizar seu desejo. Aro sempre quis pôr as mãos em Willian, desde que ele desertou, desde que soube dos poderes dele, ele procurou o garoto por séculos, mas por fim, não sei bem quando, ele parou, mas quando percebeu que só os poderes de Willian seriam capazes de dá-lo a ponte até os Cullen, bem, então ele se empenhou mais e finalmente encontrou meu filho. A humana foi a chave, a moeda de troca de Aro. Ele obrigou Willian a cumprir um trato que assegurava a vida da humana e o pagamento pelo crime de ter matado Dydime. E Willian aceitou, o quê mais poderia fazer?
Um a um, ele levou o exército de Aro até os nomes de sua lista negra, onde apenas três nomes não levavam à ordem de extermínio imediato. A vidente, a mulher da selva e a filha mestiça dos Cullen. Todos os demais deviam morrer de imediato. E assim foi. Parecia que a sorte estava sorrindo para Aro finalmente.
- E como ele encontrou o maldito filho da lua? Ninguém mais sabia do paradeiro dessas bestas, muitos até pensavam ser apenas lendas. – Perguntou Gareth. Tânia, Kate e Eleazar pareciam questionar a mesma coisa.
- Me envergonho ao confessar diante de vocês que eu nada soube dos planos de Aro até estarem quase completamente concluídos. Pensei que ele e Caius já tivessem superado o ódio que nutriam por essas criaturas. Eles caçaram essas bestas durante muitos anos enquanto eu ainda governava, creio que eles absorveram muitas coisas que nós desconhecemos sobre essas criaturas, mas o próprio Aro chegou a confessar-me uma vez que os malditos haviam sumido da face da terra. Desconheço a fonte de informação da qual ele se utilizou para localizá-los, mas suponho ser um dos antigos.
- Dois. – Falei.
- O quê disse criança? – Indagou Marcus, olhando-me confuso. Ótimo, eu e minha boca grande estávamos novamente sob o foco dos olhares.
- Eu disse que são dois dos antigos. Vladimir e Stefan. Acho que esses nomes são mais familiares a você do que a qualquer um, afinal, foi você quem chutou o traseiro deles do trono. – Eu não havia pensado muito sobre as coisas que vi na mente de Aro, na verdade, levei algum tempo para organizar todo o caos que recolhi daquela caixa preta, mas olhando agora o quadro completo, eu sabia que aquela era uma informação valiosa.
- Não creio que aqueles dois tenham chegado nem há dez quilômetros de Aro ou Volterra. Não passam de ratos, decrépitos, covardes. Eles são bem antigos, é realmente possível que tenham vivido no tempo dos filhos da lua, mas o quê eles ganhariam com isso? – Indagou Marcus.
- Eu vi. – Retruquei. – Na mente de Aro. Eu vi a conversa. Aro ofereceu Alice em troca da localização da criatura.
- A vidente? Impossível. Ele a queria mais do que qualquer coisa, por quê Aro ofereceria algo tão valioso para ele? – Ponderou Marcus.
- Talvez ele planejasse pegar de volta mais tarde, quando conseguisse exterminar todo mundo. – Enquanto eu falava, as coisas se remexiam em minha mente, e havia muitas peças que não se encaixavam, mas eu já não suportava tantas perguntas, não queria mais falar sobre aquilo, eu só queria terminar aquele dia maldito, que parecia nunca ter fim.
Durante as horas que se seguiram, várias especulações e debates se ergueram na sala, que de súbito parecia estranhamente cheia. Minha mente vagava por um espaço atemporal, dando voltas que me levavam sempre ao mesmo lugar. Eu sentia o calor do corpo de Jacob ao meu lado e a frieza penetrante do olhar de Alec sobre mim, e nenhum dos meus pensamentos estavam ilesos dos rostos de Willian e Jasper. A pressão comprimia meus pulmões. Meu pai me observava de longe, tentando não transparecer à minha mãe a preocupação comigo, enquanto trocava informações com Marcus e Carlisle. Aquela discrição dele era o que mais nos aproximava, o quê o tornava meu confidente, meu porto seguro. Eu amava minha mãe, morreria por ela, mas meu pai era meu ponto fraco, ao mesmo tempo que me transmitia uma força sem a qual muitas vezes eu não conseguiria continuar. E ele estava ali novamente, me dizendo com aqueles olhos calmos que tudo estava bem, que eu conseguiria me manter de pé e que ele estava ali, comigo.
Saí novamente para a noite fria, o mais discretamente possível, e cinco minutos se passaram até que meu pai foi a meu encontro. Silencioso, ele se aproximou de mim e tocou meus cachos com os dedos frios. Nossa comunicação dispensava palavras, sempre fora assim, porém naquele momento, eu sentia que precisava dizer alguma coisa, o silencio estava me cortando ao meio. Eu precisava encarar o abismo diante de mim, precisava gritar para ele, mesmo que não houvesse resposta alguma, mesmo que só houvesse os ecos de minha própria voz.
- Como foi? – Perguntei. Meu pai me observava, os olhos vazios e distantes se perdiam em meu rosto. Talvez estivessem perdidos no mar de imagens que se misturavam em minha mente.
- Quer mesmo saber? – Disse ele. Eu precisava saber como Willian morreu, eu não entendia como aquilo tinha acontecido, assim como não conseguia acreditar que não teria mais longas conversas com Jasper ao entardecer. Eu simplesmente esperava olhar para trás e vê-los ali, olhando para mim de algum lugar. Meu pai suspirou, ele não queria fazer aquilo, mas ele precisava. Eu preferia toda dor de uma só vez.
- Nós estávamos fechando o cerco sobre a criatura. Marcus estava chegando perto, mas ele foi imprudente, avançou sem cautela, nós o alertamos, mas ele não ouviu. – Meu pai desviou os olhos de mim e encarou o céu escuro. – Marcus baixou a guarda por meio segundo e a criatura avançou diretamente na garganta, iria matá-lo como matou Caius. Willian entrou na frente, empurrou Marcus de lá e a criatura o agarrou. Jacob abocanhou o pescoço da criatura, mas já era tarde. O veneno já havia contaminado Willian. – Assenti, refugiando meus olhos no horizonte, revendo a cena em minha mente. Ardendo.
- Não teríamos conseguido agarrar aquele animal se Willian não tivesse feito aquilo, e ele sabia, eu estava na mente dele quando ele tomou a decisão de se sacrificar para que nós tivéssemos uma chance. – Ele continuou. - Nós vamos encontrar uma forma de salvá-los. O fato de nunca ter acontecido não quer dizer que é o fim, que não há solução. Quando você nasceu e nós assistimos seu crescimento acelerado, ninguém sabia se iria parar, se iríamos te perder. Mas nós não paramos até saber o quê aconteceria. E mesmo assim você é única em sua espécie agora, leve isso como um lembrete de que há uma primeira vez para tudo, de que há esperança afinal. – Eu queria desesperadamente acreditar naquelas palavras, guardá-las.
- O quê vamos fazer agora, pai? Aro e Jane ainda estão lá fora e eles não vão parar.
- Eu sei, mas eu acredito que Aro não vai tentar nada tão cedo. Ele sabe que o momento é o menos propício possível. Ele vai esperar a maré amansar, sei disso.
- E enquanto isso, o quê faremos?
- Eu lhe aconselho a viver um pouco sua vida Ness. Você acabou de atingir a maturidade e já teve que lidar com coisas tão pesadas. Essa é a segunda vez que você esteve no fogo cruzado. Vá, viva um pouco. Essa não foi a vida que eu e sua mãe sonhamos para você. Resolva essa situação com Jacob e Alec, permita-se um pouco de felicidade. O momento de lutar novamente vai chegar, talvez mais cedo do quê imaginamos. – Eu olhei para ele com uma certa vergonha, um misto de incredulidade e consternação, mas não consegui dizer nada. Eu só queria encontrar uma forma de limpar minha mente, de ficar sozinha por um momento. Era estranho como eu não conseguia ficar com ninguém desde que tudo aquilo explodiu em minha vida.
- Obrigado pai. – Eu disse, quando ele me beijou na testa e caminhou silencioso para dentro da casa. “Eu te amo” pensei. Ele me olhou novamente, um sorriso discreto se abrindo em seus lábios. Era estranho, os olhos dele diziam algo como “sentirei sua falta”, e então eu entendi que ele sabia o quê eu pretendia, mesmo que eu não tivesse pensado naquilo abertamente. Porém, o que mais me sobressaltou foi a confiança nos olhos dele, a compreensão de algo tão difícil para nós dois. Ele estava certo, eu precisava organizar a bagunça que Aro havia deixado em minha vida. Precisava de tempo, de ar, até que a hora de caçá-lo chegasse e eu tivesse que abandonar tudo novamente. E eu sabia por onde devia começar...
- Como ela está? – Perguntei, descendo as escadas até o campo aberto que se estendia ao redor da casa. Alec me olhou e por um momento não disse nada, estava perfeitamente parado, mirando o nada, parecia fazer parte de tudo ali ao seu redor. Como eu pude ao menos esperar que aquilo não seria difícil? Perguntar sobre Lavínia não era nada mais que um pretexto, e ele sabia disso.
- Ela vai enterrá-lo pela manhã, prometi ajudá-la. Ela queria levá-lo de volta para a Rússia, mas eu a convenci de que seria muito perigoso viajar com um corpo que ainda por cima nem é humano. – Assenti, não sabia mais o quê dizer. Minha mente estava estranhamente muda, embora pesasse toneladas.
- O quê vai fazer agora? – Eu não ousava olhá-lo nos olhos, mas ele observava-me atento.
- Marcus me ofereceu o trono. – Disse ele.
- Sério? Pensei que ele fosse retomar a liderança.
- Ele diz que nossa espécie não vai mais aceitar a liderança de um dos antigos anciões e que de qualquer forma, ele não quer mais essa vida, não depois de tudo... – Aquela foi a primeira vez que eu vi um sinal de tristeza nos olhos de Alec, e eu soube que ele também estava sentindo a morte de Willian. Ver aquela dor por trás de outros olhos era reconfortante de alguma forma.
- E você vai aceitar? – Me apressei em dizer.
- Acha que eu deveria?
- Talvez. – Eu falei.
Ficamos em silêncio durante alguns minutos, e eu fiquei imaginando como Alec se sairia liderando a nova ordem Volturi.
- Não sei se conseguiria. – Disse ele.
- Por quê?
- Por quê não é aqui que quero estar. – Ele falou, olhando-me de novo daquela maneira desconfortável.
- Pare com isso. – Eu disse, afastando meus olhos dele. Alec se aproximou.
- Por quê? Por quê foge de mim desse jeito? – Disse ele tocando meus ombros.
- Eu não estou fugindo.
- Sim, você está. Nem mesmo me olha nos olhos. Tem medo do que sente por mim. – Alec estreitou o espaço entre nós e eu pude sentir a respiração dele contra minha pele. Um arrepio percorreu meu corpo com a friagem de suas mãos roçando meus braços.
- Eu amo ele. – Eu disse, afastando suas mãos de mim.
- Eu sei, mas você sente algo por mim. Eu sinto isso. Toda vez que me olha, toda vez que eu me aproximo, toda vez que te toco... – Ele falou, dando um passo atrás e me encarando com aqueles olhos frios.
- Quer saber o quê eu sinto agora? Eu sinto ódio Alec, um ódio tão grande que nem me deixa respirar. Eu vou atrás de Aro e da sua irmãzinha e eu vou matá-los nem que seja a última coisa que eu faça. – Falei, me afastando dele depressa, sustentando meu álibi com minha melhor máscara. Funcionou, afinal. Alec me olhava com o rosto impassível, eu podia ver o pesar em seus olhos vermelhos, tão escuros como rubis brilhando na noite. Eu deveria sair dali, mas minhas pernas não se moviam, estavam presas ao chão, e Alec não dizia nada...
- Eu não vou voltar para casa, não poderia depois de tudo. Não consigo encarar Alice, não consigo fingir que está tudo bem como eles fazem.
- Você pode ficar aqui, comigo. – Disse Alec. Eu ia protestar, mas por um momento eu considerei aquela idéia, sem nem mesmo consentir a minha mente que o fizesse. Eu imaginei como seria, nós dois, reconstruindo o exército Volturi, reerguendo o clã que lideraria todos os imortais dali em diante, pelo resto da eternidade.
- Não posso. – Eu disse. - Eu preciso ir, não sei para onde, mas aqui não é meu lugar.
- Seu lugar é onde seu corpo, sua mente e sua alma desejam estar. – Disse ele.
- É por isso que ele vem comigo. – Falei, virando-lhe as costas.
- Diga-me que nenhuma dessas partes deseja ficar aqui, comigo. Diga. – Mas eu não podia dizer aquilo, não podia dizer nada...
- Então eu sei que você vai voltar. Um dia. – Ele falou, estendendo a mão até a minha. Alec beijou minha mão e colocou um pequeno pedaço de papel entre meus dedos. Não consegui ler o quê ele escrevera, sentia medo de abrir aquele papel, era como ter de encará-lo novamente, e eu simplesmente não podia mais fazer isso.
Enquanto eu me afastava, eu sentia uma parte minha sendo deixada ali. As palavras de Alec se infiltraram em mim como um chamado secreto, como um imã que sempre me atrairia de volta para ele. Caberia a mim encontrar a força para escolher meu lugar. Mas eu não podia fazer isso agora, não naquela noite, onde tudo parecia mais escuro e mais silencioso, onde todas as escolhas pareciam significar vida ou morte. Naquele momento eu só sabia que tinha de partir e que Jacob tinha de vir comigo, por quê eu não podia terminar aquela noite sozinha, eu precisava dele, como precisava de ar. Eu estava cometendo o mesmo erro novamente, mas eu não me importava.
Dali a algumas horas, Willian seria enterrado nos campos de Montepulciano, sob o céu sempre azul e o sol sempre quente, rodeado pelo cheiro do trigo e pela brisa fresca das montanhas. Alec assumiria o trono Volturi e uma nova era se iniciaria para os imortais. Havia esperança pela primeira vez no horizonte, mesmo com as sombras pairando ainda sobre nós. Nada havia mudado muito em nosso mundo, havia ainda dor, sangue e morte nos envolvendo de todos os lados, apenas mais do mesmo. Afinal, o quê todos queriam? Paz ou liberdade? Essa liberdade foi alcançada por um preço alto demais, e nem nos meus mais belos sonhos eu esperava ter paz em nosso mundo, eu vira coisas demais para acreditar numa existência pacífica e mais do que nunca eu estava ciente de que nossa espécie nunca estaria realmente em paz. Agora havia a calmaria, com seus ventos suaves varrendo as nuvens para longe, mas era certo – e eu já esperava - a tempestade se aproximando.
Quando já havia andado algumas horas no meio da noite, peguei o celular que havia ficado no bolso do casaco que Rosalie me emprestara e disquei um número conhecido. Ele estava ansioso quando atendeu, como sempre...
- Onde você está? – Disse Jacob.
- Esperando por você.
- Onde?
- Siga meu cheiro, e se apresse.
Alguns minutos depois a som das patas contra o solo me alcançou no silêncio dos campos desertos, onde a brisa corria livre, carregando as pequenas folhas que se desprendiam das árvores. Jacob mudou de forma e vestia seu velho calção jeans quando veio ao meu encontro.
- Nós precisamos ir. – Eu disse, estreitando-o em meus braços. Ele circundou minha cintura, me enlaçando num abraço quente e apertado e eu respirei fundo, inalando o cheiro dele, deixando-o penetrar em meus poros.
- Aonde vamos? – Perguntou ele, afundando o rosto em meu pescoço.
- Não importa, desde que você esteja aqui.
- Pensei que quisesse ficar sozinha.
- Eu não sei quanto tempo eu ainda tenho, não sabemos quando algo demoníaco virá nos caçar. Essa noite pode perfeitamente ser nossa última, e eu sei com quem eu quero terminá-la. – Jacob sorriu e me segurou nos braços, eu podia sentir o coração dele martelando no peito enquanto caminhávamos pela noite.
Eu não disse adeus a ninguém, esperava vê-los logo. Esperava ter Alice novamente trançando meus cabelos, e Rosalie passeando comigo em seu carro pelas estradas de Forks. Esperava estar com meus pais de novo e ver seus rostos e ouvir suas vozes. Atirar bolas de neve em Emmet, correr pelas florestas de La Push, afundando os pés no solo molhado. Eu contava com aquilo, era minha pequena caixa de segurança, bem ali, em meu peito, escondida sob as sombras frias e as lembranças dolorosas.
Não havia nada mais que pudesse ser feito ali. Depois de todos aqueles meses vivendo nos porões do castelo Volturi, eu estava respirando novamente. Ar. Puro e limpo. Por maior que fosse o buraco em meu peito, eu estava apenas respirando aquela noite.
O medo, a dor, a culpa, o ódio... Todas essas coisas me seguiam, em cada passo, em cada batida do meu coração, mas eu prometi que me manteria a frente delas, na superfície. O mundo continuava, ele não iria parar para que eu juntasse meus cacos, para que eu chorasse todas as lágrimas. Eu estava cansada, mas precisava continuar. Por minha família, por Alec, pelos amigos que lutaram a meu lado e pela pessoa que fazia eu me sentir viva, todo e cada dia.
FIM.